10 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Páginas do horror

Mais pormenores do Holocausto revelados e revividos.

Assim como eu, amigos da geração “baby-boomer” confessam interesse frequente por assuntos da Segunda Guerra Mundial. Uma hipótese é a de que nossos pais tenham transferido para as crias seus temores inconscientes da época. Apaixonado por história, desde menino li e reli muito sobre o conflito e acabei aprendendo bastante sobre os personagens, batalhas, missões, aviões, navios e segredos dos Aliados e adversários.

O massacre nos campos nazistas causa-me incômodo especialmente doloroso. O sentimento é tão profundo que até suponho ter herdado longínquo resquício do povo judeu, uma vez que a cidadezinha toscana de meus avós, apelidada “pequena Jerusalém”, abrigara numerosa colônia no passado e mais sinagogas que igrejas – coisa rara na Itália. Porém, basta ser um espécime humano de qualquer origem ou credo para compartilhar a repugnância pelo genocídio e a compaixão pelas vítimas.

Terminei a leitura do certamente mais pavoroso e revoltante relato dos bastidores daqueles campos: “A Morte É Meu Ofício”, de Robert Merle, best-seller que conta a vida do oficial da SS nazista Rudolf Hoess (não confundir com Rudolf Hess, da cúpula do Reich). Em termos literários, a obra é singular porque o autor escreveu-a na primeira pessoa, como se Hoess narrasse a história sob sua própria ótica. Para isso, Merle baseou-se nas anotações do psicólogo Gustave Gilbert, que entrevistou longamente o carrasco na prisão, tentando decifrar sua mente, suas convicções e sua lógica.

Oprimido pelo pai – um religioso fanático que obrigava filhos a realizar tarefas dificílimas e que os castigava severamente por mínimas falhas ou atrasos –, Rudolf transformou-se num obsessivo “cumpridor de ordens”, abstendo-se do mais tênue questionamento ético, moral ou sentimental das decisões de seus chefes.

Iniciada a guerra, sua fidelidade cega eleva-o rapidamente na carreira, culminando no posto de coronel comandante dos campos poloneses Auschwitz-Birkenau. Ali chegavam comboios diários de 1.500 a 2.000 prisioneiros. Na visão de Hoess, a asfixia pelo monóxido de carbono dos escapamentos de caminhões e o sepultamento em valas comuns eram métodos lentos, custosos e que emperravam o fluxo desejado. O “grave problema logístico” vira um desafio prioritário para quem tratava prisioneiros homens, mulheres e crianças como meras “unidades”.

Buscando resultados rápidos e de baixo custo, Hoess introduz mudanças usando o gás Zyklon B e construindo gigantescos fornos para cremação. Suas inovações fazem-no modelo de gestão e queridinho de Himmler, que ordena a implantação dos mecanismos de Hoess nos demais campos. Disso veio um recorde comemorado pelas chefias: 8.000 “unidades” executadas e cremadas em 24 horas.

Vale alertar que o livro é sinistro. Precisei pausar a leitura diante de certas atitudes dos algozes, do desespero das crianças arrancadas dos pais, das vítimas nuas esmurrando paredes até desfalecerem, da imundície dos campos – como a permanente nuvem de fumaça engordurada e nauseante dos fornos cobrindo a região. Em Nuremberg, durante o julgamento, Hoess repetia, serenamente, que apenas cumpria ordens. Acusado de matar 3 milhões, interrompeu o juiz e afirmou terem sido só 2 milhões e meio. Foi condenado à forca e, a pedido dos poloneses, executado no próprio campo que comandou.

Há ainda quem diga que o holocausto foi apenas mais uma “narrativa” – palavra da moda. Portanto, cuidado: governantes de hoje continuam mentindo para esconder seus costumeiros crimes: a difusão do medo, a miséria, a fome, as perseguições de dissidentes, os roubos, as prisões absurdas, os atentados à liberdade de expressão e – horror dos horrores – sempre contando com a cumplicidade de uma justiça venal e beneficiária das tiranias.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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