4 de maio de 2024
Colunistas Fernando Gabeira

Aos nigerianos que chegam

Quatro nigerianos foram resgatados no Brasil depois de uma viagem de 13 dias no leme de um navio com bandeira da Libéria. Uma extraordinária aventura, com riscos de afogamento e morte por frio no Atlântico.

Um dos nigerianos sorriu quando soube que estavam no Brasil. Rindo de quê? Perguntaria alguém mais severo com o país. Mas acho que se o tema for razões para sorrir, de uma certa forma, se deram bem.

Vale sorrir ao chegar ao Brasil com um inverno tão ameno em muitos pontos do país. Junho foi de manhãs lindas, julho não ficou atrás. Claro que tudo isso revela algo mais dramático no conjunto do planeta: os americanos registraram o dia mais quente de todos os tempos; os cientistas constataram que as placas de gelo nunca estiveram tão finas nos mares da Antártica. 

Enfim, chegaram num bom momento para sorrir, mas pode mudar bastante no verão. 

Chegaram também num bom momento para refugiados. Os afegãos que fugiram dos talibãs e estavam acampados em Guarulhos conseguiram documentos. Quem sabe não conseguem ficar? 

Se os nigerianos gostam de futebol, suponho que, sim, encontrarão um campeonato animado. Suspeito que torcerão pelo Flamengo. É o único time que tem um atacante nigeriano, Shola — e quem sabe não conseguem visitá-lo um dia? 

Quanto ao racismo, não há muito por que sorrir. Ainda assim, pelo menos chegam num momento em que foi criado o Ministério da Igualdade Racial.

Se entendessem o idioma, aí então encontrariam inúmeras razões para sorrir. Na TV discutiu-se sobre o que aconteceu no aeroporto de Roma, com um importante ministro do Supremo. Todos esperavam imagens de lá. Foram dias de debate, saber quem empurrou, quem xingou, quem socou, quem insultou. 

Bem-vindos ao mundo latino. Discorremos copiosamente à espera de imagens que poderiam ter sido enviadas em minutos, se a conexão fosse razoável. 

Os nigerianos chegam a um país em transição pelo menos no campo tributário. Estamos mudando o modelo de imposto, e quando tiverem grana para comprar algo, pelo menos saberão quanto estão pagando. Vale rir disso? Sorrisos não expressam sempre a mesma sensação. 

Na política, também há algo para sorrir, se possível enigmaticamente. Uma parte da oposição se unirá ao governo. Os jornalistas se esforçam para tornar o movimento difícil e emocionante. No entanto o grupo que se chama Centrão sempre entrou nos governos. É apenas questão de tempo. Não se iludam como se fosse algo extraordinário. 

Vocês chegaram ao país do carnaval. Quem sabe um dia uma escola de samba não conta sua saga no Atlântico? Vocês vão sorrir diante da criatividade, verão alas de golfinhos, tubarões dançantes. Olha os nigerianos aí, gente! 

Vocês chegaram pelo mar, ainda têm restrições de movimento. Com os portugueses também foi assim. Mas lembrem-se de que o Brasil tem lugares maravilhosos, dos quais pouco se fala. Quando a situação apertar, não hesitem em deixar as praias; afinal, não são caranguejos. 

No momento em que escrevo, estou nas estradas do Alto Xingu, no coração do Brasil. O cacique Raoni convocou uma grande reunião de povos indígenas e autoridades políticas. Já documentei um grande encontro no passado, com personalidades como o cantor Sting. 

Se puderem, olhem para dentro do Brasil. Há muitas razões para sorrir, embora vocês saibam, pelos dias de frio e medo no mar, que a vida não é apenas uma graça.

Não se preocupem: o país ao qual chegaram por acidente é pródigo ao ensinar duras realidades. 

Vocês não leram relatórios da ONU antes de se lançar nessa aventura marítima, mas os dados mostram que 70 milhões de brasileiros passaram por insegurança alimentar entre 2020 e 2022. Dez milhões são subalimentados. 

Afinal, já estão aqui e aprenderão a se comportar como um cliente neste gigantesco shopping: sorriam, vocês estão sendo filmados.

Artigo publicado no jornal O Globo em 24/07/2023

Fonte: Blog do Gabeira

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

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