14 de maio de 2024
Cinema

O aviso de morte / The missing juror

De: Budd Boetticher, EUA, 1944

Nota: ★★★☆

(Disponível no YouTube em 4/2023.)

Na primeira sequência de The Missing Juror, no Brasil O Aviso de Morte, a câmara focaliza as mãos enluvadas do assassino. Ele está colocando nos trilhos de uma ferrovia um carro com um homem desacordado, no momento exato em que um trem se aproxima em alta velocidade.

Quando o filme está com 20 minutos, um homem se levanta de um restaurante, após jantar com uma bela mulher. Estão os dois se preparando para deixar o restaurante quando um garçom diz que o homem estava esquecendo suas luvas. O sujeito agradece, enquanto a câmara do diretor de fotografia L.W. O’Connell faz um suave zoom para mostrar as luvas em close-up.

É uma das principais características deste filme policial de 1944, dirigido por Budd Boetticher: ele dá pistas ao espectador. Algumas, como essa de mostrar as luvas do assassino, são pistas claríssimas, evidentes.

É uma forma interessante de contar uma história de mistério. É do jeito preferido de Alfred Hitchcock – e exatamente o contrário do estilo de Agatha Christie. O velhinho inglês gostava que o espectador soubesse de elementos importantes de suas histórias, e achava que assim o suspense era maior. Já s velhinha inglesa, ao contrário, só revelava tudo nas páginas finais. O leitor dificilmente acertaria whodunit – quem fez, quem cometeu o crime, quem matou.

Pois é. O filme de Budd Boetticher não poderia ser chamado de um autêntico whodunit, esse subgênero dos romances e filmes policiais. O roteiro (de Charles O’Neal, baseado em história de Leon Abrams e Richard Hill Wilkinson) vai dando as pistas e, quando enfim se revela abertamente quem matou, qualquer espectador atento já sabia a identidade do assassino.

Os jurados haviam condenado um inocente

O protagonista da história é um repórter – um bom repórter. Joe Keats (o papel de Jim Bannon, nas fotos acima e abaixo) havia acompanhado todo o caso envolvendo a prisão e o julgamento de Harry Wharton, e feito boas matérias para o Record Herald. Alguns anos antes da época em que se passam os fatos, Harry Wharton, um homem rico, havia sido preso, acusado de matar sua namorada, Marie Chapelle, uma bela mulher dos estratos mais pobres da sociedade.

Joe Keats sempre estivera absolutamente convencido de que Wharton era inocente. Mas, graças em boa parte ao testemunho de um tal George Sasbo (George Lloyd), os 11 jurados decidiram que Wharton era culpado, e ele foi sentenciado à morte por enforcamento.

Pouco antes da execução, no entanto, Sasbo, a testemunha-chave, foi baleado e, antes de morrer, contou ao repórter que havia sido subornado pelo verdadeiro assassino de Marie Chapelle, um bandido ex-namorado dela, para mentir no julgamento. Joe Keats divulgou a informação e, na última hora, a execução de Wharton foi suspensa e ele, solto.

Os meses e meses no corredor da morte, no entanto, tinham sido terríveis, e o pobre sujeito tinha perdido inteiramente a saúde mental. Foi internado em um sanatório. Algum tempo depois, houve um incêndio em seu quarto, seguramente provocado por ele mesmo; o corpo estava irreconhecível.

Tudo isso havia acontecido no passado. Agora, a polícia tinha acabado de identificar o homem que estava em um carro atropelado por um trem de ferro numa passagem de nível. Chamava-se Jason Sloan, e a polícia o tinha como o segundo dos 11 jurados do caso Wharton a morrer em acidentes em poucas semanas.

Na verdade, segundo apurou o repórter Joe Keats, Jason Sloan era o quarto. Um quinto estava desaparecido. O Record Herald começou a publicar uma série de reportagens de Joe Keats com o título – bolado por ele – de “O júri amaldiçoado pelo condenado à morte”. As reportagens sugeriam que os demais membros do júri deveriam tomar muito cuidado: suas vidas estavam ameaçadas.

