8 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Teve ou não teve?

A insustentável incerteza do cinema.

Foto: Helvio

Ninguém duvida que Getúlio Vargas tenha dado um tiro no peito. Afinal, o fato ocorreu há poucas décadas, pessoas estiveram nos seus aposentos do Catete e presenciaram o evento, tornando-se testemunhas oculares da tragédia nacional.

Se um dia produzirem um filme biográfico sobre Carlos Drummond de Andrade, talvez o diretor inclua um dos hábitos mais curiosos do grande poeta: a mania de almoçar e jantar o mesmo prato durante a vida inteira – arroz, feijão, bife, batata frita, uma folha de alface e duas rodelas de tomate. Familiares, cozinheiras e outros que desfrutaram de sua intimidade dirão se é verdade ou apenas boato.

No entanto, tudo fica mais incerto e nebuloso à medida que se regride no tempo. O que achamos saber do passado é resultado de transcrição escrita e falada, repassada por milhares de uma geração para outra e por isso falível, sujeita a todo tipo de engano, interpretação e inverdade. Alguém aí garante, cem por cento, sem dúvida alguma, que Cleópatra suicidou-se aplicando uma serpente venenosa no seio? A parada da tropa às margens do riacho Ipiranga (e não no “Elvira do Piranga”, como cantou uma moça) foi mesmo ordenada por Dom Pedro para atender necessidades fisiológicas urgentes?

Tal como a famosa tela de Pedro Américo e outras expressões artísticas, o cinema é feito de imaginação também. Essa matéria-prima essencial tem sido cerceada pela patrulha politicamente correta, impondo regras, obrigando o diretor a inserir personagens representantes de minorias, temas “inclusivos” e outras bandeiras da atualidade – ridículas, de tão descaradas. Deu ruim, gerou greves e protestos; a liberdade de criar e interpretar resiste. Tarantino, por exemplo, já reescreveu a história duas vezes como bem-quis, assando Hitler, Goebbels e toda a cúpula nazista num cinema em “Bastardos Inglórios” e salvando Sharon Tate do assassinato pelo bando de Manson em “Era uma Vez em Hollywood”. Ninguém reclama dessas livres releituras. Claro: é só cinema, ficção e entretenimento.

“Napoleão”, em cartaz, entrou nas análises acaloradas. Já sugeriram que o roteiro seria injusto com sua esposa Josefina porque ocultaria, de propósito e por machismo, um enigmático “empoderamento” (arre!) da imperatriz – que corneava o maridão com mancebos da corte enquanto o imperador trabalhava com os canhões. Outra rusga: segundo a mídia europeia, o filme vem gerando resmungos e muxoxos franceses. Compreensível: Napoleão Bonaparte foi um vulto histórico, um ícone do passado gaulês e de toda a história mundial do século XIX. Mas Ridley Scott configurou-o mais humano e sentimental, além de pincelá-lo com toques de fragilidade e rabugice. Inquirido sobre a antipatia do público francês pela sua recente obra, o diretor levou na brincadeira: “Tudo bem, entendo, os franceses não gostam nem de si mesmos”, disse ele, aos risos, aos repórteres.

A advertência nos letreiros dos filmes históricos – “baseado em fatos reais” – dá o tom. Por mais que pesquisemos e reviremos alfarrábios das melhores bibliotecas, bancos de dados e museus, a margem de erro e a tolerância fazem parte do show. Quem conta um conto aumenta um ponto. Mas também consegue fantasiar, omitir ou criar novas versões. A história é escrita pelos vencedores, porém na arte ela está aberta a dúvidas infinitas, inevitáveis – e também irrelevantes, pela total impossibilidade de checá-las com exatidão.

Lembrei-me de uma antiga charge. Um homem das cavernas está pintando um mamute numa parede, à luz das tochas. Outro troglodita, observando a obra, dá seu palpite:

  • Pinte o bicho com duas trombas. Só de sacanagem, para confundir os arqueólogos.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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