Como muitos aqui sabem, sou carioca, o tal da gema. Nascido e criado na Zona Norte, nos anos 70, quando o Rio ainda merecia o epíteto de maravilhoso. A partir dos anos 80 a maionese começou a desandar – e eu tenho a data exata em que isso teve início, mas deixa estar: não é sobre política, aquela em sua forma mais suja e mesquinha, que desejo falar.
Então. Essa historinha, essa pequena fábula, como queiram, aconteceu na década de 90 – ainda existiam vestígios da antiga suavidade carioca, da antiga doçura, mais ou menos como quando a avó da gente guardava na geladeira Climax um pedacinho daquele bolo de chocolate que ela sabia que a gente amava. Vocês sabem como é. Esse tempo passou, claro. O tempo sempre passa. Mas as histórias ficam.
Era o final do mês de outubro, 30 ou 31, e eu, apressado para ir a algum lugar do qual agora não me lembro, chamei um táxi. O motorista era do tipo conversador – deve estar no D.N.A. de todos os taxistas. Ele começou com aquela clássica, do Manual do Papo Furado do Motorista:
– será que chove?!
Eu sorri interiormente. Na época eu era ainda mais tímido do que hoje e não era adepto da prosa furada. Mas dei corda:
– já é tradição chover no feriado, não?
Ele recostou no banco, diminuiu a velocidade, e me olhou pelo retrovisor.
– rapaz, quando eu era guri tinha muito passarinho na minha casa. Cantavam que era uma beleza, tinha canário da terra, sabiá, coleiro, canário-belga…
O olhar do homem no espelho primeiro suavizou, depois se perdeu. Ele parou de me ver. Percebi que estava visitando uma época muito querida e fiquei quieto. Ele prosseguiu.
– Minha avó, pessoa de muita fé, muito religiosa, rezadeira, benzedeira, dizia para mim, eu garotinho ainda:
“Meu filho, tem duas datas que esses passarinhos não vão fazer cantoria: Sexta Feira Santa e 2 de Novembro. E nesses dois dias chove. Sempre chove…”
– Mas era dito e feito, moço. Nesses dias a passarinhada acordava acabrunhada, sem disposição para conversa. E tome chuva. Minha avó dizia que até a Natureza ficava triste e prestava homenagem. E que a gente devia aprender e fazer igual.
Os olhos do homem marejaram. Eu brinquei para disfarçar o clima – e minha própria emoção.
– Então já posso deixar o guarda-chuva separado?!
Ele riu, agradecido. Eu disse obrigado, dei uma gorjeta boa, e desci, na Cinelândia, lembrei agora. Estava indo à Biblioteca Nacional. Enquanto subia as escadarias, olhei para o céu: do nada tinha ficado escuro.
Ia chover. Claro, sempre chovia. Sempre chove.
No tempo, tempo bom, em que até a Natureza mostrava respeito.
Esse tempo passou, sem dúvida. Mas ainda vive em algumas pessoas – e em algumas histórias.
E acredito que ele ainda vai voltar.
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.