14 de maio de 2024
Cinema

O Homem Ideal / Ich Bin dein Mensch

De: Maria Schrader, Alemanha, 2021.

(Disponível na Prime Vídeo em 03/2023).

Que coisa boa é você se aventurar por um filme do qual não tem referência alguma e ser surpreendido por ele! Foi o que aconteceu com este Ich Bin dein Mensch, nos países de língua inglesa I’m Your Man e no Brasil O Homem Ideal, produção alemã de 2021. A diretora é Maria Schrader, a atriz principal é Maren Eggert.

Muito prazer, Maria Schrader, muito prazer Maren Eggert. Eu sou Sérgio Vaz, aquela ali é Mary Zaidan, e nós ficamos encantados com o trabalho de vocês. De vocês duas, do ator Dan Stevens, que faz o homem dos títulos, e de Emma Braslavsky, a autora da história.

Pelos cartazes, pelas fotos promocionais, pela sinopse na Prime Video (a mesma que está no IMDb), parece uma comedinha romântica simplesinha, despretensiosa. Eis a sinopse:

“Para obter fundos de pesquisa para seus estudos, uma cientista aceita a oferta de participar de um experimento extraordinário: por três semanas, ele deverá viver com um robô humanóide, criado para fazê-la feliz.”

Mas O Homem Ideal é bem mais que uma comedinha romântica simplesinha, despretensiosa. Sim, claro, tem um lado cômico – mas fala de um monte de temas importantes, sérios, densos, sobre as relações afetivas, sobre realização profissional. O que as pessoas esperam, afinal, de um relacionamento. Como conviver com as frustrações, as angústias, as decepções. O eterno e sem solução problema de o que fazer com nossos pais na velhice. E, sim, essa questão cada vez mais presente em nossas vidas, cada vez mais perto de nós que é a chegada irreversível da inteligência artificial.

O que mais me impressionou no filme foi a imensa, fantástica sensibilidade com que tudo é colocado. É sensibilidade a toda prova, à flor da pele – e, para isso, conta muito, além do trabalho da diretora Maria Schrader, do roteiro elegante, inteligente (de autoria dela mesma, em parceria com Jan Schomburg), a interpretação dessa moça Maren Eggert.

Meu, que beleza de atuação!

Um homem bonito, simpático, que faz tudo para agradar

O filme abre com a protagonista da história, Alma Felser, chegando a um night club e sendo recebida por uma moça toda solícita e simpática, que leva a recém-chegada à mesa em que está Tom (o papel de Dan Stevens). Tom, um sujeito muito bonito, parecia que estava esperando por Alma – a sensação que o espectador tem, assim de imediato, é que aquele é um encontro marcado em site de relacionamento.

Ao som de “Puttin’ on the Ritz” com uma grande orquestra, dezenas de casais estão dançando no salão.

Tom é todo sorrisos, todo cativante, todo sedutor: – “É uma mulher muito bonita, Alma.”

Ahnnn… Não é bem verdade. Alma Felser não chega a ser propriamente bonita – e vai aí uma bela sacada dos realizadores. Além de excelente atriz, Maren Eggert tem essa característica que é muito importante na composição do personagem: não é uma mulher linda.

Não é feia, não, de forma alguma. Não – isso não. Mas digamos que é uma mulher assim normal, como tantas e tantas e tantas outras. Há momentos até em que fica bonita – mas não é, de forma alguma, uma beldade.

Suavemente, Tom pega na mão que ela colocou em cima da mesa e, depois de ter dito aquela gentil mentirinha, se sai com o seguinte:

– “Seus olhos são como lagos onde eu adoraria mergulhar.”

