29 de março de 2024
Colunistas Sergio Vaz

Mindhunter – A Primeira Temporada

De: Joe Penhall, criador, EUA, 2017.
Nota: ★★★☆
A primeira temporada de Mindhunter – 10 episódios de cerca de uma hora cada, lançada em 2017 pela Netflix – é uma produção caprichadíssima, bem elaborada em cada quesito. Mas sua maior qualidade é o fato de que se trata de uma história real.
Os nomes dos protagonistas da história foram mudados, e é bem provável que os roteiristas – vários deles, trabalhando sob a coordenação do criador da série, Joe Penhall – tenham tomado algumas liberdades, adaptado alguma coisa aqui, outra ali, ou até mesmo muita coisa, o que é absolutamente natural. Mas as indicações todas são de que a série é bastante fiel aos fatos históricos.
Mindhunters mostra o trabalho de dois agentes do FBI, Federal Bureau of Investigation, a polícia federal americana, nos anos 70, de, através de entrevistas com criminosos condenados e presos, levantar o perfil dos assassinos, em especial os assassinos em série, os serial killers. Aliás, foram eles – John Douglas e Robert K. Ressler – que, juntamente com a psiquiatra Ann Burgess, criaram um departamento específico dentro da estrutura gigantesca, mamutiana do FBI para estudar a psicologia dos criminosos, a Unidade de Ciência do Comportamento. E, sim, foram eles três que inventaram o termo serial killer.
John Douglas, que trabalhou durante 25 anos na estruturação de perfis psicológicos de criminosos, escreveu, juntamente com Mark Olshaker, um livro sobre sua experiência – Mind Hunter: Inside the FBI’s Elite Serial Crime Unit, caçador de mentes: por dentro da unidade de elite do FBI de crimes em série. O livro serviu de base para o trabalho do criador da série e dos roteiristas dos episódios.
Segundo o IMDB, os diálogos nas diversas sequências em que os dois agentes interrogam criminosos na prisão foram baseados na transcrição das entrevistas reais – quase literalmente, palavra por palavra.
Uau!
John Douglas na série ganhou o nome de Holden Ford, e é interpretado por Jonathan Groff. Robert K. Ressler na série se chama Bill Tench, e é feito por Holt McCallany.
A terceira personagem principal da história, a dra. Ann Burgess, ganhou o nome de Wendy Carr, e é interpretada por Anna Torv.
Há uma quarta personagem extremamente importante na história. É uma personagem bastante estranha, que me pareceu às vezes bem pouco plausível. Chama-se Debbie Mitford (o papel de Hannah Gross), é uma estudante de sociologia, antropologia ou algo assim, e se torna, já no primeiro episódio, a namorada do jovem Holden Ford.
Os dois primeiros e os dois últimos episódios são dirigidos pelo aclamado David Fincher, duas indicações ao Oscar, 65 prêmios e outras 113 indicações, realizador de Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), Zodíaco (2007), O Curioso Caso de Benjamin Button e Garota Exemplar (2014).
É um sinal de importância da série, de que ela foi bem considerada no universo hollywoodiano. Assim, me parece interessante, intrigante, que os principais papéis tenham ido para atores que, creio, não têm a estatura de astros – Jonathan Groff como Holden Ford, Holt McCallany como Bill Tench, Anna Torv como a Dra. Wendy Carr e Hannah Gross como Debbie Mitford. Claro, pode ser ignorância minha, mas desses quatro conhecia apenas a australiana Anna Torv, a protagonista das belas séries australianas Secret City (2016) e Secret City: Under the Eagle (2019).
Isso aí é só a constatação de um fato interessante. Nada contra os atores escolhidos, de forma alguma. Todo o elenco está muito bem. São impressionantes os atores que interpretam os serial killers que os agentes entrevistam – Cameron Britton no papel de Edmund Kemper, Happy Anderson no de Jerome Brudos. E os quatro atores principais estão impecáveis.

