Já vou avisando ao Dória (Dóris) e ao Witzel (Traíra) que meu amigo, Luiz Fernando Eiras Borgerth, o “Boquette”, não morreu de Coronavírus, mas de infarto, ontem, em São Lourenço.
Para escrever, desliguei o mundo, caso contrário, barulho de TV, Facebook e WhatsApp não me deixariam em paz.
Todavia, coloquei duas horas de Julie London, cantora que ele adorava. Aliás, esta era uma das qualidades de Boquette, o bom gosto para todas as belas artes, a começar pela sua, com a qual vou ilustrar esta despedida.
Grande pintor de coisas minúsculas!
Antes, devo explicar o apelido “Boquette”, que só eu podia usar. Por quê? Porque ele não gostava, claro. Mas como fui eu quem o carimbou…
Borgerth, Boquette… Bem feito! Quem mandou me conhecer em 2000? Quem mandou ser meu amigo?
Boquette foi inaugurado, em Belo Horizonte, mais ou menos neste ano, vindo, com sua mãe, a impagável Gilda, de sua cidade natal, a tal de Rio de Janeiro.
A carioquice, em todos os sentidos, era a marca registrada dos dois, principalmente o bom humor.
E dentro do bom humor, a arte de contar piadas. Até Gilda contava…
Piadas não são para qualquer um. O bom contador não conta, ele interpreta a piada. E era o que Boquette fazia, com maestria, todo santo dia. Poucas pessoas me fizeram rir tanto. E com as piadas mais indecentes, sujas e pornográficas. Mas não contava a qualquer um. No fundo era um pudico.
Contava as piadas mais cabeludas (ou raspadinhas), mas era incapaz de colocar estas indecências em suas telas. E olha que eu insistia, pedia. Para mim, a pedidos e súplicas, ele pintou uma suruba, deve ser a única de seu repertório. Fora disso, em seu trabalho, tinha muita mulher pelada, mas sempre discretas, no máximo um peitinho à mostra.
Em minha encomenda, imaginem onde enfiou um guarda-chuva…
Que mais? Tanta coisa que é difícil continuar sem perder o rumo.
20 anos de cumplicidade. 15, quase que diariamente, até ele mudar-se de mala, cuia e pincéis para a pacata São Lourenço.
Não vou falar dos defeitos dele. Nem dos meus. Nossos amigos conhecem todos.
Boquette, flamenguista até o talo, neto de um dos fundadores do clube, encarnava perfeitamente a frase: “Nunca fiz amigos bebendo leite”.
Era nossa característica principal, principalmente nos belos anos na Livraria da Travessa, local que tive a honra de aplica-lo e de onde ele só saiu, quando deixou BH.
E na Travessa o cenário era: whisky, cigarros, mulheres, piadas. Quando dava tempo: pintura, música – ele adorava rock’n’roll – artes em geral e mais whisky, cigarros, mulheres, piadas.
Não tenho vontade agora de repetir nenhuma piada dele. Não teria graça, mesmo porque não tenho a competência, me contento em ser o guardião.
Mas preciso explicar o título deste Adeus. Conde Travassos era o personagem das piadas mais engraçadas. Uma série. Um nobre português, com a sinceridade e a sutileza de um Bolsonaro, talkei?
Preciso falar que Boquette era tarado pelo belo sexo oposto, até demais? Não.
Baixinho e invocado como todo baixinho. Deveras inconveniente quando estava totalmente “bêbedo”, como em um de seus vários casos verídicos.
Ele, mesmo se achando um James Dean, era engraçado até de boca fechada. Suas roupas de carioca em Minas, como as do Elvis no Havaí…
Muito inteligente, culto e talentoso, logo, sem a mínima paciência para com a burrice alheia. Custava a perder a dele, mas… Não era Jó.
Preguiçoso e adepto do jeitinho carioca de viver e conseguir as coisas, j me fez passar muita raiva. Raiva que não durava porque, logo depois, virava “causo”, a “última do Boquette”…
Até que a última foi ontem!
Sozinho.
Tenho muitos quadros, telas dele. A maioria ganhei, o último comprei em suaves parcelas.
Domingo passado foi a derradeira vez que nos falamos, pelo famigerado WhatsApp. Eu explicava justamente que não tinha conseguido transferir a grana pra conta dele, porque o Banco só fazia a transação em dias úteis.
Ele respondeu (calmaí, tá no meu celular): “Tudo bem. Obrigado. Abração”. Isso, às 18h43. Pessoalmente falava horas, ao telefone, segundos.
(Julie London me avisa que estou escrevendo há 40 minutos, com pausas para…)
Às 21h59, do mesmo domingo, sua última mensagem esnoba comentários: a foto de um cachorro vira-lata, no balcão de um boteco, com uma nota de R$ 50 e o seguinte bilhete na coleira: “5 Heineken 1 pcte de amendoim”.
Sua última mensagem foi uma piada, claro! Respondi com o típico “kkkkkkkkkkkkk” e, dia seguinte, ontem, segunda, mandei o comprovante do depósito da penúltima parcela do quadro que comprei.
Ele não respondeu. Achei estranho e nunca saberei. Morreu depois de enviar o cachorro? Morreu de madrugada? Pela manhã? Com toda certeza antes das 10h31 quando enviei o comprovante.
Infelizmente, há alguns anos, está cada mais frequente perder amigos. É horrível. No caso dele, pior, sozinho, longe de todos, longe de seu querido Rio de Janeiro.
Quando sua mãe morreu, a já citada Gilda, foi cremada. E ela queria ter as cinzas jogadas no mar, da Pedra do Arpoador. Fui com ele para o Rio, cumprir o último desejo de Gilda… Quem nos conhece também conhece como terminou a história, umas das mais engraçadas de sua lavra. Virou crônica minha, claro.
Eu gostaria de ter herdado as cinzas dele. Com certeza as espalharia do alto da mesma pedra, no oceânico Atlântico, com uma garrafa de whisky ao lado. E, de preferência, sem o terrível e traiçoeiro “vento sudoeste”…´
Em vez disso, fiquei sabendo pelo Facebook, quando ele já tinha sido enterrado em São Lourenço.
São Lourenço! No mínimo não combina com ele, com a vida que teve; não tem graça, tem nada a ver.
Julie London está me mandando parar, diz que só um livro daria conta de contar tantas histórias; algumas aqui impublicáveis, a maioria muito engraçada.
Pena também não ter um whisky agora. Leite? Nunca! Ele viria puxar minha perna. Pior, seria um insulto. Um insulto “campeão mundial”, “pra dedéu”. “Oh Yeah!”.
PS: Valeu, meu Garoto de Ipanema. Dia 3 de maio, comemoro e “bebemoro” teus 75 anos pra você, sem você. Se tiver plateia, conto até minha piada favorita do Conde Travassos. Mas, devo adverti-los que o final dela é um “pouco picante” e que começa singelamente assim: “Havia no Porto um chupador de bucetas….”.
Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.
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