De: Scott Frank, criador, diretor, EUA, 2017
(Disponível na Netflix em 2/2024.)
Não dá para saber se John Ford, Anthony Mann, Howard Hawks, Raoul Walsh gostariam de Godless, western em sete episódios de cerca de uma hora cada escrito e dirigido por Scott Frank e lançado pela Netflix em 2017. Eu ousaria chutar que Sam Peckinpah e Sergio Leone aplaudiriam de pé como na ópera.
Como em um dos maiores westerns de todos os tempos, O Homem Que Matou o Facínora (1961), do mestre dos mestres John Ford, há em Godless um bandido especialmente, exageradissimamente bandido, um tal Frank Griffin, interpretado por Jeff Daniels (na foto abaixo), há também um jornalista – bem mais irresponsável e mentiroso do que o Duttonj Peabody interpretado por Edmond O’Brien, aquele que dizia que, se a lenda for melhor que a história real, deve-se publicar a lenda.
Como em Audazes e Malditos/Sergeant Ruthledge (1960), também de Ford, há negros na trama, e tem grande importância a presença de negros – algo que não chega a ser comum neste que é um dos gêneros mais antigos do cinema, e um dos mais tradicionais do cinema americano.
Como em Johnny Guitar (1954), o aclamadíssimo clássico de Nicholas Ray, as mulheres têm um destaque imenso, descomunal em Godless: a maior parte da ação se passa numa cidadezinha do Novo México, La Belle, em que um acidente na mina de prata havia matado a imensa maioria dos homens, deixando a cidade a rigor a cargo das viúvas.
Lá pelas tantas, o bandidaço Frank Griffin faz uma elegia à espingarda Winchester ‘73 – e aí fica muito óbvio que é uma referência direta que o diretor e criador Scott Frank está fazendo a Anthony Mann, o cineasta de tantos grandes westerns, Winchester ’73 (1950) apenas um deles.
Mas Ford, Mann, Hawks, Walsh, todos esses grandes realizadores eram adeptos de um estilo narrativo escorreito, direto, clássico, ou – a palavrinha que os críticos adoram usar para desqualificar as obras – “acadêmico”. Dá para apostar que Scott Frank – que, da classe de 1960, não é um garotinho – viu e reviu os westerns de narrativa “acadêmica” dos mestres todos, mas também viu muito os de Peckinpah e de Leone. Em Godless, há muito do estilo tanto do californiano quanto do romano, no jeito de estilizar as sequências de violência, de tiroteio. Nessas sequências, foge-se do realismo, da narrativa natural, normal – fica tudo estilizado e estiloso.
Godless é uma série que impressiona pelo exagero (tanto na forma quanto no conteúdo), pela estonteante beleza visual, pela trama rica, fantasticamente bem urdida, cheia de subtramas, pelos personagens marcantes, impressionantes, pelas belas interpretações de todo o elenco – e pela ousadia.
Há ousadias que só o passar do tempo permite. Nem ousados, iconoclastas, nada acadêmicos Sam Peckinpah e Sergio Leone se permitiriam colocar, em seus westerns, tantas blasfêmias quanto as ditas por Frank Griffin-Jeff Daniels. Ou tratar como coisa natural o casamento de uma branca com um índio. Ou um namoro entre branco e negra – algo que era proibido por lei em diversos Estados norte-americanos até meados dos anos 1960, quando ato do então presidente Lyndon Johnson baniu definitivamente as Leis Jim Crown, o apartheid vigente no país que se diz da liberdade e da democracia. Ou um amor lésbico. Ou uma puta que vira a professorinha da escola das crianças.
Fazer um western é assim uma das coisas da bucket list de um ator – a lista de coisas que a gente gostaria de fazer antes de morrer –, diz Jeff Daniels em um dos vários filmetes-teasers da série.
Godless foi o primeiro western da carreira de quase 90 títulos desse ator – iniciada em 1980, quando minha filha tinha cinco anos, John Ford, Anthony Mann e Howard Hawks já estava mortos, Sam Peckinpah estava aposentado e Sergio Leone se preparava para fazer sua obra-prima maior e seu canto do cisne, Era Uma Vez na América (1984).
E é especialmente interessante, porque, creio, este foi também o primeiro bandido que Jeff Daniels interpretou – ou, se não foi o primeiro, foi seguramente o pior, o mais cruel. A lembrança mais forte que a gente tem de Jeff Daniels, creio, é a do ator gentil, suave, educado, que sai da tela do cinema e vem para o mundo real para conversar com a moça triste que via sem parar um de seus filmes, naquela absoluta maravilha que é A Rosa Púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen.