O padrão de criminalidade mudou totalmente

É impressionante, chocante mesmo, lembrarmos – e a série nos faz lembrar isso o tempo todo – que todas essas técnicas de fazer o perfil psicológico de criminosos, que vemos em cada um dos 200 mil filmes e/ou séries sobre serial killers lançados a cada ano, foram criadas a partir dos anos 70, ou seja, apenas 50 anos atrás. Meio século – o que, em termos de História, é menos que a poeira do cocô do cavalo do bandido.
O primeiro episódio da série está aí com uns 12 minutos apenas quando o jovem agente Holden Ford (assim como os espectadores, claro) ouve o que diz outro agente do FBI, bem mais veterano, a respeito das mudanças que haviam acontecido nos últimos anos com respeito à criminalidade. Os últimos anos, ou seja, os anos 40, 50, 60…
A série abre com uma sequência de grande impacto: a polícia está negociando com um sujeito armado que mantém várias pessoas reféns em um pequeno prédio. O sujeito faz uma série de exigências, entre elas ver sua mulher. No meio da negociação, Holden Ford chega, se identifica como sendo do FBI e assume o comando da ação policial.
Mostra-se extremamente seguro de si. Veremos logo depois que ele é um expert no assunto: dá aula para os novatos do Bureau exatamente sobre negociação com bandido que mantém reféns.
Mas dominar a teoria não significa que na prática se acerta, e, no meio da negociação, o sujeito armado se mata com um tiro na cabeça.
Holden se apresenta a seu superior, o chefe da unidade, Shepard (Cotter Smith). Está muito abalado porque não conseguiu sucesso total na negociação – mas Shepard diz que ele fez tudo certo, que nenhum refém ou policial foi ferido, e portanto a ação de Holden foi um sucesso.
E em seguida o chefão da unidade diz que Holden, um ótimo professor, passará a se dedicar completamente às aulas.
Em seguida vemos o trecho de uma aula que Holden dá na academia de formação de novos agentes do FBI em Quantico, Virginia. Terminada a aula, ele caminha pelos corredores do prédio, certamente rumo à saída – mas, ao ouvir o que um professor está dizendo numa sala cuja porta está aberta, ele pára para ouvir.
O que aquele professor está dizendo – ele se chama Peter Rathman (Jordan Gelber), e só aparece neste início do primeiro episódio – é forte, impressionante. Vale reproduzir:
– “Assassinatos arbitrários e indiscriminados. Supostamente aleatórios, fortuitos. Todos extremamente violentos. Sem explicação. Sem motivo aparente. Sem violência sexual, sem tentativa de furto. As vítimas não conheciam o agressor. Robert Violante e Stacy Moskowitz estavam namorando num carro quando David Berkowitz atirou neles à queima-roupa. Berkowitz matou seis pessoas em dois verões, e feriu mais sete. Por quê? Porque um cachorro o mandou fazer isso. Agora… Podemos dizer que ele é louco, ou que finge que é louco. Se buscamos um motivo que possamos entender, de repente vemos que isso não existe. Não tem explicação, motivo. É um buraco negro!”
Rathman faz uma pausa, desliga o projetor que estava usando, liga as luzes da sala de aula:
– “O FBI foi fundado 40 anos atrás para caçar John Dillinger, Baby Face Nelson, Machine Gun Kelly. Criminosos que zombavam da sociedade, mas só visavam a ganhos pessoais. Agora temos violência extrema entre estranhos. Como devemos agir quando o motivo se torna elusivo?”

