18 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Cadê a graça?

Agora, antes de rir, pergunte se pode.

Foto: Acir Galvão

Atenção, leitores de bem com a vida, alegres, gozadores em geral. Muita cautela, vocês que ainda conseguem – apesar dos pesares – rirem das comédias do quotidiano, do país, da moda grotesca, dos políticos imbecis, do governo ridículo, dos puxa-sacos da mídia, do nariz em pé de tantos, da condição humana, de si mesmos. Sejam cuidadosos ao compartilharem mensagens de zap, piadinhas, vídeos engraçados – esses pequenos momentos espirituosos e descontraídos que nos são facultados pela tecnologia digital.

Isso porque o mundo está contaminado pela tenebrosa doença do emburro ideológico – uma nuvem negra projetada, construída e mantida pelo politicamente correto. Acometido desta enfermidade, agora para rir da piada o doente necessita pedir permissões. Para quem? A lista é imensa.

Primeiro, para sua própria cabeça. Em seguida, permissão para seus amigos igualmente contaminados – será, meu Deus, que eles aprovam? Na sequência hierárquica, para os censores de seu círculo familiar, profissional, para seu professor. Para a amiga feminista obsessiva. Para a patrulha intelectual das mesas de bar, atenta a uma eventual escorregadela de membros da tribo. Para integrantes fanáticos de confrarias, seitas, tendências filosóficas, grupos sensíveis de qualquer formato, gente arrepiada e sempre armada contra o humor demolidor.

Nem tudo nas redes é realmente engraçado; tem porcaria de sobra. De posse de um celular, milhões se tornaram cineastas, comediantes e produtores num piscar de olhos. Ruim é que vários olhos estão voltados não para a graça original de coisas ou situações, mas para o grotesco, o escandaloso e o escatológico, comprovando as tenebrosas advertências de Umberto Eco.

Para mim, o humor nada mais é que a capacidade de enxergarmos o inusitado numa situação banal. Assim vinham desopilando nossos fígados os irmãos Marx, Chaplin, o Gordo e o Magro, Buster Keaton, Cantinflas, Oscarito e Grande Otelo, Lucille Ball, Jerry Lewis, os Trapalhões, Peter Sellers, Rowan Atkinson e outros. A principal vantagem do humor é ser absolutamente democrático: cada um ri quando, como e tanto o que quiser. O único condicionante também nos chega através de uma frase igualmente divertida: gosto não se discute, apenas se lamenta.

E por onde anda a graça nesses tempos desgraçados? A graça, também conhecida como espontaneidade, é aquela musa sorridente do panteão divino que usa shorts e camisetas, assentada bem à vontade de pernas cruzadas sobre o trono, mascando chicletes ou assoviando. Ela é a deusa que de vez em quando desce ao universo humano para fazer da vida uma coisa menos chata, aborrecida, boba.

Fiel à sua natureza anárquica, a graça está se lixando para a censura e salta a barreira do superego feito uma atleta olímpica numa corrida de obstáculos. A graça inventa, improvisa, brinca, ironiza, pula fora da caixinha tediosa do normal. Traz o contraditório e dá uma rasteira na arrogância intelectual. Bota a cereja no topo do bolo, cria o refrão inesquecível da música, espalha travessuras por onde passa; sapeca um beijo quando ninguém espera.

Portanto, relaxemos, gozemos e não percamos a graça. O humor continua sendo o grande antídoto contra a rigidez, as mentes estreitas, a caretice, a tirania. Que seja sagrado e eterno o nosso direito de rir e de louvar a originalidade, a criatividade, as ironias, frases, deboches, ditos populares, tudo que seja engraçado por si só ou que denuncie a nudez do rei – aquele sujeitinho enjoado, repressor e metido a besta que circula por aí com a bunda de fora.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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