Era judeu. Eu digo: “era”, mas, de fato, não sei de sua jornada após lecionar para minha turma no 2o Grau, no longínquo ano de 1984: o ano em que os peixes começavam a ensaiar passos fora da água e suas brânquias transformavam-se pouco a pouco em pulmões. Logo viriam os tiranossauros.
Lembro de 1984 por vários motivos: o calor no Rio era mais suave, por exemplo, e os invernos mais presentes. Eu usava sempre a mesma camisa de flanela xadrez, comprada na C&A, e o mesmo par de All Star vermelhos, de cano longo, número 43, que era o que meus parcos recursos permitiam. Depois All Star se tornaria moda. No rádio tocava “Como eu Quero”, “Eu sou Free”, e outras bobagens – mas as bobagens de hoje são mais bobas que as de 84, parafraseando Orwell, em “A Revolução dos Bichos”.
O professor Abrahão era baixinho, gordinho, parecia estar sempre suando, e nos olhava por cima das lentes grossas dos seus óculos, com seu olhar bondoso e inteligente. Nunca aprendi matemática: mas não por culpa dele, que era um professor magnífico, e sim por minhas limitações neurônicas e minha tradicional aversão a cálculos, números e quejandos.
Um dia o professor Abrahão entrou na sala e deparou com uma suástica traçada a giz no quadro-negro. Sim, naquela época era giz e quadro-negro, nada de lousas e canetinhas. Quem fez a “arte” foi meu melhor amigo na época: um dos garotos mais esforçados da turma, aliás, o meu oposto, que era turbulento e baderneiro. E que, diga-se de passagem, não fazia a menor ideia do que o símbolo representava.
O professor Abrahão estacou de levantar poeira no chão da sala, ali, situada exatamente embaixo da escada que levava ao segundo andar da escola, com os lugares junto às janelas do fundo disputados à tapa pelos guris, que admiravam as subidas e descidas das normalistas, com seus uniformes típicos.
Ele olhou o desenho, respirou fundo… e começou a falar. Falou. E falou.
Seus olhos estavam marejados de lágrimas, ele parecia prestes a ter uma síncope, mas ele não parou.
Naquele dia, o bom e generoso professor Abrahão não deu uma de suas excelentes aulas de matemática, o que seria o esperado. Mas talvez tenha ministrado a aula mais importante de sua vida. Se não da dele, das nossas, com certeza.
Quando terminou de expor o que era aquele símbolo, e o que representava em termos de um horror inominável e inimaginável para garotos de 1984, ele estava exausto.
A turma, comovida e devastada.
Ele apenas virou as costas e saiu da sala, deixando-nos silenciosos – como nunca ficávamos – e apalermados.
Meu amigo – que, mais tarde, tornou-se um homem de fé exemplar e músico admirável – estava corroído pela culpa.
Aos poucos fomos retomando nossa rotina do dia, ali, naquele antigo e belo colégio público de Vila Isabel, bairro da zona norte do Rio: imitar Michael Jackson, matar aula para jogar vôlei nas quadras da escola, sonhar com a normalista linda, como cantava Belchior na canção “Tudo Outra Vez”.
Lembrei de tudo isso assim, de sopetão, num átimo, o colégio, sua ladeira, as salas, as canções, minha camisa de flanela xadrez, os invernos bondosos do Rio e do meu professor de matemática, por causa da chuva que cai desde cedo.
Como chovia naquela tarde, na escola, no Rio de Janeiro, em 1984, quando o professor Abrahão nos ensinou tudo e um pouco mais – sobre honra e dignidade.
Saudade, mestre. Esteja onde estiver, esteja bem: você merece.
N.E.: Este post foi publicado no Facebook. Eu, fui aluno do professor Abrahão em 1963 a 1966, no Colégio João Alfredo. Graças às Redes Sociais, as duas filhas do professor, ainda vivo (graças a Deus) comentaram no post… fiquei muito emocionado… obrigado Joseph…
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.
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