8 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

A arte da cura

E algumas interrogações inevitáveis.

Foto: Hélvio

Meu pai estava noivo e de casamento marcado quando começaram as dores na barriga. A coisa piorava a cada dia, deixando a noiva em pânico. Sem diagnóstico seguro, virou freguês do pronto-socorro. Examinavam-no, receitavam um analgésico, e só. Já circulava a versão tenebrosa: vésperas do casamento e desenganado pelos médicos! Desenganado! Um dia, no auge de nova crise, correram com ele para o Hospital Militar. De plantão, um jovem e simpático médico logo o tranquilizou:

– Não se preocupe, vou salvar você.

Bisturi na mão, retirou um imenso pólipo da bexiga dele. Para alívio geral, papai pôde casar-se com mamãe e terminar a casinha em construção. O competente e sorridente doutor era um urologista recém-chegado de especialização na Europa: Juscelino Kubitschek de Oliveira. Depois, largou a medicina; entrou na política – e o resto da história vocês conhecem.

A arte da cura sempre me fascinou, embora nunca tenha notado a mais leve vocação para a carreira médica. Se existem hipocondríacos, sofro de outro mal: sou “bulacondríaco”, vocábulo que inventei para explicar reações de meu organismo. Apesar de não ler nenhuma bula antes de engolir a pílula, pertenço ao infeliz grupo que não ganha quase nada dos bens ali prometidos e que absorve, traiçoeiro, a imensa lista de efeitos adversos. De gozação, amigos médicos já sugeriram levar-me a congressos e me exibirem como um raro espécime, refém dos colaterais.

Fiquei surpreso ao saber que o Brasil figura entre os primeiros nos transplantes de órgãos. Tal especialidade sofisticada destoa num cenário de tantas carências mais simples e urgentes, já que praticamente metade da população não tem acesso à água tratada e ao saneamento básico. E onde as filas dos postos médicos permanecem imensas, suplicantes e indignadas.

Mais um transplante de coração bem-sucedido aconteceu. Desta vez, no paciente Fausto Corrêa da Silva, para alívio de familiares e amigos preocupados com sua cardiopatia. Ele aguardava na fila do SUS, que não funciona propriamente como tal. Trata-se de uma escala móvel que realoca pacientes graves por meio de delicada combinação entre fatores clínicos do doador e do receptor e (atenção!) preservando suas identidades – detalhe básico, humanitário e, sobretudo, ético.

O cidadão paciente do SUS Fausto Corrêa da Silva, conhecido como “Faustão”, é a maior estrela de uma emissora. E sua condição médica – íntima, reservada, pessoal – tornou-se fato público explorado pela banalidade que tomou conta da TV brasileira. Claramente em busca de mais audiência, já que milhões trocaram-na pela polêmica – mas também saudável – pluralidade da internet, a TV enxergou ali um possível sucesso e fez do transplante um espetáculo – antes, durante e depois.

Quero crer que seres humanos, famosos ou não, tenham direito irrevogável à privacidade em questões pessoais, afetivas, familiares, de saúde. Entretanto, sob fantasia de solidariedade a um colega, o caso tomou tonalidades oportunistas e quase sensacionalistas. Afirmações insistentes visavam apagar suspeitas de que Fausto Corrêa da Silva não furou a fila por ser o Faustão. Sobraram chamadas ao vivo nos noticiários, quando âncoras e repórteres risonhos relatavam etapas da cirurgia com a informalidade de um evento esportivo ou de amenidades. De carona, lançaram campanha de doação de órgãos – puro marketing de ocasião. Por que só agora, neste país notável por tantos transplantes de pacientes anônimos?

Que Fausto Corrêa da Silva se recupere logo, é um cara legal. “Que louco, meu!” – como diz o Faustão– é o mínimo que se pode concluir das mazelas que agora acometem a imprensa escrita, falada e televisada deste Brasil incurável.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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