8 de maio de 2024
Cinema

O Eterno Feminino / Los Adioses

De: Natalia Beristáin, México, 2017

Nota: ★★½☆

(Disponível na Netflix em 7/2023.)

Alguém de língua ferina e gosto especial por ironia, tipo Pauline Kael, poderia dizer que este Los Adioses, no Brasil O Eterno Feminino, sobre Rosario Castellanos, tem uma boa qualidade: ele deixa o espectador bastante curioso para saber mais sobre essa escritora, poeta, diplomata e feminista mexicana, hoje seguramente bem menos conhecida do que deveria.

Mary comentou isso comigo, como uma brincadeira, uma galhofa, depois que vimos o filme – caprichada produção mexicana de 2017, dirigida por Natalia Beristáin – e ela foi à Wikipedia e nos deslumbramos com informações sobre Rosario Castellanos (1925-1974).

Brincadeira à parte, Los Adioses não pretende mesmo ser uma cinebiografia da escritora, e isso fica bastante evidente. A intenção da diretora Natalia Beristáin e dos roteiristas María Renée Prudencio e Javier Peñalosa foi fazer um filme especificamente sobre a história de amor de Rosario e de Ricardo Guerra, desde que se conheceram, estudantes universitários e ativistas de esquerda na Cidade do México no início dos anos 1950, até o reencontro na maturidade e o casamento, que durou de 1958 a 1971. Os dois foram colegas como estudantes e depois como professores da Universidad Nacional Autónoma de México.

Essas datas não aparecem no filme, já que ele, repito, não pretende ser uma cinebiografia, e sim o relato de uma história de amor.

E o que o filme mostra é uma história de amor tristíssima. Um amor imenso, descomunal – mas fadado à infelicidade.

Uma coisa que não tinha jeito algum de dar certo – e, diabo, persistir no erro é diabólico. Mas como convencer disso uma mulher apaixonada?

O que este Los Adioses nos conta sobre a mexicana Rosario Castellanos me fez lembrar duas criações de artistas portugueses. Aquele exagero à enésima potência de Florbela Espanca – “Não és sequer a razão do meu viver / Pois se tu és já toda minha vida. (…) Podem voar mundos, morrer astros / Tu és como um Deus, princípio e fim”. E a definição mais que perfeita de folie à deux, criada por Camilo Castelo Branco em 1861: amor de perdição.

Um filme de close-ups. Um retrato, uma peça de câmara

Los Adioses – me ocorreu – é um filme de close-ups.

A maior parte das vezes em que vemos os atores que interpretam Rosario e Ricardo – e eles estão em cena praticamente o tempo todo –, a câmara da diretora de fotografia Dariela Ludlow os mostra em close-up.

E toda a estrutura da narrativa é uma coisa fechada, focada nos dois personagens, apenas. O mundo ao redor, a conjuntura, o que está acontecendo ao redor deles importa pouco. Se fosse um quadro, Los Adioses seria um retrato, jamais um afresco. Se fosse música, não seria uma sinfonia, e sim uma peça de música de câmara.

Não é plano geral – é close-up.

O filme abre com uma sequência de sexo – suave, nada, nada explícita. Ao contrário: as imagens são bastante enevoadas. Corta, e vemos o rosto de uma mulher deitada em sua cama, sozinha. Claro: o sexo era no sonho.

Rosario vira-se para o criado-mudo, pega um cigarro, acende, ainda deitada.

Corta, e estamos no lançamento de um livro de Rosario Castellanos, Balún Canán. A autora está lendo um trecho do livro: – “Sou uma menina, e tenho sete anos de idade. Os cinco dedos da mão direita e dois da esquerda”.

O espectador, obviamente, não é obrigado a saber, mas o romance Balún Canán, o primeiro dos três que ela escreveu, é de 1957. Rosario publicou ainda três volumes de contos, 11 de poesia, cinco de ensaios e dois de teatro. Após sua morte, seria publicado um livro com suas cartas a Ricardo Guerra.

