19 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Coma a pipoca e cale a boca

Mediocridade, desmandos e patrulhas infestam a sétima arte.

Ilustração da coluna de Fernando Fabbrini – Foto: Acir Galvão

Voltei a ver bons filmes antigos. No mínimo, vale para não perdermos nossas referências de qualidade em roteiro, direção, atuação, fotografia etc. Revi “Vestígios do Dia” pela quarta ou quinta vez, acho. A obra-prima de 1993 de James Ivory serviu como mais um antídoto contra o lixo do streaming. Já cansei dele, e o ritual se repete: tento ver alguma coisa; após minutos de tédio e impaciência, pego o controle e, com o prazer dos carrascos, aperto o botão da condenação à morte.

O cinema dos anos 80 e 90 deixou saudades. Foi um período fértil de sucessos de todos os gêneros, bem diferentes da mesmice, da banalidade, dos desastres imaginativos e estéticos que hoje dominam a indústria de entretenimento – com raríssimas exceções. Baseados em inteligência artificial, algoritmos, consumismo, “influencers” e outros malefícios de nosso tempo, cada vez mais computadores – e não seres humanos talentosos – decidem qual ideia, linguagem, abordagem e modismo devem estar inseridos no “produto filme” para dar lucro e não gerar polêmicas ou ações judiciais de possíveis “ofendidos”.

Na faixa destinada a jovens, repete-se a mesma lenga-lenga disfarçada em novas embalagens. Tipo isto: rapazes e moças mutantes, cada qual detentor de um prodígio físico ou mental (e uma vulnerabilidade) recebem a missão de salvar a humanidade de zumbis asquerosos, monstros galácticos, criaturas bestiais, vilões sanguinários, entidades infernais ou qualquer personificação do mal. Quando tudo parece caminhar bem, há sempre um imprevisto angustiante; um código a ser decifrado, um revés do destino e – oh! Se não fizerem tal coisa em tantos minutos (dispositivo digital contando o tempo que resta tic-tac-tic-tac), tudo estará perdido.

Recheio indispensável: batalhas e mais batalhas no ritmo histérico da computação gráfica alucinada e câmera subjetiva em planos e sequências nauseantes.

Dias atrás, os sindicatos de roteiristas norte-americanos comandaram nova greve. Além de salários baixos, estão indignados com imposições absurdas das produtoras. Uma delas você vê nos letreiros das séries: cada episódio agora é responsabilidade de um roteirista e de um diretor. Nos episódios seguintes, vão trocando as equipes. “Inventem; compliquem, se virem aí porque precisamos manter o espectador preso por ‘x’ episódios”. Essa artimanha de “criação coletiva” sobretudo favorece descaradamente os patrões nas questões trabalhistas e de direitos autorais. Outra queixa é o patrulhamento ideológico crescente e castrador. Estão obrigados a incluírem nas suas criações etnias diversas, nacionalidades, minorias, pessoas com opções afetivo-sexuais variadas ou com deficiências cognitivas ou físicas. Outra exigência: de modo explícito ou velado, “mulheres” sempre devem vencer “homens” – estes seres horríveis de barba e testículos.

Ora, o cinema nunca teve preconceitos nem respeitou tabus. Pelo contrário: desde que era mudo, sempre incluiu personagens bons, maus, excêntricos, curiosos, violentos, pervertidos, maníacos, neuróticos – gente de todas as raças, cores, origens, gostos e fobias. Portanto, calminha aí, repressores de plantão. A justa indignação dos cineastas vem apenas de uma palavra obscena e inimiga da criatividade: “obrigação”.

Outra insanidade: um novo “index librorum prohibitorum” tenta barrar filmes baseados em obras literárias consideradas “ofensivas”. Segundo o PEN America, entidade que zela pela liberdade de expressão, só neste ano nada menos de 1.477 livros entraram na mira da inquisição politicamente correta, moralista e careta.

Numa entrevista à NBC News, o ator e produtor Tom Hanks foi cirúrgico: “Sejamos maduros; vamos ter fé em nossas próprias sensibilidades. Deixem-nos ver, ler, assistir e, então, decidir sobre o que nos ofende e sobre o que não”.

Felizmente, ainda resta vida inteligente e coragem nos bastidores da sétima arte. Até quando, ninguém sabe. Os tiranetes do momento adoram gritar “corta!”.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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