Joe Keats, um mulherengo assumido, irremediável, estava especialmente interessado na bela Alice Hill (o papel de Janis Carter), que havia sido jurada no caso de Harry Wharton.

Alice era dona de um antiquário. Quando o filme está chegando aos 20 minutos, ela vai jantar com um cliente que queria fazer uma grande compra para mobiliar sua casa nova, Jerome Bentley (o papel de George Macready). Por coincidência, Jerome Bentley havia sido o jurado principal naquele julgamento de anos antes.

O garçom entrega a ele as luvas que o filme havia mostrado na cena de abertura.

Um exemplo perfeito de filme B

Nos principais papéis, Jim Bannon, Janis Carter, George Macready, Jean Stevens (essa como Tex, a secretária de Alice), Joseph Crehan (no papel de Willard Apple, o editor do jornal Record Herald). Ninguém nem de perto famoso, em uma produção da Columbia Pictures, que, naquele ano de 1944, lançou filmes com Cary Grant, Jean Arthur, Charles Boyer, Irene Dunne. Ann Miller, Edward G. Robinson, Merle Oberon, Lloyd Bridges, Cornel Wilde, Charles Coburn, Nina Foch – nomes de grande importância na época.

O diretor Budd Boetticher (1916-2001) era um novato: este foi apenas o segundo filme que dirigiu. Era tão iniciante que ainda assinava seu nome de batismo, Oscar Boetticher, Jr.

Um filme curtinho, curtinho – apenas 66 minutos, ante a duração padrão entre 90 e 100 minutos. E de orçamento baixo – o que é perceptível por qualquer espectador mais atento. Ou seja: um perfeito, típico filme B.

E aqui me permito falar um pouco sobre o filme B.

“Hollywood sempre fez filmes de orçamento baixo, mas a designação ‘B’ se originou nos anos 30 com o incremento do programa duplo”, diz o estudioso e professor carioca A.C. Gomes de Mattos em seu interessantíssimo livro A Outra Face de Hollywood: Filme B. O programa duplo, a apresentação de dois filmes em cada sessão – em geral uma produção classe A e outra B –, ele explica, foi uma maneira que os exibidores encontraram para reagir à queda da frequência às salas de cinema nos anos da Grande Depressão que se seguiu à quebra da Bolsa de Nova York em 1929.

Em 1930, a frequência atingiu o índice mais alto até então, de 80 milhões de espectadores por semana, mostra o livro. Em 1931, esse número caiu para 70 milhões e, em 1932, para 55 milhões. “Em 1933, quase um terço dos cinemas foi obrigado a fechar as portas e as salas remanescentes tiveram de baixar o preço dos ingressos”, mostra Gomes de Mattos.

E ele detalha: “Os filmes A eram realizados com orçamentos de aproximadamente US$ 400 mil ou daí para cima (prestige pictures ou specials) e astros que atraíam um vasto público. Duravam 90 minutos ou mais e seus organogramas de filmagem tinham a realização de ensaios e retakes. Os filmes B custavam entre US$ 50 e US$ 200 mil e empregavam artistas com poder de atração moderado, questionável ou desconhecido. O tempo de projeção variava normalmente entre 55 e 70 minutos e a filmagem comumente não ultrapassava três semanas.”

Um filme B bastante bom

Filme B, no entanto, não é sinônimo de filme de qualidade inferior. E bons diretores que começaram suas carreiras fazendo filmes B passaram a receber dos estúdios convites para produções de bom orçamento. Budd Boetticher é um desses. Sua filmografia de 46 títulos inclui a direção do bom western O Homem Que Luta Só/Ride Lonesome (1959) e o argumento de Os Abutres Têm Fome Three Mules for Sister Sara (1970).