Rosario está lendo um trecho de seu romance quando Ricardo Guerra chega à livraria. O espectador não mexicano, não conhecedor da história da escritora pode não saber o nome do sujeito, mas a diretora Natalia Beristáin deixa claríssimo, mais do que óbvio, que aquele homem era um ex da autora, que, no meio da leitura, o vê chegar no meio das pessoas reunidas ali na livraria.

Corta, e ouvimos a voz em off de Rosario: – “Meu querido Ricardo. Comecei a escrever esta carta no momento em que cheguei à Espanha. Estava muito triste, e o pior é que as pessoas notam. Assim, elas me deixam sozinha, e é disso que preciso para ficar com você.”

Estamos agora vendo uma jovem Rosario escrevendo sua carta em Madri. Primeiro em um quarto que divide com outra moça, depois – numa tomada belíssima – sentada em uma grande escadaria, provavelmente na entrada de um prédio de universidade. Dezenas de pessoas passam por ela, subindo e descendo a escadaria, e ela permanece alheia ao mundo, escrevendo num caderno apoiado em suas pernas.

O texto da carta de amor que ela escreve é escancarado, exagerado como um verso de Florbela. – “Você não se sente um pouco incomodado por significar tanto para uma pessoa?”, ela pergunta, lá pelas tantas. “Porque você precisa saber de uma coisa: não consigo amar uma pessoa se não a admiro. Aqui me despeço. E, com a mão no coração, juro que sou completamente fiel a você. Estou muito mais feliz pensando em você do que falando com as pessoas.”

Close-up da jovem Rosario na escadaria, corta, close-up da Rosario madura sendo aplaudida na livraria em que lança seu livro. Corta, close-up de Ricardo aplaudindo a ex.

Pouco depois, lançamento do livro encerrado, Rosario e Ricardo estão conversando, ao ar livre, em uma praça ou parque, um lugar bonito, agradável.

No diálogo que rola ali, o espectador fica sabendo que, lá no passado, ele a pediu em casamento – e fugiu para casar com outra mulher. O casamento tinha acabado, naquele momento ele esperava a sentença do divórcio. Daí a pouco os dois estão vivendo juntos.

E aí é que está. Conviver um com o outro era simplesmente insuportável.

Do insuportável ao trágico a distância não foi muito grande.

Pontos soltos, episódios contados sem qualquer ordem

O roteiro que Javier Peñalosa e María Renée Prudencio escreveram faz o tempo ir e vir, ir e vir, ir e vir, como bola de pingue-pongue, de tênis. Isso tem sido bastante comum – hoje em dia são raros os filmes em que se respeita a ordem cronológica dos acontecimentos.

Não há problema algum, para o espectador, que duas atrizes façam Rosaria – Karina Gidi a madura, Tessa Ia a jovem – e dois atores façam Ricardo – Daniel Giménez Cacho o maduro, Pedro De Tavira o jovem. Quanto a isso, não há problema algum: a gente se acostuma rápido, e com uns 10, 15 minutos de filme já não há estranhamento algum. Os dois atores que fazem Ricardo têm semelhanças físicas, o uso de óculos ajuda.

A moça Tessa Ia, atriz e cantora, 22 anos em 2017, o ano de lançamento do filme, é linda. Karina Gidi, 46 anos em 2017, é uma bela mulher, um rosto nada Barbie, mas forte, poderoso – uma excelente atriz.

Ir e vir no tempo não é problema, atores diferentes para cada fase da vida não é problema. O problema, me pareceu, é que os roteiristas e a diretora fizeram questão de não emendar os pontos da história. Eles lançam na tela eventos de quando os dois eram jovens e eventos de que quando já estavam maduros como se a ordem das sequências não obedecesse a qualquer tipo de lógica. Como se fossem músicas de uma playlist sendo tocada em modo randômico, ao léu, ao azar. Shuffle.

Só para dar um exemplo: lá pelas tantas vemos Rosario-Karina Gidi com a saia ensanguentada, sendo levada por Ricardo para um hospital. E pronto – não há mais qualquer referência a isso. Fica lá aquele ponto solto, sem ligação com coisa alguma.

