8 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Mochilas mais leves

Separando o essencial do meramente acessório.

Uma das vantagens de envelhecer – existem algumas, sim – é poder botar em prática aquilo que os orientais chamam de “desiludir-se”. Embora a palavra tenha tomado um sentido negativo, desiludir-se não é ruim; na verdade, faz um bem danado. Assentamo-nos calmamente e começamos a jogar fora as ilusões: conceitos ultrapassados e preconceitos, lembranças, modos repetidos de agir, mágoas, besteiras inúteis, sucatas antigas e tranqueiras gerais que carregamos nas costas. É a chance de esvaziar a mochila cheia das pedras do caminho onde tropeçamos e estropiamos os dedões. Como recompensa, vamos ficando mais leves, mais tolerantes com os outros e com nós mesmos; menos chatos, dogmáticos e implicantes.

Amigos hoje denominados sexagenários têm a mesma sorte e com eles vamos trocando impressões sobre a riqueza e surpresas desse ritual. Porém, não são todos. Com pesar, vejo que existem os que fazem o contrário: mantêm a mochila abarrotada de pedras velhas e novas, pesadas e pontiagudas. Com pedregulhos constroem fortalezas sombrias nas quais se escondem, emburrados e agarrados aos seus frágeis tesouros, a maldizer o mundo. Sobre a ponte levadiça e o fosso dos crocodilos, uma placa identifica o morador: “Cuidado! Dono bravo!”.

Percebo que a TV e, sobretudo, a publicidade são grandes culpadas pelo fornecimento maciço de pedras, tijolos e cimento para a construção daquilo que chamam levianamente de “felicidade”. O castelo fascinante da eterna juventude anda muito em moda nas redes sociais ou nas academias. Nada contra uma vida saudável na primeira, segunda e terceira idade, pelo contrário – desde que não vire uma obsessão. Vamos fazendo ginástica, alimentando-nos bem, livrando-nos dos estresses possíveis – porém aceitando o inexorável escorrer da areia na ampulheta do deus Cronos, aquele senhor implacável que nos lembra que, um belo dia, a coisa acaba mesmo e, por alguma razão ou escorregão, vamos embora.

Por isso é que sempre acho graça ao ver comerciais de velhinhos surfistas malhados dançando rock com velhinhas idem. Ou idosos em motos turbinadas, tendo na garupa mulheres maravilhosas – e mais jovens, claro. Desconfio que os velhinhos malhados das propagandas pertençam ao mesmo público-alvo daquele comercial pós-Viagra, do gênero médico-milagroso, que termina com a enfática frase “sexo é vida”.

Claro que sexo é vida. Como também é vida acordar com preguiça na segunda-feira. Ou então pegar um ônibus. Ou espirrar. Ou nadar. Ou comer sanduíche, tomar banho, cortar as unhas. Ou conversar fiado com um amigo. Ou escrever crônicas, como faço agora. Até quando estamos à toa, pensando na vida, estamos “vivendo”, ou não? Só isso já bastaria para nos deixar maravilhados.

Para ser “feliz”, um idoso deve obrigatoriamente possuir um off-road 4×4, trilhar despenhadeiros na Califórnia, saltar de paraquedas ou descer as corredeiras de um rio turbulento ao som de música histérica, com a aparência dos 30 anos, adrenalina a mil e sempre a sorrir como um idiota? É muita sacanagem o que andam fazendo com os incautos telespectadores.

Prosseguimos vivos no turbilhão misterioso do minuto a minuto, hora a hora, dia após dia – desde aquele momento em que nascemos, enviados pelo Infinito, feito cometas errantes rumo ao Planeta Azul. Vida, pra mim, é isso tudo, enfim – e não algumas coisinhas pretensamente especiais determinadas pela moda, pelas novelas ou pela publicidade.

As ilusões representam as maiores pedras pesadas da mochila. Ou pior: do sapato. Duram até quando saímos da frente da TV, tomamos coragem, nos livramos delas e serenamente pisamos no chão da vida real.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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