A série fala sobre violência – mas não há cenas de violência

Foi uma maravilhosa sacada do criador Joe Penhall, do roteirista, colocar essa fala de um professor na academia de formação de novos agentes do FBI bem no começo da série, quando ainda não temos sequer 15 minutos de ação. É um absoluto brilho. Resume, com perfeição, a mudança dos padrões da criminalidade que se conheciam até, digamos, os anos 60, para o que veio depois. Define o que Holden Ford – um policial sério, abnegado, inteligente, aplicado – vai procurar fazer daí em diante. E que resultará, algum tempo depois, na criação da Unidade de Ciência do Comportamento do FBI. (O nome seria mais tarde alterado. Hoje, diz o IMDb, que sabe tudo, a antiga Behavioral Sciences Unit se chama Behavioral Analysis Unit, unidade de análise do comportamento.)
Depois de ouvir aquelas frases, Holden Ford vai atrás do agente e professor Rathman, pede para conversar com ele, extrai dele mais pensatas sobre os novos padrões de criminalidade. Até parece que será da união deles dois que surgirá o germe da nova unidade – mas não é.
O acaso fará com que Holden Ford seja designado pelo superior Shepard para trabalhar juntamente com um agente especial veterano, que se especializara em psicologia dos criminosos – Bill Tench.
A eles se juntará a psiquiatra e professora Wendy Carr.
Ao longo dos dez episódios da série, veremos Ford e Tench entrevistando criminosos – e também ajudando policiais locais na busca por assassinos.
Há que se dizer a favor de Mindhunter: eis aí uma série sobre serial killers em que não há muitas cenas de violência. Fala-se, e fala-se muito, de violência, e de violência extrema – mas não há cenas violentas. E, abençoadamente, não há sequer uma sequência de perseguição de carros, essa mania, essa obsessão do cinema americano.
Na verdade, Mindhunter não é uma série sobre serial killers. É uma série sobre o estudo de serial killers. São coisas bem diferentes.

Um casal bastante improvável, quase impossível

No início da ação, a época em que Holden Ford e Bill Tench se conhecem, meados dos anos 70, o primeiro estava com 29 anos, e o segundo com 44. Os atores que interpretam os dois protagonistas eram um pouquinho mais velhos que os personagens no ano de lançamento da primeira temporada: Jonathan Groff tinha 34 e Holt McCallany, 56.
Nesta primeira temporada, a série não se aprofunda muito na vida do agente mais velho. Bill Tench é mostrado como um sujeito que ama a mulher, Nancy (Stacey Roca); os dois haviam tentado ter filhos, mas não conseguiram, e então adotaram um garoto, Brian (Zachary Scott Ross). Com uns seis, sete anos, Brian se mostrava uma criança difícil, extremamente fechada, pouquíssimo ou nada comunicativa. Isso inferniza a vida de Bill e acaba atrapalhando sua relação com a mulher.
Já sobre a relação entre o agente mais jovem e sua namorada a série se debruça bastante. Essa relação de Holden e Debbie é uma das coisas que achei mais interessantes em Mindhunter – mas também uma das mais questionáveis. (Na foto acima, a atriz que faz Debbie, Hannah Gross.)
Os dois se conhecem ainda no primeiro episódio, como já foi mencionado. Encontram-se por acaso em um bar – e em um bar como praticamente todos os dos filmes americanos, assim como praticamente todos os da vida real, barulhento e cheio demais. Holden tinha tido um dia especialmente difícil. Começam a conversar no balcão do bar – e não vai demorar quase nada para estarem trepando.
Holden é um agente do FBI, usa terno escuro e gravata durante quase todo o tempo. Zero de histórico de relações afetivas. OK, é um intelectual, um estudioso, um professor – mas não deixa de ser um agente do FBI. Um tira. Tira chique, federal, bom salário – mas tira.
Debbie é uma jovem estudante da área de Humanas – e, portanto, obviamente liberal, avançada, em termos comportamentais. Bebe bastante, fuma maconha, já teve um porrilhão de namorados.
Não se fala disso hora nenhuma, mas evidentemente Debbie vota nos democratas. Holden, se é que vota, provavelmente vota nos republicanos.
São água e azeite – são feitos para não se misturarem, não chegarem perto um do outro.
E no entanto se apaixonam, e ficam juntos ao longo de muito tempo – do primeiro até ali pela metade do último episódio desta primeira temporada.
Não que seja impossível – mas acho muito difícil. Acho muito pouco verossímil a relação entre dois jovens tão diferentes, tão opostos.
Não tenho essa informação, mas acho que Debbie é a personagem da série que mais se distancia da história real dos dois agentes que levaram à criação da Behavioral Sciences Unit do FBI.
Da vida pessoal da dra. Wendy Carr, a série mostra apenas uma sequência, uma única, no episódio 6. É quando ela – com um bom emprego como professora e psiquiatra em Boston – é formalmente convidada pelo chefe de unidade Shepard para passar a trabalhar com dedicação total para o FBI.
Vemos então a dra. Wendy viajando para Boston, e, em seguida, se encontrando com a pessoa com quem divide a vida, a cama.
É uma bela sequência, impressionante, de grande impacto.
Essa moça Anna Torv – nascida em 1979 em Melbourne – é uma ótima atriz (na foto abaixo). E bonita, e de presença forte.

