Sei que o título é manjado, e talvez a história que vou contar também seja. Você já deve ter visto várias vezes em livros, filmes… “Dança Comigo”, com Antonio Banderas, por exemplo. Ou “A Outra História Americana”, com Edward Norton. A diferença é que a minha história, apesar de comum, é real.
Foto: Neil Agate
Sou produto da tal família desestruturada. Nasci em 1965. Uma das melhores safras, mas sou suspeito para falar, não?
Em 1965 os Beatles tiveram seu único encontro com Elvis, por exemplo. Elvis. Com os Beatles. Já pensou? O Brasil era ainda bicampeão mundial. Pelé só um menino. Garrincha. Zagallo. Clínt Eastwood lançava “Por Um Punhado de Dólares”, classicaço, até hoje e sempre, pelos séculos dos séculos.
Eu nasci sem pai. Dizem que meu progenitor era músico. Engravidou minha mãe e – pumba! – pé na estrada. Minha mãe foi peituda em bancar meu nascimento nos anos 60. Eu era visto com olhares atravessados pelos pais dos amiguinhos:- aquele ali?! Ih, é o filho sem pai!
Filho sem pai era igual a mãe sem marido, que, nessa equação, era sinônimo de… vocês sabem. Meu avô fazia as vezes de pai com maestria, enquanto esteve por aqui, tornando essa terra um lugar um pouco mais doce e bonito. Mas o fato é que a adolescência é uma fábrica de bobocas arrogantes, e acabei me tornando um deles. E, já que todos os prognósticos a meu respeito eram ruins, acho que resolvi confirmá-los.
Tive minha gangue. Fiz m. em cima de m. Quase fui preso – ó, foi por um isso, um triz que não fui, viu? Triscou na trave. Salvou-me um professor.
É, um professor. De português. Um dos raros professores negros naquela época, início dos anos 80. E sua cor é apenas um detalhe, para que vocês visualizem-no um pouco. Usava óculos de grau. Professor dos bons, viu? O melhor. Era diretor da escola também. Um dia, após a pior das lambanças que protagonizei, ele me chamou à sua sala. E disse, me olhando com aqueles olhos que verrumavam a alma da gente:
– eu SEI que foi você. Eu não tenho provas, mas SEI. E sei também, moço (ele chamava todo mundo assim, de “moço”) que, por dentro, você não é tudo isso aí de ruim. Você é bom. Você é MELHOR. Mas você precisa decidir o que você vai fazer com sua vida. Porque nem todo mundo vai lhe dar a chance que eu vou lhe dar agora.
Agradeci e sai da sala. Fiquei assuntando. A conversa ficou reverberando em minha cabeça, vocês sabem como é, né? A prosa fica dando voltas e voltas feito aqueles bichinhos zanzando em volta da luz. E aí foi que eu mudei. Não de uma hora pra outra, não, que isso não é um romance de Sidney Sheldon. Ninguém muda num átimo.
Muda aos poucos, um tantinho a cada dia. Estudei. Larguei os “amigos”. Aqueles. Aprendi música. Violão clássico e flamenco, viu só? Entrei para uma universidade pública – um dos três ou quatro da minha escola, onde os destaques em geral saíam nas páginas policiais. Me graduei. Enfim.
Fiz da minha trajetória simples um motivo de orgulho pessoal – eu fraquejei, nossa, como eu fraquejei!
A vida me pôs de joelhos um desalento de vezes, umas por ter sido golpeado, outras para implorar a Deus, e muitas – e a Ele eu rendo homenagens – para agradecer.
Porque não houve uma única vez – nem uma ÚNICA vez, amiguinhos – em que estive de joelhos que eu não tenha me erguido – e mais forte.
Pois bem. Como diz o imenso Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”:“Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Sei de mim? Cumpro. Travessia.”
É só um pouco da travessia que cumpri. Cumpro. E ainda espero cumprir.
Esteja onde estiver, meu velho professor, receba meu carinho. E meu agradecimento por ter feito por mim o que só os grandes professores sabem fazer.
Mestre não é só aquele que ensina.Mas aquele que guarda.Que salva.
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.