8 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Certa noite de dezembro

Um infinito, um jorro sem fim, a vida que não para.

Foto: Hélvio

Maria estava na beira do fogão, hora da janta: arroz, abobrinha, iscas de frango e uma sobra de angu frio da véspera. José batia pregos no quintal consertando a bica do ribeirão que o temporal de novembro tinha destruído. Refeita e bem escorada, deixava correr o turbilhão de água fresca que José gostava tanto de ouvir e de imitar, assoviando junto, feito música.

Foi na hora que Maria se virou para pegar a frigideira que veio a fincada. Levou as mãos às cadeiras; doeu tanto que ela se escorou na pia. Respirou fundo. Que nada: outra espetada já se armava, aguda, fininha, danada de doída, pronta para disparar espinha abaixo.

  • Vem cá, Zé! – gritou da janela, acordando Neguinho, que cochilava na eterna paz dos gatos.

José bateu o último prego, largou o martelo e correu. Maria não tinha forças para ficar de pé, perdeu o fôlego. Respirou fundo de novo, assentou-se no banquinho de fora, atirando longe as sandálias. Foi bom pisar na terra, estava ainda morna no anoitecer de dezembro.

  • Corre, Zé!

O marido notou o rosto pálido da mulher, assentada toda torta, as mãos apoiadas no portal de um jeito esquisito, como se o mundo fosse desabar. A charrete estava perfeita, lustrosa, como ele gostava de deixá-la pronta, toda noite, debaixo da mangueira. E a mula também vivia de prontidão, pastando com uma corda mais curta e evitando que se afastasse.

Se arrumaram num instante: mula atrelada à charrete, sacola de plástico com documentos, a papelada dos exames, camisolas e outras coisas de mulher. Com jeito, José conseguiu que Maria subisse o primeiro degrau da charrete; depois não deu mais: carregou-a inteira, com cuidado, ajeitando-a sobre a almofada de trás.

Anoitecia e um bando de andorinhas riscou o céu, voltando para o mangueiral. José gostava delas assim, olhando da janela do quarto que se pintava de vermelho quando o sol descia. Achava bonito vê-las voando juntas. Mas agora, quase nem notava as andorinhas, atento ao trote ritmado da mula balançando o sininho do pescoço. Só queria chegar ao hospital. Bem que tinha insistido para que ficassem na cidade com a mãe já na semana passada, facilitava tudo. Mulher teimosa! Não desagarrava das coisas de casa, das violetas, da ninhada dos pintinhos e do gato de estimação.

José ainda teve tempo de dar um beijo na mulher quando ela passou pelo corredor na maca, com uma touca e a camisola verde cheirando à água sanitária. Foi um beijo rápido, meio sem graça pela presença da enfermeira sorridente, e ele foi para a varanda da maternidade vazia, onde um vira-latas magrelo e ressabiado abanou o rabo e chegou mais perto.

Era meia-noite quando uma estrela riscou o céu; estrela grande, brilhante, diferente. Da varanda mesmo José ouviu o chorinho leve do bebê e sorriu, os olhos marejando. Pensou no pai e tentou assoviar a música que o velho soprava na gaita para niná-lo. Aí se sentiu vivendo um mistério imenso, um redemoinho de tempo, de gente e de coisas. Céu azulão, cheiro de terra, bananeiras. Andorinhas, gatos, cachorros. As violetas de Maria e os olhos dela, tão doces, tão bonitos. Avô, avó, pai, mãe; seu filho que nascia e todas as crianças da roça, da cidade e do mundo, iguais ao Menino Jesus.

E ele então entendeu que era parte de um infinito, de um jorro sem fim, da vida que não parava. Era tudo e era nada, somente uma gota d’água numa torrente que nunca cessava feito a bica do quintal.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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