Sim, Rosario teve não um, mas vários abortos naturais, involuntários, ficará sabendo o espectador que depois de ver o filme consultar o Tio Google. Mas, no filme, é isso – um ponto solto, que não se liga a nada. E este é só um exemplo.

Tá bom, a diretora e os roteiristas quiseram fazer assim. Acharam bonitinho, acharam estiloso contar a história sem contar direito a história.

Então tá.

Uma realizadora jovem que sabe dirigir atores

Los Adioses teve nada menos de oito indicações ao Ariel, o prêmio da Academia Mexicana. A diretora Natalia Beristáin foi indicada, assim como os quatro atores centrais. Essa impressionante Karina Gidi levou o prêmio.

Natalia Beristáin é muito jovem – nasceu em 1981, na Cidade do México. Este Los Adiosos foi o sexto título que ela dirigiu, e o terceiro longa-metragem. Havia começado com dois curtas, e dirigiu também uma minissérie de TV, Réquiem por Leona Vicario. Seu primeiro longa, No Quiero Dormir Sola, de 2012, teve cinco indicações ao Ariel, inclusive na categoria de melhor filme, e levou o prêmio de melhor atriz para Adriana Roel. As indicações são de que a direção de atores é um de seus maiores talentos.

Aprendo que Los Adioses, o título original do filme, vem do título de um poema de Rosario Castellanos. E que The Eternal Feminine, o título do filme nos países de língua inglesa, assim como o brasileiro O Eterno Feminino, não são invencionice bizarra dos distribuidores.

Diz um trechinho do longo texto da Wikipedia sobre essa mulher que deveria ser muito mais conhecida:

“Sua obra trata de temas políticos, já que concebia o mundo um ‘lugar de luta em que a pessoa está comprometida’, como expressou em seu livro de poemas Lívida luz. Considerava a poesia ‘uma tentativa de chegar à raiz dos objetos’. Tratava cada tema ligando-o com o cotidiano e com o interesse pelo papel da mulher na sociedade e pela crítica do enfoque sexista, exemplificado pelo seu conto ‘Lección de cocina’: cozinhar, calar-se e obedecer ao marido. Segundo um artigo de Mercedes Serna, através da sua obra ‘Castellasnos fará um levantamento irônico e jocoso da história da mulher no México, através de uma série de personagens femininas’.

“Seus próprios sentimentos se refletem em seus escritos: no conto ‘Primera revelación’, descreve sua experiência como uma menina discriminada em relação ao seu irmão; o poema em prosa ‘Lamentación de Dido’ se inspira no desamor de seus amor de muitos anos, Ricardo Guerra; o romance Rito de Iniciación, também de conotações autobiográficas, focaliza os conflitos de uma mulher dedicada aos estudos para escapar dos preconceitos conservadores da província e enfrentar a concorrência profissional na cidade.”

Sim. A verdade é que Los Adioses dá vontade de a gente conhecer mais sobre essa fascinante Rosario Castellanos.

Anotação em julho de 2023

O Eterno Feminino/Los Adioses

De Natalia Beristáin, México, 2017

Com Karina Gidi (Rosario madura)

Daniel Giménez Cacho (Ricardo maduro),

Tessa Ia (Rosario jovem),

Pedro De Tavira (Ricardo jovem),

e Ari Albarrán (Lolita jovem), Hayde Boeto (Lola madura), Raúl Briones (Luis Villoro), David Gaitán (Sergio Magaña), Danae Reynaud (a moça do piano), Luis Eduardo Yee (Raúl)

Roteiro Javier Peñalosa, María Renée Prudencio

Fotografia Dariela Ludlow

Música Esteban Aldrete

Montagem Miguel Schverdfinger

Desenho de produção Carlos Y. Jacques

Figurinos Anna Terrazas

Na Netflix. Produção Maria Jose Cordova, Rafael Ley, Gerardo Moran, Stacy Perskie, Woo Films, Zamorra Films

Cor, 85 min (1h25)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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