13 de outubro de 2024
Colunistas Sergio Vaz

Kóblic

De: Sebastián Borensztein, Argentina-Espanha, 2016
Nota: ★★★½
Kóblic, de 2016, nova reunião da dupla Sebastián Borensztein e Ricardo Darín, que cinco anos antes havia feito aquela delícia que é Um Conto Chinês, um filme engraçado, alegre, de bem com a vida, vai fundo, mas muito fundo, nas trevas, no horror da Guerra Suja.
É um belo filme, muito belo filme – mas é duro, triste, pesado, como não poderia deixar de ser uma obra que trata da ditadura militar de 1976-1983 na Argentina.
O diretor Sebastián Borensztein – ele também autor do argumento e do roteiro, juntamente com Alejandro Ocón – e seu diretor de fotografia Rodrigo Pulpeiro fizeram um filme de imagens não muito claras, jamais ensolaradas; imagens que parecem um tanto granuladas, um tanto sombrias, um tanto sujas, seguramente para dar ao espectador a sensação de negror, de sujeira – como foi negra e suja a guerra que se travou no país.
Sebastián Borensztein construiu toda a trama, a narrativa, de forma a ir revelando bem pouco a pouco as informações sobre o protagonista, interpretado por um Ricardo Darín de expressão de tensão durante todos os 93 minutos do filme.
Para se ter ideia de como a narrativa foi propositalmente construída dessa maneira, só quando o filme está ali pela metade de seus curtos 92 minutos é pronunciada pela primeira a palavra Kóblic, uma palavra um tanto estranha. Tão estranha – não tem como não fazer a ligação – quanto Kamchatka, o nome que foi o título de outro filme sobre a Argentina na época da ditadura, outro belo filme, também com Ricardo Darín, também passado bem longe de Buenos Aires, no Sul frio, gelado do país. (Kamchatka, de 2002, é uma obra de Marcelo Piñeyro, que, entre outros, dirigiu na Espanha o extraordinário O Que Você Faria?/El Metodo, de 2005).

É para o espectador demorar a saber quem é Kóblic

Sim, o autor e realizador Borensztein construiu sua narrativa de uma tal forma que o espectador fica, ao longo de boa parte do filme, sabendo muito pouco sobre o protagonista. A rigor, a rigor, a rigor, o filme só revela abertamente quem é ele ali pelos 15, talvez 10 minutos finais.
Abre com um close de Ricardo Darín olhando para a frente, para o infinito. Não é um homem feliz, tranquilo – muitíssimo ao contrário. Uma pessoa se aproxima dele, diz: – “Estamos prontos, senhor”, e então ele começa a caminhar, a câmara o acompanhando em um longo travelling. Ouvimos o ruído dos passos do homem. Ouvimos também, um tanto distantes, vozes que dizem – “Não, não!” E vozes muito mais fortes, seguras, dando ordens: – “Vamos, vamos!”
Um único letreiro aparece – o único de todo o filme: “Aeroparque, setor militar, junho de 1977”.
A câmara, sempre em movimento, sempre seguindo de perto o homem de expressão séria, tensa, não revela muito do que está em torno dele. Vemos que ele se senta.
Porque o letreiro falou em aeroparque, ou porque já leu ao menos três linhas de sinopse do filme, o espectador sabe que o homem é um piloto, e portanto supõe que ele se sentou na cabine de um avião.
O homem põe os fones de ouvido.
Corta, surge o nome do filme em letras brancas sobre fundo negro: “Kóblic”.
As letras somem, a tela continua absolutamente negra por alguns poucos segundos. Fade out total.
Quando surge nova imagem, é de um lugar no campo.
Nessa que será a segunda sequência do filme, aquele homem está se despedindo de sua mulher. Ela entra num ônibus, e some. Não mais será vista.
Vê-se claramente que o homem está num pequenino lugarejo um tanto perdido no meio do nada, longe de qualquer cidade grande. Uma placa mostra o nome: Colonia Elena.

