Saí para correr, como sei fazer. Peguei um atalho pouco frequentado pelo meio da mata. Ele estava lá, claro. Sentado sobre uma rocha, o riacho fluindo ao fundo.
Ouvi um grito de falcão ao longe. Ele havia posto um lenço sobre a pedra – provavelmente para não sujar os fundilhos, pensei. Ele não olhou para mim, mas sabia que eu estava lá. Claro que sabia. Ele sempre sabe. Abaixei o som dos fones – estava ouvindo “Tower of Song”, na versão de Tom Jones.
Ele fingiu só se aperceber da minha presença naquele momento. Virou lentamente o rosto e suspirou. Senti no hálito daquele suspiro o perfume de eras passadas: a poeira das rochas gastas usadas pelos homens primitivos, o vento das arenas nas justas medievais, a esperança presente em setembro de 1945. Ele sorriu para mim.
O homem vestido elegantemente, com um terno bem cortado, casaco e chapéu dos anos 40, e muito semelhante a Leonard Cohen e Ian McKellen – percebi com nossos encontros que, quando ele queria ser amável, assumia a face de Sir Ian. Quando era mais duro, tornava-se Leonard Cohen – fez um gesto para que eu me aproximasse. Eu o fiz. Interroguei-o.
– estava me esperando?
Ele riu, um grasnido de ave, uma gralha ou um grande corvo.
– mas não! Você pensa que o mundo gira à sua volta, mesmo, não é? Eu estava só sentado aqui e… pimba! Você apareceu!
Eu sorri, mesmo contra a vontade. O sacana era divertido. Quando queria. Esperei ele continuar.
– seu aniversário é semana que vem, não? Deixe-me ver… Daqui a 5 dias?
– você sabe melhor do que eu quando faço aniversário.
Eu tinha me esquecido. Ele riu de novo, o mesmo som grasnado: um crocitar.
– você acredita que eu cuido só de você? É pretensioso a esse ponto, Joe?
Pensei.
– sim, eu acredito. Acho que você é um pouco como o guarda de Joseph K., em O Processo, de Kafka – tentei fazer graça – Já leu? Ou você prefere sites de mexericos? Passar o TEMPO?
Na mesma hora me arrependi. Sir Ian McKellen saiu de cena.
– tem certeza que quer brincar comigo, garoto? Você não conhece todas as minhas faces. Talvez não goste de conhecê-las todas.
Uma sombra passou por seu rosto: lembrei da cena de “O Senhor dos Anéis”, quando Bilbo resiste a entregar o Um Anel para Gandalf. Estava sol, mas fez frio. Estremeci. Ele percebeu e sorriu de novo. A nuvem tinha passado.
– eu não vim aqui para brigar, guri. Vim trazer-lhe um presente. É uma lembrancinha, como vocês gostam de dizer. Sim, é literalmente uma lembrancinha!
Ele riu de novo, e a risada casquinada virou um acesso de tosse de velho. Quando parou, ele me estendeu a mão. Havia algo nela. Um pequeno quadrado embalado em plástico, com listras vermelhas e azuis. Custei a perceber o que era. A lembrar.
Ele fez um gesto para que eu pegasse o que ele oferecia. Pensei que nem se o Vvrão no Rio chegasse no máximo aos 25 graus eu aceitaria aquele doce – mas era um Kri. O chocolate preferido do menino que eu fui.
Ele fez um gesto curioso com a mão, uma espécie de reverência. Como quem diz: “coma”. Eu mordi.
O sabor. Eu queria poder descrever o sabor. O cacau, a gordura hidrogenada e sabe-se lá mais o que que acrescentava doçura e sabor aos alimentos – e que nos foi tirado.
Eu mordi, e instantaneamente fui transportado para o ano de 1973. Eu me vi, sentado no degrau de entrada de uma casa, descalço e sujo, mas feliz, com o chocolate nas mãos. Era junho, a calçada estava molhada e fazia frio. Um vendedor de vassouras cruzou a rua. Em algum lugar tocava “Listen to the Music”, dos Doobie Brothers. Havia uma pilha enorme de madeira amontoada no meio-fio. Eu executei uma dancinha desajeitada em volta de mim, tentando absorver o máximo daquela epifania.
Um fotógrafo itinerante, comum nos anos 70, passou e tirou uma foto do garoto. Era ele, claro, o Sr. Tempo. Ele piscou para mim e seguiu seu caminho. O guri – eu – olhou para mim. Ele não deve ter gostado do que viu, o cara grande, repleto de tatuagens, com um olhar insano no rosto. Foi quando o chamaram:
– bora! Tem muita madeira para catar ainda, Zé! A festa vai ser hoje!
Ele riu, limpou os fundilhos da calça e foi, com seu amigo, reunir-se ao bando. Olhou mais uma vez para mim, por cima do ombro.
Uma lembrancinha, o sacana disse. Uma lembrancinha. Eu pisquei os olhos e voltei.
Ele não estava mais lá.
Só um invólucro de chocolate, listrado em azul e vermelho, no chão, o vento a brincar distraidamente com ele. O vento?
Recolhi o papel e continuei a caminhar.
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.