Uma jovenzinha ingênua talvez gostasse da frase feita absolutamente melosa, digna de uma fotonovela, um romance para moças daquelas coleções tipo Sabrina – mas Alma não é jovenzinha, e muito menos ingênua. Está aí com uns 45, 47 anos; é professora e pesquisadora, com doutorado, na área de linguística – sua especialidade é a escrita cuneiforme, aquele tipo de escrita feita com ferramenta de cunha na pedra ou na argila, uns 3 mil anos antes de Cristo, no Oriente Médio, em especial na Mesopotâmia. Veremos que ela chefia uma equipe de pesquisadores, e seu grupo está trabalhando numa tese que considera inédita, inovadora – a de que os antigos sumérios não se utilizavam da escrita apenas em documentos referentes a registro de bens, marcas de propriedade, cálculos e transações comerciais, mas também como forma de expressão artística, com metáforas, poemas.

Mais adiante veremos também que Alma havia saído, recentemente, de uma relação importante, longa, com um colega do ambiente universitário, acadêmico, Julian (Hans Löw). Bem propositadamente, o filme não mostra de maneira explícita quem quis acabar com a relação; há indícios de que foi Julian – ele está com uma nova namorada, Steffi (Henriette Richter-Röhl). O que o espectador percebe, o que fica claro, óbvio, é que Alma ainda está abalada com a separação. Não conseguiu ainda se recompor completamente.

Para uma mulher que está se encaminhando para os 50 anos, que não se recuperou de uma separação, que é uma cientista especialista em escrita cuneiforme, não chega a ser sedutor ouvir a frase “Seus olhos são como lagos onde eu adoraria mergulhar”.

Mesmo vinda de um homem muito bonito, que está fazendo todo o possível para agradá-la.

Ainda mais quando a mulher sabe que aquele ali não é propriamente um homem, um ser humano.

Homem, em alemão, é mann – bem parecido com o inglês, como em tantos casos. Mensch, a palavra do título original, é ser humano. I’m Your Man, o título em inglês, portanto, é legal porque lembra a canção de Leonard Cohen e o título de seu antológico disco de 1988, mas não é a tradução exata do título alemão. Ich Bin dein Mensch (mostra o tradutor do Google, e a Inês, minha filha do coração que há anos é mezzo tedesca, confirmou e explicou) é “eu sou seu ser humano”, “eu sou seu humano”. Menschheit é humanidade, e humano como adjetivo é menschlich.

O bonito Tom se parece demais, tremendamente, com um ser humano, um ser menschlich – mas é um robô.

Tom aprende com a experiência, com o que vê

Este é o cerne da trama: Tom é um robô. A fábrica está começando a lançar o produto – robôs humanóides, com absolutamente todas as características físicas dos seres humanos, dotados de uma inteligência fantástica, extraordinária. E mais ainda – e é aí que reside o grande diferencial: feitos sob medida para a pessoa que será proprietária de cada robô. Customizado. Tom foi desenvolvido para fazer tudo para tornar Alma feliz.

O produto ainda está em fase de teste. Está quase pronto para ser lançado no mercado. Os fabricantes precisavam executar os últimos testes. Mas o mais importante de tudo: é preciso que a sociedade teste e decida se aprova ou não a venda, o consumo desse novo produto.

Pessoas destacadas de diversas áreas da sociedade precisam aceitar fazer o teste, conviver com os robôs em suas casas – e depois apresentar seu parecer. Devem ser autorizados a venda e o uso deles?

Assim. o reitor da universidade, Roger (Falilou Seck), convenceu Alma a se prestar ao teste de ficar três semanas com Tom em sua casa – em troca, a fábrica faria uma doação à universidade, dinheiro que seria aplicado no pagamento da equipe de Alma em suas pesquisas.

O problema é que Alma Felser não é uma leitora de romances açucarados de livrinhos da coleção Sabrina. É uma mulher madura, uma cientista, uma pessoa absolutamente racional, que não acredita sequer em Deus – e ainda dói a separação recente.

Com ela não funcionam as frases tipo “Seus olhos são como lagos onde eu adoraria mergulhar”.

Mas Tom é um produto muito bem elaborado. Ele aprende com a experiência, com o que vê, ouve, sente. E vai se esforçar para agradá-la. Vai fazer de tudo, absolutamente tudo – inclusive na cama, no sexo – para agradá-la.

