2 de maio de 2024
Colunistas Joseph Agamol

Só uma quarta-feira de sorte

Imagem: “A Bar at the Follies Bergere”, de Edouard Manet

Betty enxugou as mãos no avental, e gritou para a cozinha: “morango ao leite!”. As trabalhadores da Baixada que iriam se espremer no metrô até o Centro ou Zona Sul, em sua maioria. E muitos paravam na lanchonete para um pingado ou um suco.

Betty olhava através da multidão: pensava no filho que estudava numa escola pública na “comunidade” e no quanto ela desejava sair dali, no quanto ela tinha nojo do esgoto a céu aberto em seu quintal, e do medo que sentia a cada noite imaginando se ia ou não ouvir tiros, se ia ou não por o colchonete na cozinha para ela e seu filho.

Ela lembrava de tudo isso quando foi trazida de volta por uma voz irritada:

– Tem uma meia hora que pedi meu suco e nada! Quer que reclame com o gerente de novo?!

Ela engoliu em seco, pediu desculpas e trouxe o morango ao leite que o rapaz dos sucos demorou para fazer.

– olha que se eu treinar um chimpanzé ele faz o serviço melhor, hein?!

Ela sentiu os olhos arderem com as lágrimas que queriam brotar com essa humilhação final, mas não, não ia dar àquele filho da mãe o gostinho de vê-la se debulhar em choro como um personagem de desenho animado. Antes que Betty ouvisse os sinos da Candelária baterem o meio do dia, ela já havia recebido uma bronca do patrão e ouvido três bêbados falarem do seu traseiro.

Debruçada sobre o balcão – que ela mantinha impecavelmente limpo, isso também aprendera com a mãe – ela imaginava as lágrimas como um pequeno exército de soldadinhos azuis querendo romper uma frágil resistência para invadir seu rosto. Foi quando o freguês que havia pedido uma empanada (ela nunca tinha ido a Buenos Aires, mas sabia que o que vendiam ali não era empanada nem ali nem na China) sorriu e lhe entregou o dinheiro para pagar o lanche – junto com um pequeno papel dobrado.

“Pronto, mais uma cantada barata”, pensou, com desalento. Esperou o cliente sair, puxou o papel do bolso do jeans justo (“tinha que parar de vir com essa calça”, bufou, distraidamente) e leu:

“Hoje é sua QUARTA FEIRA DE SORTE! Esses números estão PREMIADOS! Use com cuidado. Não seja gananciosa. E o mais importante: RETRIBUA.” E, do outro lado do papel, uma sequência de números.

Ela começou a rir. Riu até o chefe achar que estava tendo uma espécie de ataque, até que os outros clientes começassem a olhá-la de modo estranho, até ela própria ficar com vergonha. Era aquilo, afinal. Não uma cantada, não mais um elogio ao seu traseiro, nem uma gorjeta. Era só um maluco que sonhava que era um anjo. Ela enfiou o papel no bolso e esqueceu o assunto até o fim do expediente.

Quando saiu pelo acesso em frente ao Ministério, um pivete surgiu do nada e roubou sua bolsa. Ela sentou no meio fio e nem chorou. A bolsa era velha, não havia nada de valor e ela tinha posto o dinheiro da passagem no bolso. Pegou o dinheiro e junto com as notas, o papel. Ela sorriu e grasnou para a noite do Rio:

– Quarta feira de sorte, né? Caraca! Mais uma quarta de sorte assim e eu…

Não completou a frase. Teve o que os antigos chamavam de “um estalo”. Pegou o papel e olhou. Era amarelado e parecia antigo. A letra era floreada e elegante. A textura era porosa. Ela pensou que, se os anjos escrevessem bilhetes, seria num papel assim. Passou as mãos no traseiro, limpando a poeira do chão, e bradou, para todo mundo e ninguém em especial:

– Quer saber? O que é um pum pra quem já todo melado?!

Trotou de volta à Central do Brasil e marcou um volante de loteria. O tempo todo uma vozinha ficava repetindo em sua cabeça uma espécie de mantra maldoso:

“Ridícula, ridícula, ridícula, como você é PATÉTICA, ridícula…”

Ela guardou o volante no bolso, junto com o bilhete (que já estava chamando de “bilhete do anjo”) e foi para casa. A pé. Ela esqueceu o assunto por três dias. E só lembrou quando pôs a calça pra lavar e resgatou o bilhete (“do anjo”, pensou) e o volante do bolso. Quando saiu do trabalho, foi à loteria para conferir o resultado, o tempo todo se dizendo para não ser estúpida, para não ter esperança, a vozinha em sua mente misericordiosamente quieta.

Parou em frente ao quadro com os resultados. Conferiu. Nada. Olhou de novo. Nada mais uma vez. As lágrimas vieram com força agora, junto com a vozinha malvada entoando seu mantra debochado. Ela secou os olhos e jogou o volante e o bilhete amassados com raiva no lixo. Olhou de novo para o quadro (“burra, burra, como pode ser tão BURRA?!), num paroxismo masoquista… e foi quando viu que havia algo ERRADO.

Ela tinha conferido os resultados do prêmio anterior. O do jogo que ela havia feito estava ao lado.

“Que burra!!!”, pensou, lembrando do seriado do Chaves e sufocando outro ataque histérico de riso. Trotou até a lata de lixo, sem ligar para os olhares de desdém e espanto que recebia, e escarafunchou como um terrier caçando uma toupeira e, em meio à papéis de bala Halls e outros bilhetes desprezados, estavam os – voilà! – seus. Voltou ao quadro de resultados, tentando – inutilmente, diga-se a bem da verdade – manter uns fiapos de dignidade.

Conferiu uma vez. Piscou duas vezes para o quadro, como uma coruja ao amanhecer. Não acreditou. Chegou mais perto. Olhou a data, os números, o seu bilhete, uma, duas, cinco vezes. Não fez força para conter as lágrimas, agora. Puxou um papel do bolso para secar o rosto – com horror, percebeu que quase usara o volante premiado para isso. O volante premiado. Sim. Era sua quarta feira de sorte, como dissera o ANJO. Foi até o o caixa e perguntou qual era o prêmio. O caixa disse o valor. Ela ouviu, mas não via as notas em sua mente. O que ela via era uma casa decente, uma casa com jardim e buganvílias, cata-ventos e girassóis, via brinquedos para o filho, via o filho correndo num lugar onde poderia correr livre e onde não ouviria o estampido de tiros à noite, via uma pequena lojinha de doces e café que ela adorava fazer – e sem ninguém para lhe dar ordens. Ninguém para lhe humilhar. E só elogiaria seu traseiro quem ELA quisesse.

O caixa perguntou se ela não queria aproveitar a sorte e comprar outro. Betty pensou bem e lembrou da advertência do anjo – sim, só podia ser um anjo, quem explicaria isso melhor, ora bolas? – para não ser gananciosa – e imaginou que alguém com um poder daqueles para dar, podia perfeitamente TIRAR. Ela sentiu um arrepio.

Ela disse, não, obrigado.

(Melhor não abusar)

– Foi só uma quarta-feira de sorte, viu, moço?

Joseph Agamol

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *