4 de maio de 2024
Colunistas Fernando Gabeira

O último tango no planeta

A última esperança de barrar o avanço da barbárie é uma ampla revisão dos erros explorados pela extrema direita.

Enquanto o bolsonarismo era atingido em cheio com a venda de joias, emerge na Argentina como vitorioso nas primárias Javier Milei. Bolsonaro e Milei são dois personagens distintos, mas que pertencem ao mesmo campo.

Milei se diz anarcocapitalista, quer dolarizar a economia argentina, fechar o Banco Central e legalizar o comércio de órgãos humanos. Não tem o mesmo ranço militarista de Bolsonaro, mas tende a ser uma espécie de expressão portenha deste grande movimento global que sacode a política.

Nas análises que faço da derrocada moral do bolsonarismo, diante das evidências de corrupção, ressalto sempre que é algo que acontece com um líder, mas não altera as condições político-sociais que viabilizam suas ideias.

No caso argentino, é fácil compreender o fracasso do establishment, diante da inflação galopante, da crescente pobreza e da inquietação social.

Aqui, no Brasil, depois de combater as urnas eletrônicas e flertar com um golpe de Estado, Bolsonaro se vê diante de um erro facilmente compreendido pela maioria da população: apossar-se de algo que não é seu. É possível que isso traga um desencanto em relação à personalidade, mas não abala a desconfiança em relação aos políticos tradicionais, e a economia ainda não se recuperou. Costumo acrescentar um outro fator: a ausência de uma política de segurança pública democrática e inteligente, abrindo caminho para a pregação da violência como alternativa.

O que acontece na América do Sul tem algum tipo de correspondência nos EUA e na Europa, onde as democracias também correm risco.

Apesar de indiciado quatro vezes, Donald Trump continua sendo o candidato mais viável entre os republicanos, empatando nas pesquisas com Joe Biden.

Trump trabalha com as críticas ao processo de globalização, com a repulsa à entrada de imigrantes no país e com o velho tema de tornar a América grande de novo. Grande, solitária e alheia aos problemas do mundo, assim como devem ser as pessoas no ideário da extrema direita: presas à meritocracia e adversárias de uma visão de solidariedade social.

A imprensa francesa noticiou esta semana que a líder da extrema direita do país, Marine Le Pen, vai ampliar sua área de atuação para além da crítica à presença dos imigrantes, para um ataque às teses da transição ecológica e negação do aquecimento global. Na opinião de Le Pen e seu liderados, a tecnologia poderá resolver todos os problemas.

Todo este movimento que perpassa o planeta e que definimos a grosso modo como de extrema direita é, na verdade, um grande mal-estar que nos move não só a analisar incessantemente, mas também a buscar fórmulas audaciosas para superá-lo.

No mundo tal como Milei o vê, o comércio de órgãos é um caminho para a sobrevivência: enquanto tivermos um rim para vender, haverá esperança de sobrevivência. E no mundo tal como madame Le Pen, podemos negar tranquilamente o aquecimento global e confiar na tecnologia, o que significa uma espécie de suicídio coletivo.

Bolsonaro ainda é um pouco mais tosco, seu discurso não se compara ao de uma Georgia Meloni, a líder italiana. Ele defende tortura como método de investigação, o assassinato como instrumento de segurança pública, o fim das etnias indígenas e sua integração na sociedade abrangente.

Alguns desses líderes já estão no poder solapando a democracia, como são os casos de Viktor Orbán, na Hungria, e Netanyahu, que acaba de reduzir os poderes da Suprema Corte em Israel.

É um amplo movimento planetário que reage à crise com grandes passos rumo não somente à destruição da democracia, mas também ao próprio sacrifício da humanidade, uma vez que nega a ameaça global do aquecimento.

Não existe caminho para fazer frente a tudo isso, exceto um grande movimento de solidariedade, uma real frente civilizatória que não pode ser diminuída pelo ranço partidário.

A última esperança de barrar o avanço da barbárie é uma ampla revisão dos erros explorados pela extrema direita. A esperança morrerá quando as tendências hegemônicas invalidarem a própria ideia de trabalho conjunto, reafirmando, no fundo, o salve-se quem puder, que é a palavra de ordem dominante na ascensão dessas forças que não podem ser vistas apenas como algo conjuntural. Vieram para ficar, ainda que alguns de seus expoentes desapareçam no pântano que criaram, como é o caso de Jair Bolsonaro.

Estamos diante de forças planetárias, crescentes, muito atrativas para quem se sente abandonado pela globalização ou traído por políticos voltados para seus próprios interesses. O anarcocapitalismo de Milei foi bem recebido por jovens eleitores; Trump, apesar de tudo, é favorito nos EUA.

A possível virada na Argentina ou mesmo a vitória de Trump deveriam levar a uma reflexão maior que a simples perda de um Mercosul ou impulso para que os russos destruam a Ucrânia. Não somente os países serão condenados à solidão, mas principalmente as pessoas mais vulneráveis.

Artigo publicado no jornal Estadão em 18/08/2023

Fonte: Blog do Gabeira

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

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