E é fundamental registrar: esse rapaz Dan Stevens está ótimo, está perfeito como o robô de ultimíssima geração, programado para dar prazer, alegria, àquela mulher. Há momentos em que o olhar dele fica idêntico ao que a gente imagina que seria o olhar de uma máquina igualzinha a um ser humano. Para isso contribui, claro, um muito bem elaborado – e até um pouco sutil, na medida do possível – esquema de efeitos especiais que tornam mais luminoso o azul brilhante dos olhos do ator.

Um bom ator inglês, uma ótima atriz alemã

Dan Stevens…

Diacho! Eu não tinha reconhecido Dan Stevens!

Dan Stevens, inglês do Surrey, nascido em 1982, fez o papel de Matthew Crawley em 25 episódios das três primeiras temporadas de Downton Abbey, de 2010 a 2012. Matthew Crawley era o primo distante de Lord Grantham, um jovem advogado, que fica conhecendo Lady Mary, a primogênita do conde; os dois se apaixonam, se casam – e, no final da terceira temporada, muito de repente, o rapaz morre.

Como milhões de fãs da magnífica série, fiquei chocado ao saber que Matthew Crawley morreu de repente não porque o criador da saga, Julian Fellowes, quisesse – mas porque o ator que o interpretava simplesmente resolveu que não faria uma quarta temporada daquela série de sucesso planetário.

Pois é: Tom é o papel desse Dan Stevens que quis porque quis cascar fora de Downton Abbey.

Essa excelente Maren Eggert nasceu em Hamburgo, em 1974; estudou artes dramáticas em Munique de 1994 e 1998 e, desde 2000, pertence ao grupo de atores de uma companhia em sua cidade natal. Divide seu tempo entre o teatro e o cinema; sua filmografia tem 30 títulos – e não reconheço nenhum deles. Aparentemente, pelo que fucei no IMDb, ela não costuma ser a protagonista – este O Homem Ideal aqui foi uma das poucas ocasiões em que foi a principal atriz.

Falta agora uma palavrinha sobre Maria Schrader.

Como a atriz Maren Eggert, a diretora Maria Schrader nasceu na então Alemanha Ocidental, a República Federal da Alemanha – na cidade de Hanover, em 1965. Começou a carreira de atriz em 1988, e nunca deixou de trabalhar diante das câmaras. Tem 53 títulos no currículo, incluindo várias séries de TV. Em 1999, foi uma das protagonistas de Aimée e Jaguar, um filme bem marcante, dirigido por Max Färberböck, passado na Berlim de 1943, em que a mulher de um oficial nazista tem uma caso de amor com uma judia.

Já dirigiu seis filmes. O segundo, Liebesleben (2007), ganhou três prêmios na Alemanha. O terceiro, Stefan Zweig: Adeus, Europa (2016) mostra os anos em que o grande escritor austríaco passou no exílio. Em 2020 ela dirigiu os quatro episódios da minissérie Nada Ortodoxa. E, em 2022, depois deste O Homem Ideal aqui, dirigiu, nos Estados Unidos, Ela Disse/She Said, sobre as duas repórteres do New York Times que escreveram uma série de reportagens sobre casos de assédio sexual em Hollywood, dando início ao movimento #MeToo.

Um filme sensível que faz pensar

O Homem Ideal ganhou 10 prêmios e teve 16 indicações. Foi aceito para participar na competição do Festival de Berlim, e Maren Eggert levou o Urso de Prata de melhor atuação. Foi o filme indicado pela Alemanha para concorrer a uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Vejo no Rotten Tomatoes, o side agregador de opiniões, que o filme tem sido muito bem recebido. Tem 96% de aprovação no Tomatometer, a média obtida de 145 críticas analisadas pelo site, e 81% de aprovação entre os leitores do site.

O “consenso dos críticos” é este, segundo o Rotten Tomatoes: “Com um conceito instigante levado à tela com humor por um par de atores que deu ótima combinação, I’m Your Man é uma comédia romântica sobre I.A. cuja inteligência é qualquer coisa, menos artificial”.