Diz dele o mestre Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores: “Foi André Bazin quem chamou a atenção para esse realizador de séries B ao elogiar um de seus westerns, Sete Homens Sem Destino, que contém um extraordinário duelo no final entre Randolph Scott e Lee Marvin. (…) Boetticher assinou filmes de baixo orçamento para a Columbia, para Eagle Lion e para a Universal, até encontrar Randolph Scott. Uma série de obras-primas, produzidas em sua maioria por Harry Joe Brown, seguiu-se.”

E Tulard encerra o verbete assim: “Boetticher é o cinema norte-americano por excelência”.

Um diretor em início de carreira, atores que não eram astros. Jim Bannon (1911-1984), que faz o protagonista Joe Keats, também era um iniciante na frente das câmaras. Vinha de uma carreira como locutor de rádio – de fato, tem uma voz límpida, poderosa. A partir de meados dos anos 1940, firmou-se como ator – sua filmografia tem quase cem títulos, mas nada grandioso.

Janis Carter (1913-1994), que interpretada a bela Alice Hill, apareceu em 43 filmes e/ou séries de TV entre 1941 e 1955. No início da carreira, trabalhava demais, uma coisa impressionante. Em 1942, foram sete filmes. Em 1944, o ano deste O Aviso de Morte aqui, foram seis.

Em meados dos anos 1950, deixou o cinema e se dedicou à televisão. Durante anos, apresentou um programa na NBC ao lado de Bud Collyer.

O Aviso de Morte é tão B que foi maltratado no próprio livro sobre os filmes da Columbia Pictures. Há até um elogio no início do verbete no livro The Columbia Story: “O ex-locutor de rádio Jim Bannon ganhou o primeiro lugar nos créditos em Missing Juror, um filme rapidinho rotineiro que de maneira alguma deixou mal seus realizadores”. Mas comete alguns errinhos factuais que indicam que o redator não se deu ao trabalho de ver o filme.

Fala-se, por exemplo, que o júri foi responsável por mandar um assassino para a cadeira elétrica. Ora, o cara não era o assassino – foi condenado injustamente. E naquele Estado em que se passa a história, cujo nome não é explicitado, a pena de morte era executada por enforcamento. O verbetinho curto fala também em “twist ending”. Ora, não há reviravolta final. Como foi dito no início desse texto, as pistas vão sendo dadas ao espectador, e o final não é absolutamente surpreendente – ao contrário.

E o texto ainda diz que Janis Carter interpretada a namorada de Banon. Não é exatamente a verdade: ao longo do filme, o repórter está a fim da moça, mas ela não quer saber dele – pelo menos até os 46 minutos do segundo tempo…

Ao contrário do redator daquele verbete do livro sobre os filmes da Columbia, Leonard Maltin viu o filme – e, como a Mary e eu, gostou. Deu 3 estrelas em quatro:

“Drama rápido, envolvente, sobre assassino desconhecido que se vinga de um júri que mandou um homem inocente para a morte; orçamento pequeno, mas bastante bom.”

É exatamente isso. Um filme B bastante bom.

Anotação em abril de 2023

O Aviso de Morte/The Missing Juror

De Budd Boetticher, EUA, 1944

Com Jim Bannon (Joe Keats, o repórter),

Janis Carter (Alice Hill, jurada, dona de antiquário)

e George Macready (Jerome Bentley, líder dos jurados/ X), Jean Stevens (Tex, a secretária de Alice), Joseph Crehan (Willard Apple, o editor do jornal), Carole Mathews (Marcy), Cliff Clark (inspetor Davis), Edmund Cobb (Cahan), Mike Mazurki (Cullie), George Lloyd (George Sasbo, a testemunha no julgamento)

Roteiro Charles O’Neal

Baseado em história de Leon Abrams, Richard Hill Wilkinson

Diretor musical Mischa Bakaleinikoff

Fotografia L.W. O’Connell

Montagem Paul Borofsky

Direção de arte George Brooks

Produção Wallace MacDonald, Columbia Pictures.

P&B, 66 min (1h06)

Fonte: 50 anos de cinema

Sergio Vaz

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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