Sou nascido e criado no Rio de Janeiro. O que vem a seguir é um breve um relato sobre o Rio que eu conheci e no ele se tornou.
Deixei de vez a mui heroica e leal cidade de São Sebastião em 2016. Carioca desterrado que sou, guardo, com zelo, na memória, a cidade em que cresci – e tento esquecer a cidade na qual ela se tornou.
O guri dos anos 70 e 80 que fui patrulhava as ruas do meu bairro, desde quase o nascer do sol até bem depois que ele se punha. Havia perigos, os de sempre, quando há seres humanos: mas nenhuma família se preocupava em demasia.
Havia cortes no pé e cotovelos ralados, um cerol de linha aqui, uma briga de murros acolá. Descalço quase sempre, de Ki-chute outras tantas, eu e os outros fedelhos éramos, ao mesmo tempo, solistas e maestros de uma imaginária orquestra de juventude.
Nossa energia inesgotável vinha de grandes goles de água nas torneiras das calçadas e goiabas e pitangas e mangas e sapotis tiradas do pé – não sem antes limpar as frutas com esmero, esfregando-as vigorosamente no tecido dos shorts ou camisas, ambos de reconhecidas propriedades antissépticas.
Ao fim do dia, contemplávamos o incandescente pôr de sol carioca – e, se junho fosse, as noites coalhadas de pontos luminosos. Balões. As estrelas tinham ciúme.
Tudo isso se foi.
De 1982 em diante, a decomposição da cidade foi veloz. Já em 1992, ano em que a cidade recebeu a chamada Eco-92, o governador teve que pedir a ajuda do Exército para garantir a segurança das autoridades estrangeiras que aqui vieram.
De lá para cá, o Rio se transformou em uma espécie de protetorado do crime dentro do território brasileiro. O povo, ao mesmo tempo responsável e vítima, combalido por suas péssimas escolhas políticas, não tem forças para reação.
Lembro de uma noite, em particular, em 2014, quando voltei de Niterói para casa – morava na Lapa, centro do Rio. Desci na estação das barcas, na Praça XV, por volta das 21h, e fui caminhando pelas ruas absolutamente desertas.
Já chegando à avenida Rio Branco, cruzei com um grupo de cerca de dez “menores” de idade, alguns carregando os característicos sacos plásticos contendo cola, outros com pedaços de pau e sabe-se lá mais o que nas mãos. Eu segui em frente, até porque não tinha para onde ir, contando que meu porte físico – à época pesava 103kg – os dissuadiria de um confronto: o custo benefício talvez não fosse bom.
Eles seguiram seu tortuoso rumo.
Mas até esse bom senso rudimentar estava com seus dias contados: a popularização das drogas mais pesadas despiu os viciados de qualquer cuidado.
Em breve, estariam atacando a torto e a direito, selvagemente, pelo simples prazer ou por estarem alucinados demais.
Decidi partir.
Hoje, olho para Rio, São Paulo e outras grandes capitais com tristeza: não creio que um dia voltarão a ter sequer uma fração do que perderam. Quem viveu seus dias de glória, acalente e conte para os que vieram depois:
Que havia dias e noites de paz, ao som de blues ou de samba, com cafés com mesas na calçada, quando se podia sentar e apenas contar balões na madrugada.
Em paz.
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.