Mais que spoiler, é crime revelar o que só se mostra no fim

O espectador compreende perfeitamente que aquele homem, o aviador, está se escondendo, fugindo. Mas, se ele não leu alguma sinopse em algum jornal, revista, site, o espectador não sabe de que ele está fugindo, por que ele está se escondendo.
Se o espectador não leu sinopse alguma, poderá até imaginar, conjeturar, inferir, deduzir as coisas. Mas saber ao certo, isso ele não saberá de cara. Só saberá mesmo quando o filme está bem no final.
Poderá o espectador bem informado, esperto, que não tiver lido sinopse alguma, imaginar, conjeturar, inferir, deduzir: OK. Argentina, 1977, ditadura, a guerra suja. Piloto. Fugiu para o interior. Ah, será que tem a ver com os…
E aí é que está. Kóblic é daquele tipo de filme que as pessoas deveriam ver sem ter lido uma única sinopse de três linhas sequer. Da mesma maneira que, para dar o exemplo mais clássico, O Show de Truman/The Truman Show. Se você vê The Truman Show depois de ter lido uma sinopse infeliz que conta o grande segredo da trama, ferrou – perdeu uma imensa parte da graça, do engenho, da arte, da maravilha.
É como as piadas clássicas que revelam o finalzinho de filmes em que o finalzinho é necessariamente, absolutamente surpreendente, como Psicose (1960), O Sol por Testemunha (1960 também), Gângsters de Casaca (1963). Dá até vontade de contar as piadas, mas claro que não é o caso.
Ao contrário dos três filmes citados aí acima, todos eles tramas policiais, de suspense, Kóblic é um drama político, um drama sobre a vida sob uma ditadura. Sim, especificamente sob a ditadura militar argentina dos anos 70 e 80 – mas a rigor sobre a vida sob qualquer ditadura. As ditaduras se parecem demais umas com as outras, todas elas. Seja a da Alemanha Oriental, conforme mostram filmes tão belos como A Vida dos Outros (2006) e Barbara (2012), seja a de Cuba, como mostram filmes como Retorno a Ítaca (2014) ou os do quarteto Quatro Estações em Havana, seja a da Argentina de Kamchatka ou deste Kóblic aqui.
O autor e realizador Sebastián Borensztein até que incluiu, no seu drama político, sua descrição da vida sob a ditadura, uma história de amor e também uma trama policial.
E, bem ao contrário dos três filmes citados acima, ele não pretende fazer suspense. Ele apenas optou por contar sua história de tal forma que as informações só vão sendo dadas pouco a pouco.
É o jeito com que a história foi montada, e foi contada.
Assim, muito mais que spoiler, é um crime, um absoluto crime, que as sinopses de Klóbic revelem o que o filme só revela no fim.

