2 de maio de 2024
Adriano de Aquino Colunistas

A esquerda precisa deixar de ser chata se quiser se manter competitiva

A meta deles é transformar simpatizantes em neutros, neutros em adversários e adversários em inimigos.

A minha última proposta de mudança de atitude para uma esquerda que quiser se manter competitiva é bem prosaica: deixem de ser chatos, ninguém gosta de chatos, o chato estraga qualquer causa.

Basta um pouco de bom senso. Suponhamos que você seja proprietário, sei lá, da Concessionária Brasil. Quem você contrataria para vender carros? Alguém simpático, capaz de identificar desejos que o comprador nem sabia ter e convertê-los em vendas, ou um chato? Na política, uma atividade que requer, por natureza, persuasão, convencimento e sedução, a mesma lógica se aplica.

O chato é insuportável, molesto, inconveniente. Quer estragar uma pauta? Tornar socialmente antipática a causa mais nobre? Quer aumentar o número dos seus adversários? Deixe por conta dos chatos e tudo isso estará garantido.

O chato despreza a simpatia como estratégia, o negócio dele é incomodar. A meta é transformar simpatizantes em neutros, neutros em adversários e adversários em inimigos.

Para não deixar dúvida, “chato” aqui não tem o sentido de maçante, aborrecido, enfadonho, uma acepção possível, mas de antipático, desagradável. “Monótono” pode até ser um predicado positivo nesses tempos de coisas bizarras, mas o chato a que me refiro acumula os defeitos de ser ativo, incômodo e repelente.

Foi Jô Soares quem melhor o descreveu: “Um chato nunca perde o seu tempo. Perde sempre o dos outros”. Foi ele quem lapidou a lei mor do chato: “Todo chato cutuca”. Cutuca, apalpa e acha sempre uma costura frouxa na sua camisa. Tudo isso a cinco centímetros da sua boca.

Toda área tem seu chato, mas o paradigma é o mesmo. Na religião, há aqueles sujeitos que batem à porta da sua casa às sete da manhã do domingo para indagar: “Olá, você teria um minuto para ouvir a palavra?”. Cogita-se um “chaticídio”, claro. O chato não tem senso, conveniência ou limites, não aceita ser ignorado.

Há várias categorias de chatos na esquerda e, aparentemente, estão se multiplicando nesses tempos em que os ativistas nem sequer tiveram um treinamento “presencial”. Formaram-se sozinhos, nas quebradas digitais. Tivessem passado pela convivência física, teriam aprendido a regra de ouro: o que você não teria coragem de dizer a alguém a meio metro distância tampouco deveria ser dito online.

O chato mais comum na esquerda é o “problematizador”. Ele tem ideias curtas, mas opiniões compridas, que simplesmente precisa apresentar. Não importa se alguém se interessa por elas ou se a audiência está ali por outra pessoa. Antigamente, o tipo mais clássico de problematizador de esquerda era o “louco de palestra”, que já frequentou muita crônica —e muita conferência.

Eu o acho mais chato que maluco e tenho certeza que um chato aparecerá aqui para denunciar que “saúde mental é coisa séria e que essa acepção de maluco é politicamente incorreta”. Como a “chatofobia” ainda não foi criminalizada, tentarei por esse caminho.

“Gostaria de problematizar essa sua colocação” é uma forma de cutucar ou achar uma linha solta ou uma migalha na camisa do interlocutor, no caso, do palestrante, colunista ou autor do post. “Acho que você está certo, mas senti um certo tom de misoginia” é frase típica do chato da hipercorreção política. “O que você está dizendo dos yanomamis procede, mas acho desrespeitoso não mencionar os ataques americanos aos houthis do Iêmen” é próprio do chato sommelier de indignações morais.

“Seu texto até estava indo bem, mas ‘la donna è mobile’ é de uma ária da ‘Traviata’ e não do ‘Rigoletto’” é do chato sabe-tudo, que em geral corrige errado. “É evidente que você não sabe do que está falando, sugiro que em vez de Habermas leia Bohumila”, diz o chato que passa bibliografia.

Mas o “Chato’s Award” de 2023 certamente vai para o beato da pureza política. Ele é o olheiro, “que a vida do vizinho e da vizinha pesquisa, escuta, espreita esquadrinha, para o levar à praça e ao terreiro”, a que se refere Gregório de Matos. O beato da pureza política se encarrega de fazer listas dos delitos de opinião que devem ser atribuídos a fulano e a sicrano para desmascará-los perpetuamente.

“Sabem essas jornalistas cujos textos vocês estão compartilhando? Uma apoiou a Lava Jato a outra chegou a dizer que Sergio Moro era inteligente. Em 2014.” O “desmascarado” naturalmente se resume a isso, à “falha” que o chato detectou e precisa repetidamente mostrar. O chato não faz novos amigos nem quer que ninguém os faça; ele precisa de inimigos, quanto mais, melhor.

Adriano de Aquino

Artista visual. Participou da exposição Opinião 65 MAM/RJ. Propostas 66 São Paulo, sala especial "Em Busca da Essência" Bienal de São Paulo e diversas exposições individuais no Brasil e no exterior. Foi diretor dos Museus da FUNARJ, Secretário de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas /FUNARTE e outras atividades de gestão pública em política cultural.

Artista visual. Participou da exposição Opinião 65 MAM/RJ. Propostas 66 São Paulo, sala especial "Em Busca da Essência" Bienal de São Paulo e diversas exposições individuais no Brasil e no exterior. Foi diretor dos Museus da FUNARJ, Secretário de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas /FUNARTE e outras atividades de gestão pública em política cultural.

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