8 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Pedaladas demais

A incrível obra que não agrada a ninguém.

Foto: Hélvio

Com o sucesso das Lambretas e Vespas na Europa nos anos 1960, os fabricantes italianos voltaram os olhos para o Brasil, antevendo um mercado interessante e até a instalação de uma fábrica. No entanto, desistiram logo do investimento, resumindo-se a algumas centenas de unidades exportadas. Motivo: veículos com pneus de diâmetro reduzido só servem para pisos regulares, bem planos e sem obstáculos. É uma simples questão de física: ao passarem por um buraco, por menor que seja, pneus pequenos afundam mais e provocam capotamentos com frequência. O péssimo estado das ruas e estradas brasileiras foi, portanto, o grande empecilho.

Isso é planejamento, visão de marketing, conhecimento do mercado e decisão sensata, elementos sempre presentes na rotina dos empresários. Por quê? Muito simples: agem assim porque o dinheiro e o risco são deles. Já os administradores públicos nem sempre decidem com tanto cuidado pelo motivo inverso: o investimento não sai dos seus bolsos, mas dos nossos. E, se é nosso, deveriam ter o respeito, a responsabilidade ou – no mínimo, a cortesia – de perguntar-nos se queremos ou não uma obra.

Na Dinamarca vi uma grande planta industrial erguida para processar lixo, próximo à área urbana de Copenhagen. E reparei que uma das laterais da imensa construção exibia um curioso declive sinuoso desde o topo até a base. Explicaram-me que a comunidade do entorno, informada sobre a necessidade inadiável da obra, em contrapartida exigiu dos projetistas que aproveitassem aquela estrutura altíssima para nela acoplar uma pista de esqui artificial. Coberta de neve nos meses de inverno, é sucesso e diversão gratuita para todos. Em Berlim, o estande de vendas montado ao lado de um canteiro de obras ficou tão bonito que – a partir de diálogos com os moradores do bairro – foi mantido de pé e convertido numa área de convívio, com biblioteca, sala de jogos e outros entretenimentos abertos ao público. São pequenos exemplos, entre centenas do mundo civilizado, onde o dono do dinheiro é convidado a opinar sobre a utilização dele. Básico, não?

Agora, os belo-horizontinos foram surpreendidos por uma súbita decisão da prefeitura: abrir uma ciclovia na Afonso Pena, engolindo um bom pedaço da pista desde a rodoviária até a praça da Bandeira. A ideia foi tão desastrosa e inoportuna que até os ciclistas, possíveis beneficiários de tal absurdo, estão descontentes e descendo a lenha na proposta. Já surgiram até piadas: convidam o prefeito a inaugurar a ciclovia pedalando um trecho da avenida – um aclive cujo desnível topográfico de ponta a ponta alcança 152 m.

Será que ninguém pensou nisso? Será que nenhum técnico reparou que a capital mineira, implantada sobre morros, tem um dos relevos mais acidentados do país? E que os ciclistas – mesmo aqueles de perfil olímpico – preferem terrenos mais ou menos planos para se locomoverem a trabalho ou a lazer? E o trânsito dos automóveis e motos, sempre engarrafado, não será ainda mais prejudicado? São tantas evidências contrárias que a opinião pública já desconfia ser uma típica obra eleitoreira, sabe-se lá para quê –essas coisas de Brasil.

Imagino como ficarão os cruzamentos da avenida às seis da tarde de uma sexta-feira chuvosa com semáforos apagados, frequentes na capital. Assaltos visando a bicicletas mais caras na Bandeirantes viraram rotina. Logo, o que acontecerá com uma solitária pedaleira circulando inocentemente aí pelas dez da noite, próximo à rua dos Caetés, à rodoviária?

Melhor seria usar R$ 25 milhões para limpar a cidade, que anda imunda. Deve sair bem mais barato, agradar a muito mais gente e – quem sabe? – até garantir uns votos, se esta for a real intenção.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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