Tomás Kóblic queria ficar o mais escondido possível

O protagonista, o aviador, escolheu aquele pequenino lugarejo perdido no meio do nada, Colonia Elena, porque ali vivia um grande amigo dele, um aviador também, dono de um pequeno avião, um hangar e um campo de pouso, que faz trabalhos de lançar pesticidas sobre as plantações da região. Alberto – chama-se o amigo – é um homem bem mais velho. Depois, ao longo da narrativa, veremos que ele foi amigo do pai do protagonista.
É através de Alberto que ficamos sabendo o nome do personagem central. Tomás é o prenome. Alberto o chama carinhosamente de “polaco”. O espectador pode imaginar a partir daí que Kóblic seja o sobrenome de Tomás – mas, como já foi dito, a palavra Kóblic só vai ser pronunciada quando o filme está li pela metade.
Alberto acolhe Tomás e o toma como um empregado, um homem para ajudá-lo nos voos. Fica bem claro que Alberto sabe perfeitamente que Tomás está em fuga, fugindo, tentando se esconder.
O ideal seria que Tomás ficasse o mais escondido, o menos visível possível. Mas aí acontecem dois fatos fundamentais. O primeiro: num voo de Tomás, o motor do avião de Alberto simplesmente para. Experiente, bom de serviço, Tomás consegue planar o avião até a única estrada da região, e nela pousar. Mas tem o azar de pousar no momento em que um carro passava pela estrada em geral deserta. E o carro era justamente do delegado da pequetita Colonia Elena – o delegado Velarde (o papel de Oscar Martínez, na foto acima), um sujeito que vai se revelar, a cada nova sequência, um pústula, um pustema, um tipo criminoso – o protótipo da pequena autoridade que, numa ditadura, deixa explodir toda a sua violência, toda a sua falta de caráter.
O segundo grande azar da vida de Tomás: a moça que toma conta do único posto de gasolina de Colonia Elena, que também funciona como uma loja de conveniência, é lindíssima. Chama-se Nancy – o papel da jovem espanhola Inma Cuesta, bela como Penélope Cruz, como Paz Vega, como Ana Belén, a danada. Nascida em Valencia, em 1980, quando minha filha, com 5 anos, já via filmes comigo.
Nancy era a amante, companheira – nunca a mulher, a esposa, conforme ela diz sempre que pode – de um sujeito grande e violento. Que, não à toa, é muito amigo do delegado Velarde.
Tudo vai se misturar: o mau caráter violento do delegado, a curiosidade de saber quem é esse cara que chegou da capital, esse portenho, a relação de dominação à base de porrada do grandalhão sobre a bela Nancy… Tudo, tudo tornado pior pela atmosfera claustrofóbica, sem circulação de ar, que há nas ditaduras.
O felizardo espectador que tiver conseguido escapar das sinopses, o espectador para quem não houve spoiler, esse desfrutará muito bem da bela história.
Já o espectador que leu alguma sinopse, que sabe por que Tomas Kóblic está tentando se esconder naquele fim de mundo…

Atenção: a partir de agora, spoilers. Spoilers. Spoilers.

Desde que lancei este 50 Anos de Textos, desde que tornei públicos meus textos sobre filmes, fico a cada dia mais cuidadoso com essa coisa do spoiler.
Sim, relato a trama dos filmes – mas só bem o início dela. Procuro sempre não relatar fatos que se dão depois de, digamos, 30 minutos de filme. Se é absolutamente necessário avançar mais do que isso, faço questão de avisar que aí vem spoiler.
As sinopses que vi sobre Kóblic contêm spoilers.
E então vou transcrever algumas sinopses, para demonstrar como elas são criminosas.
Portanto, vai o aviso, de novo, para aqueles eventuais leitores que não leem os intertítulos: se ainda não viu o filme, não leia a partir daqui. Veja primeiro o filme.

Atenção: agora vêm aqui spoilers, spoilers, spoilers.

Sinopse do IMDb: “1977, durante os dias da ditadura argentina. Um ex-piloto e capitão da Marinha argentina desobedece a uma ordem e vira um fugitivo a fim de sobreviver. Ele escolhe se esconder em uma pequena cidade do Sul do país, onde sua presença vai atrair a atenção de um delegado local inescrupuloso e violento.”
É um crime.
O filme só mostra que Tomás Kóblic era um capitão da Marinha quando faltam assim uns 15 minutos para o fim. O fato de que ele desobedeceu a uma ordem é mostrado para o espectador quando faltam menos de 5 minutos para o final da narrativa.
A sinopse da Wikipedia em espanhol é bem mais cuidadosa, delicada:
“1977: durante la última dictadura cívico-militar argentina, Tomás Kóblic, un piloto de la Armada, llega al pueblo ficticio de Colonia Elena, ubicado en algún paraje de la provincia de Buenos Aires, para trabajar como piloto de fumigaciones en campos de la zona. A partir de su llegada lentamente se construye una historia de intrigas que involucran a Kóblic con Velarde, el comisario local, y algunos personajes del pueblo, entre ellos Nancy, la encargada de la estación de servicio. En paralelo, a través de fragmentos, se narran los motivos que empujaron al piloto a abandonar su servicio en la aviación para dedicarse a una tarea de menor rango en un paraje olvidado de la pampa argentina.”
Diacho: é só quando o filme chega ali pelos 85 dos seus 92 minutos que se mostra de fato que o capitão Tomás Kóblic era um dos pilotos da Marinha argentina encarregados dos “voos da morte” – os voos em que os Brilhante Ustra deles enfiavam os “subversivos” que seriam lançados no mar.
Há décadas os italianos usam a expressão “traduttore, traditore”. Tradutor, traidor. Me impressiona como os sinopsistas são spoilerentos. Sinopse, spoiler. Que horror, meu Deus do céu e também da terra! Com uma frase, o idiota revela o que o autor leva 80 minutos para contar!
Criminosos! Assassinos!

