17 de outubro de 2024
Carlos Eduardo Leão

No avião com Chucky

Viajar ao lado de crianças agitadas tem sido uma verdadeira aventura nas alturas. E pelo jeito, sem solução.

Entrei para o seleto grupo de colecionadores de aventuras em avião. E a saga, desta vez, foi num Boeing da GOL de Congonhas pra Confins na semana passada.

Precisei antecipar meu voo e nessa brincadeira perdi a companhia de Thaïs ao meu lado por falta de assentos juntos. Sentei-me na primeira fila, na cadeira do meio. Mais uma centímetro de largura na minha silhueta estaria entalado pra sempre de tão estreitas que são as poltronas nesta fileira.

E tá que entra gente, a janela ao meu lado livre e eu em fervorosa oração pra continuar assim. Mas não teve jeito. Um pai com um menininho no colo.

Loirinho, olhos azuis, olhar angelical, sugava um bico azul com tal voracidade que me parecia fome. Trinta segundos sentado, o menino começou a se alongar, bater as pernas naquela típica agitação de quem não está satisfeito. O pai, candidato a santo já na próxima rodada de canonização do Vaticano, coloca a criança no chão.

O pequeno ser descobre o bolsão à sua frente e começa a retirar os folhetos informativos e arremessa-los ao léu. A revista, com algumas páginas docilmente arrancadas pela criatura, era pesada para arremessos tão longínquos. “Não faça isso, João Pedro! Isso não pode! Papai vai ficar bravo!” E o menino nem tchum!

Abnegados passageiros traziam os folhetos de volta e os entregavam ao progenitor. De repente, nosso João morde o bolsão. Não havia jeito de soltá-lo apesar dos esforços do pai. Lembrou-me a mordida de pit bull que só larga a presa quando arranca o pedaço. Ainda bem que existe celular e seus joguinhos. Uma espécie de Prozac infantil. Dito e feito. O menino acalmou, soltou o bolsão e voltou pro colo do próximo santo brasileiro. Levantamos voo e a vida parecia bela novamente.

Hora do recreio. Bebida com aquele biscoitinho de quinta oferecido pelos comissários. João Pedro agarra o seu com bravura espartana.

Permaneci sentado, braços nos descansos, cabeça repousada no encosto, olhos cerrados. De repente sinto um líquido quente, viscoso e abundante encobrir metade do meu antebraço esquerdo, punho e parte da mão.

Pensei numa sopa grossa feita com guisado de urubu defumado. Joãozinho acabava de vomitar. Não via mais meu relógio. “Hulk” estava morto, afogado naquele lamaçal.

Por sorte a simpática comissária veio com uma toalha e envolveu meu braço para que eu chegasse ao lavatório sem empestear a aeronave. Dado o cheiro, a amputação não foi afastada como medida terapêutica.

Vinte minutos lavando o braço e o relógio. Estavam limpos mas o cheiro não passava. Como médico fica mais fácil entender a razão desse desatino.

Vomitar desencadeia algumas sensações que chamamos reflexo vagal que, dentre tantos efeitos, um é a sonolência. O menino aninhou-se no ombro direito do pai. Olhava candidamente pra mim até que adormeceu.

Resolvi cerrar os olhos e tirar um merecidíssimo cochilo até que fui acordado com um tapa na cara. Ao abrir os olhos, outro tapa com direito a dedo no meu olho esquerdo. Levanto e retorno ao toilette para tentar salvar minha visão.

Pensei comigo mesmo: Estou ao lado de “Chucky” disfarçado, só pode! Não tinha outra explicação. Voltei apavorado pensando nas cenas do próximo capítulo. Joãozinho dormia profundamente.

Pousamos em BH. O pai levanta com o parrudo e lindo menino de quase dois anos no colo para pegar a bagagem. Levantei-me em seguida. Postei-me ao lado do predador mirim já esperando pelo pior. Ele me olha, aproxima-se, me dá um abraço e um beijo tão espontâneos que me derrubaram literalmente.

Toda aquela antipatia e os mais sórdidos desejos humanos em mim despertados desapareceram completamente. Retribui os dois, abraço e beijo, com amor de avô que, dizem os que adquirem este status, chega ser maior que o de pai.

“Nunca mais viajo com ele sem a mãe”, comenta o pai, nosso futuro canonizado. E eu perguntei: “Essa foi a primeira vez?” E ele inconteste: “Não. A última”.

Muito embora seja nossa obrigação também, rendo-me ao jeitinho todo especial e insubstituível das mães.

Carlos Eduardo Leão

Cirurgião Plástico em BH e Cronista do Blog do Leão

Cirurgião Plástico em BH e Cronista do Blog do Leão

1 Comentário

  • Rachel Alkabes 24 de junho de 2024

    Ah, Dr. Carlos! Nada de canonização! Santos dão limites. Peraí. Essa nova geração faz o que quer. Tenho netos também e só param quando eu pego o celular e digo que vou falar c Papai Noel, kkkk. Claro que não uso esse recurso toda hora. By the way, seu texto é engraçado ahahahahah. Imaginei tudo.

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