Bonitinho, isso. Bem bonitinho. “I’m Your Man is an AI rom-com whose intelligence is anything but artificial.”

Usei na tradução o adjetivo “instigante”, que meu amigo Sandro Vaia detestava, por ser usado demais. No original é bem melhor, “thought-provoking” – que faz pensar, que provoca pensamentos.

Sim, é bem isso. Este Ich Bin dein Mensch é um filme feito com sensibilidade saindo pelo ladrão. Faz uma beleza de retrato psicológico de sua personagem, essa Alma, que tem até no nome aquilo que o homem ideal que construíram para ela não tem. E faz pensar.

Cinema é basicamente imagem em movimento – mas é também pensamento, palavras, conceitos. Vou transcrever aqui o que Alma Felser conclui de sua experiência. É um belo texto, e eu adoro belos textos.

“A história humana está cheia de supostas melhorias cujas terríveis consequências só ficam claras décadas ou mesmo séculos depois. Depois de minha experiência com um robô humanóide chamado Tom, eu posso dizer com certeza que um robô projetado para substituir um marido ou esposa é uma dessas supostas melhorias. Não há dúvidas de que um robô humanóide feito sob medida para satisfazer às preferenciais individuais pode não apenas substituir um parceiro, mas pode até parecer um parceiro melhor. Eles preenchem nossas necessidades, satisfazem nossos desejos, e eliminam nossa sensação de estar só. Eles nos fazem felizes. E o que poderia haver de errado em ser feliz?”

Há uma pausa na leitura que Alma Felser-Maren Eggert faz das conclusões que ela escreveu. A voz da atriz – treinada, testada – é bela, cativante, mesmo que a gente não compreenda uma palavra do que ela está dizendo, a não ser através da leitura das legendas.

Ela prossegue:

“Mas os humanos foram feitos para ter todas as suas necessidades preenchidas com o aperto de um botão? Não são o nosso desejo insatisfeito, a nossa imaginação e a nossa infindável procura pela felicidade as fontes de nossa humanidade? S permitirmos ter humanóides como esposos, vamos criar uma sociedade de viciados, empanturrados e cansados de ter as necessidades permanentemente atendidas e de um fluxo constante de reconhecimento pessoal.

“Que ímpeto teríamos para confrontar indivíduos convencionais, para nos desafiarmos, para enfrentar conflitos, para mudar? É de se esperar que qualquer pessoa que viva por longo período com um humanóide venha a ser incapaz de sustentar um contato humano normal.”

Uma beleza de filme.

Anotação em 3/2023

O Homem Ideal/Ich Bin dein Mensch

De Maria Schrader, Alemanha, 2021.

Com Maren Eggert (Alma Felser),

Dan Stevens (Tom)

e Sandra Hüller (a relações públicas da fábrica), Hans Löw (Julian, o ex de Alma), Wolfgang Hübsch (Felser, o pai de Alma), Annika Meier (Cora). Falilou Seck   (reitor Roger), Jürgen Tarrach (dr. Stuber), Henriette Richter-Röhl (Steffi, a nova mulher de Julian), Monika Oschek (mulher no café), Inga Busch (Regina), Mignon Remé (Rita), Karolin Oesterling (Chloé), Marlene-Sophie Haagen (Jule), Victor Pape-Thies (Leon), Amal Keller       (barista), Christoph Glaubacker (Stefan),

Roteiro Jan Schomburg & Maria Schrader 

Baseado em conto de Emma Braslavsky    

Fotografia Benedict Neuenfels

Música Tobias Wagner 

Montagem Hansjörg Weißbrich

Casting Anja Dihrberg-Siebler

Desenho de produção Cora Pratz      

Figurinos Anette Guther

Produção Lisa Blumenberg, Letterbox Filmproduktion, Südwestrundfunk (SWR).

Cor, 108 min (1h48)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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