 

Atenção: spoiler. Spoiler, spoiler, spoiler.

Mindhunter parece ter sido um bom sucesso de público e crítica. Estranhamente, não teve indicação alguma ao Globo de Ouro e, ao Emmy, teve apenas uma indicação – na categoria de ator convidado em série dramática, para Cameron Britton, que faz o serial killer Edmund Kemper.
Apesar disso, teve quatro prêmios e 18 indicações.
Diversas amigos e conhecidos falaram muitíssimo bem da série – e eles estão abolutamente certos.
Não sei se foi essa a intenção dos realizadores, mas, para mim, os dois últimos episódios da primeira temporada, os de número 9 e 10, mostram muitíssimo bem como um profissional sério, um bem intencionado public servant, como dizem os britânicos, um homem de bem, que se propõe a combater o crime com inteligência, astúcia, raciocínio, pode se perder.
Como a certeza de estar fazendo o bem, de estar fazendo o correto, pode levar um servidor público bom, bem intencionado, a extrapolar de suas funções, suas competências.
Como a vitória em episódios da luta contra o crime pode turvar a consciência desse profissional até então exemplar, e pode fazer com que ele creia que, para ser bastante efetivo na continuação da luta contra o crime, pode abandonar o cumprimento rígido das leis.
Em suma, como os bons agentes da lei podem passar a usar métodos dos criminosos que combatem.
É impressionante: nos dois últimos episódios da primeira temporada, o agente especial Holden Ford fica muito parecido com a pior face do então juiz Sérgio Moro e de alguns dos procuradores da Lava-Jato no Paraná.
Anotação em setembro de 2019
Mindhunter – A Primeira Temporada
De Joe Penhall, criador, EUA, 2017.
Diretores: David Fincher, Andrew Douglas, Asif Kapadia, Tobias Lindholm
Com Jonathan Groff (Holden Ford), Holt McCallany (Bill Tench)
e Anna Torv (Dra. Wendy Carr), Hannah Gross (Debbie Mitford), Stacey Roca (Nancy Tench), Cotter Smith (chefe de unidade Shepard), Cameron Britton (Edmund Kemper, serial killer), Happy Anderson (Jerome Brudos, serial killer), Jack Erdie (Richard Speck, serial killer), Joe Tuttle (Gregg Smith), Zachary Scott Ross (Brian Tench, o filho de Bill), Marc Kudisch (Roger Wade, o diretor de escola), Jordan Gelber (Peter Rathman, do FBI), Albert Jones (Jim Barney), Lauren Glazier (Kay Manz), Michael Cerveris (Gunn), Dohn Norwood (Lee Brown), Gareth Williams (chefe Redding)
Roteiro John Douglas, Mark Olshaker, Joe Penhall, Jennifer Haley,
Liz Hannah, Erin Levy, Tobias Lindholm, Dominic Orlando, Ruby Rae Spiegel, Carly Wray, Pamela Cederquist
Fotografia Erik Messerschmidt, Christopher Probst
Música Jason Hill
Montagem Tyler Nelson, Kirk Baxter, Byron Smith, Eric Zumbrunnen Casting Laray Mayfield, Julie Schubert
Produção Denver and Delilah Productions, Netflix, Panic Pictures
Cor, cerca de 600 min (10h)

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