Tive um sonho, quando criança, do qual não me esqueço até hoje. Minha tia, a pessoa que mais amei, ao lado de meu avô, morava na Vila da Penha – então um bairro aprazível da Zona Norte. Hoje desandou, como toda a cidade. “Acontecências”.
A casa ficava nos fundos, e o acesso era através de um longo corredor. No sonho, eu estava lá dentro, sozinho. E, lá fora, no selvagem jardim que minha tia (não) cultivava, uma imensa pantera negra – um dos animais que eu mais amava quando guri.
(Psicólogos de plantão, por favor, não interpretem o sonho. Não estraguem, com ciência, uma das recordações mais bonitas que tenho)
O bicho farejava, sabedor que eu, aterrorizado, estava lá dentro. É claro que, sendo um sonho, ela daria um jeito de entrar. Pensei em um plano. Quando ela estivesse nos fundos da casa, eu me esgueiraria pela porta da frente, ganharia o corredor – e a liberdade.
Abri a porta, e cautelosamente cheguei ao quintal. E claro que a pantera percebeu e partiu em meu encalço – eu corri, tão rápido quanto minhas pernas de menino de 8 ou 9 anos permitiam, com o animal rosnando em meu encalço.
Estava quase chegando ao portão quando tropecei e caí, esperando me esborrachar espetacularmente nos paralelepípedos da rua. E aí vem a epifania, da qual lembro perfeitamente até hoje, meio século depois.
Eu tropecei mas, em vez de cair, eu ABRI OS BRAÇOS, e simplesmente DECOLEI, amigos e vizinhos, voando TRIUNFALMENTE sobre a rua, deixando a casa – e a pantera – lá embaixo, distante e feliz.
É a essa recordação tão vívida, essa sensação tão inequivocamente benfazeja e real, ao qual me aporto em momentos de turbulência na vida, como os que estou passando agora.
Sei que passará, como passam todas as coisas debaixo do sol.
E eu, voltado a menino novamente, simplesmente abrirei meus braços, tornados asas, e alçarei vôo.
Sonho? Acho que não.
Imagem: Joseph Agamol)
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.