A ditadura argentina matou 50 mil pessoas

Todas as ditaduras se parecem muito umas com as outras, eu escrevi aí acima.
A rigor, a rigor, é verdade.
E, evidentemente, é difícil fazer comparações entre uma e outra. Mesmo as sul-americanas que ocorreram basicamente na mesma época, mesmo as de países tão próximos quanto Brasil, Argentina, Chile, Uruguai.
Há números – mas números não querem dizer claramente muita coisa. Seria preciso contextualizar, fazer regra de três. Números absolutos não significam nada, diante da diferença imensa de população dos países. Ali por 1970, 1975, o Brasil tinha uns 90 milhões de habitantes; a Argentina, cerca de 40 milhões, menos da metade. O Chile, apenas uns 10 milhões, cerca de. O Uruguai, então, aquele país pequetito, tinha lá menos de 3 milhões.
Segundo o site Memórias da Ditadura.org.br, a ditadura do general Pinochet matou 40 mil pessoas. A ditadura dos militares uruguaios matou cerca de 200 pessoas. E a ditadura dos militares argentinos assassinou 50 mil pessoas.
No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu 434 mortes e desaparecimentos políticos entre 1946 e 1985, dos quais a maioria ocorreu no período da ditadura.
Os milicos argentinos assassinaram 50 mil pessoas!
Tá, tá certo: proporcionalmente, Pinochet matou mais gente.
Mas, diabo: 50 mil pessoas! É um absurdo total!
Talvez mais importante seja o tempo que durou aquele horror.
Na Argentina, já se disse aqui: durou de 1976 a 1983. 7 anos.
No Chile, foi de 1973 até 1990. 17 anos!
No Uruguai, foi de 1973 a 1985. 12 anos.
No Brasil, onde os militares mataram menos pessoas, a ditadura foi mais longa. De 1964 a 1985 foram 21 anos. A rigor, três gerações de brasileiros nasceram sob a ditadura que o atual presidente da República respeita, homenageia, cultua.

Nos últimos minutos, o diretor perdeu a mão

Nos seus minutos finais, Kóblic dá uma de tanto filme americano: exagera.
Nos minutos finais, Tomás Kóblic vira assim uma espécie de super-herói. Um Indiana Jones. Um Bill Munny de Clint Eastwood de Os Imperdoáveis (1992).
Uma pena.
É um belo filme.
Anotação em julho de 2019
Kóblic
De Sebastián Borensztein, Argentina-Espanha, 2016
Com Ricardo Darín (Tomás Koblic)
e Oscar Martínez (Velarde, o delegado), Inma Cuesta (Nancy), Marcos Cartoy Díaz (Luis, o jovem empregado de Alberto)
Argumento e roteiro Sebastián Borensztein e Alejando Ocón
Fotografia Rodrigo Pulpeiro
Música Juan Federico Jusid
Montagem Pablo Blanco, Alejandro Carrillo Penovi
Produção Antena 3, Atresmedia Cine, Gloriamundi Producciones, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales.
Cor, 92 min

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