18 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Águas perigosas

Velhas verdades ocultadas e novos temores a bordo.

Foto: Hélvio

O imediato chegou afobado à cabine e foi logo interpelado pelo velho, barbudo e mal-humorado comandante:

– Cumpriu minhas ordens? Pesquisou tudo?

– Sim!

– Como estão na primeira classe?

– Graças ao retorno dos pagamentos, cargos e vantagens, os banqueiros, os armadores e a imprensa só têm elogios para a companhia. Já aqueles outros, que preferem não aparecer, andam impacientes… Exigem que o senhor passe por cima de tudo; que não respeite mais nada e que se dane o resto. Querem maiores recompensas, menos chateação e mais dinheiro.

– E na segunda?

– Andam meio desconfiados. Reclamam dos reajustes de preços nos refeitórios e da ausência de carnes nas refeições; bifes estavam prometidos nos anúncios da viagem, lembra? Também ouvi protestos contra os preços do carvão, combustível essencial para o aquecimento. Mas é gente inofensiva; não se preocupe. Basta um grito, e eles voltam correndo às cabines.

– Terceira classe?

– Ora, comandante, esses são fáceis de enganar; sempre acham que está tudo bem. Ficam nos porões bebendo, dançando, jogando. Eles se contentam com pouco, não ligam para os acontecimentos, desde que não faltem cerveja, música e divertimento. Porém, fiquemos atentos: se piorar o clima e vierem ondas fortes, vão começar a enjoar, a vomitar e podem ocupar o tombadilho, desequilibrando o navio. São muitos.

– E a tripulação?

– Aí, cuidado. Evite ir às casas de máquinas e jamais faça aparições espontâneas. O pessoal que trabalha duro, que entende o mecanismo e que faz o navio funcionar o detesta. Se for mesmo necessário ir a público, leve os guarda-costas. E prepare-se: como sempre, o comandante vai ouvir vaias, ironias, xingamentos e podem até lhe atirar batatas.

– Mas, e os oficiais?

– Bem, os novatos que o senhor trouxe adoram bajulá-lo. Ociosos, deslumbrados com os salários, a boa vida e o luxo dos aposentos, se fartam de champanhe e caviar todo dia com as acompanhantes. Já os velhos marinheiros experientes cochicham muito…

– Como assim?

– Comentam que icebergs nessa rota são prováveis. E repetem que comandar um navio deste tamanho é difícil; que o senhor é demagogo, decadente, egoísta, incompetente, desatento às mudanças do clima; um irresponsável que age em proveito próprio e que despreza o fato de estarmos todos no mesmo barco. Usaram ainda palavras de baixo calão, senhor; prefiro não repeti-las.

O comandante crispou os dedos no timão. Ao pé do ouvido, o imediato sussurrou-lhe:

– As luzes apagadas da proa à popa na semana passada assustaram. Afirmam serem indícios de que as coisas não vão bem…

A inseparável garrafa de rum voltou à boca do comandante. Seu rosto tornou-se rubro; veias saltaram no pescoço; manchas de suor brotaram da farda. E gaguejou:

– Isso é ódio, é motim! Reúna a polícia de bordo, confisque as armas desses covardes! Vou metê-los a ferros! Exijo obediência e silêncio absoluto na embarcação! Quem manda aqui sou eu! – Bufando, nervoso, o comandante engoliu o que restava de bebida na garrafa e, num soco, empurrou a alavanca do painel até a marca “força total adiante”.

Era uma noite calma e estrelada de abril; o Titanic cortava as águas profundas e geladas do Atlântico Norte. Alheios aos fatos e aos perigos da viagem, todos a bordo dormiam serenamente.

Fonte: Professor Taciano

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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