6 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

A lição do pavão

(Válida em Portugal e também aqui)

Lisboa foi a primeira cidade estrangeira que conheci. Tinha 20 anos e o coração disparado pela aventura ao desembarcar do convés do “Augustus”, um belo navio italiano, e botar meus pés no cais de Alcântara. Instalei-me numa pensão nos Restauradores, hoje transformada pelas novas gerações num próspero hotel. Cama e comida eram pagas com uns trocados – na época, escudos – oriundos de bicos como auxiliar de cenografia no Teatro ABC. Foi também uma volta sentimental às origens, já que pelo lado materno recebi o bom sangue português e o honroso nome de um dos maiores poetas da humanidade.

Entre todos os encantos de lá – visuais, culturais, culinários –, tenho uma predileção especial pelos prazeres sonoros. Explico: aquilo não é um sotaque; é uma canção permanente. A ouvir um lusitano a falar dá na gente vontade de sair a dançar um fado e a cantar seus versos – assim mesmo, com os verbos no infinitivo, sem os irritantes gerúndios que dominam as conversas das teleatendentes.

Em Portugal, o português é claro, raiz, direto ao ponto, sem frescuras. Os mal-entendidos ficam para nós, falantes do português-brasileiro. Numa feira, um amigo paulista aponta para uma pilha de laranjas e pergunta ao dono: “são doces?” Resposta genial: “não ‘sinhoire’, são laranjas. Os doces estão do outro lado”. O turista indaga o garçom se o restaurante fecha às segundas-feiras. Resposta didática: “não fechamos às segundas-feiras porque também não abrimos nesses dias”. Num táxi, o motorista ouve atento o casal de brasileiros que tagarelava. Ao chegar ao destino, inquire-os gentilmente:

– Perdão, mas que diabo de língua é essa que estão a falar que eu cá entendo tudo?

Esses dias, o vetusto senhor brasileiro de alcunha cefalópode brindou-nos com nova coleção de vexames de seu vasto e crescente acervo. Numa entrevista ao lado do presidente luso, recebeu da repórter a inquietante pergunta:

– Disse-nos o senhor que os países da União Europeia – entre eles, Portugal – estão a contribuir para a continuidade da guerra na Ucrânia. O senhor mantém essas palavras?

Instado a comprovar ou não tamanha asneira geopolítica, o entrevistado fez-se de nativo saxão, nórdico, maori ou levantino, retrucando “não ter compreendido a questão”. A rapariga repetiu-a, pausadamente; frase clara, simples, em português. Porém, recebeu outra evasiva com a mesma alegação sonora.

Na TV portuguesa, nova saia justa: o âncora perguntou-lhe sobre o recorde de desmatamento na Amazônia que, em março, quase triplicou; o pior desde 2008.

Novamente sem argumentos, tentou uma metáfora esfarrapada – que não colou. Fechando o desastre, buscou passar o pano na ditadura chinesa sob a desculpa de que o regime tirânico comunista é justificável “pelo sucesso econômico do país”.

Sabe-se que certos indivíduos têm uma predileção especial por inverdades e terceirização de culpas e tornam-se especialistas de tais modalidades. E que, quando acuados com fatos incômodos e irrefutáveis, tentam exercer a qualidade atribuída aos quiabos escorregando, tergiversando. Para piorar, o citado senhor já se orgulhou certa feita de não ser muito chegado ao hábito da leitura – meio comprovado de se lapidar a personalidade, ampliar conhecimentos ou, no mínimo, expandir o vocabulário em qualquer idioma.

Por exemplo: as palavras “embromação”, “vergonha”, “desfaçatez” e “cinismo” têm o mesmo significado aqui ou em Portugal. Será que ele sabe?

De fato, como se diz em Lisboa, todo gajo achavascado quer se passar por sapiente.

De lá também vem um ditado engraçado: “o pavão, quanto mais levanta a cauda, mais se lhe vê o rabo”.

Texto publicado em O Tempo, em 27/04/2023

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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