Tão chocante quanto ver Jeff Daniels no papel de um bandido especialmente, exageradamente cruel é ver a inglesa de Essex Michelle Dockery (na foto abaixo) como a dura, forte, firme, solitária, sofrida, duas vezes viúva Alice Fletcher, o principal papel feminino desta série com tantas personagens femininas. Ah, cara… Depois de ver Michelle Dockery como Lady Mary Crawley em 52 episódios de Downton Abbey, é muito esquisito vê-la como aquela dona de fazenda no meio do Oeste bravo que primeiro atira com sua espingarda gigantesca e depois vê quem é a pessoa que ousou entrar na sua terra…
No primeiro dos sete episódios dessa série fantástica, esplendorosamente bem realizada, Alice Fletcher pergunta quem é que está aí, quando, de noite, alguém se aproxima da sede de seu rancho. Como não tem resposta, ela atira. O sujeito que chegava – e leva um tiro no pescoço, mas não morre – é Roy Goode, o protagonista principal da trama, interpretado por Jack O’Connell (na foto mais abaixo), inglês de Derbyshire.
Uma série bangue-bangue em que os atores que fazem os dois papéis centrais são uma inglesa de Essex e um inglês de Derbyshire.
Godless é surpreendente. E é uma maravilha.
É obrigatório haver uma sinopse, que conte ao eventual leitor uma síntese da trama. Eis, com alguns pitacos meus, a sinopse feita no site agregador de opiniões Rotten Tomatoes – que mostra que a série teve a aprovação de 83% dos críticos e de 85% dos leitores:
O conhecido criminoso Frank Griffin e sua gangue de bandidos estão em uma missão – vingar-se de Roy Goode, um ex-aliado, tratado por Frank como um filho, que traiu o grupo. Na fuga, Roy tenta se esconder na região de uma cidade mineradora distante de tudo, LaBelle, Novo México, onde vai parar na fazenda de Alice Fletcher, endurecida viúva considerada uma pária por boa parte dos habitantes do lugar.
Hum… Tá. É uma síntese razoável. Vejo que ela está também, ipsis litteris, no IMDb, assinada por um leitor que se identifica como Jwelch5742 – não dá para saber quem copiou quem.
A questão é que a história criada por Scott Frank é extremamente complexa, cheia de subtramas. São muitos, muitos, muitos os personagens importantes, e cada um tem sua história, e é tudo muito rico, muito cheio de nuances, de detalhes.
Me lembrei agora, neste momento, enquanto escrevo, de uma belíssima série francesa inspirada em um acontecimento real, um gigantesco incêndio em área nobre de Paris que matou 126 pessoas em 1897, Chamas do Destino, no original Le Bazar de la Charité. Diacho: fui dar uma espiada no meu texto sobre a série, e lá estão frases que serviriam perfeitamente para este bangue-bangue serial aqui. Bastaria mudar o título da série francesa de 2019 por esta americana aqui de 2017:
“Chamas do Destino é um monumento de criatividade, de inventividade, de engenhosidade. Ficaram pipocando na minha cabeça os nomes de Janete Clair, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva, Ivany Ribeiro, Marcos Rey, Manoel Carlos, Glória Perez, Silvio Abreu, Lauro César Muniz, Benedito Ruy Barbosa – os grandes criadores das tramas dos folhetins brasileiros. Tenho a absoluta certeza de que todos eles se poriam de pé para aplaudir, como na ópera, a maestria com que foi criada a trama deste novelão. É um novelão. Tem muita coisa que a rigor, a rigor, roça na inverossimilhança. Há exagero, muita situação incrível demais. Mas, diacho, não são assim os folhetins, as novelas? E a vida da gente às vezes não parece mesmo um imenso novelão? E a verdade é esta: não me lembro de ter visto nos últimos anos outro novelão tão fascinante, uma história tão bem construída quanto esta aqui.”
O que me fez lembrar de Chamas do Destino foi que a série francesa usa uma expressão que eu não conhecia, da qual nunca tinha ouvido falar: “arcos narrativos”. Os créditos dizem que a série foi “criada por Catherine Ramberg e Karin Spreuzkouski, a partir de uma história e personagens de Catherine Ramberg. Arcos narrativos por Catherine Ramberg, Karin Spreuzkouski e Yves Ramonet”.
“Arches narratives.” Achei a expressão chiquetérrima.
Godless é uma série que tem arcos narrativos. O fantástico é que tudo – a história básica, todas as subtramas, todos os arcos narrativos, tudo foi criado por um sujeito só, esse tal desse Scott Frank.
Sim, há a história básica, aquela que reproduzi aí logo acima – Frank Griffin e seu bando de cerca de 30 pistoleiros, assassinos ferozes, estão perseguindo Roy Goode, que traiu o grupo. Mas há diversas subtramas, arcos narrativos, que se interligam, se interceptam, se interpenetram. É tudo de uma extraordinária beleza.
Como tem sido a regra nos últimos tempos, subverte-se constantemente a ordem cronológica. Vamos ao passado e voltamos aos dias de hoje, aos dias em que acontecem os eventos centrais da trama, sem parar, sem parar. E o roteiro é perfeito nessas idas e vindas no tempo: simplesmente não poderia ser diferente, a história não poderia ser contada na ordem cronológica dos fatos – porque primeiro é preciso que o espectador conheça os personagens, para depois ficar sabendo de fatos de seu passado.
E, meu Deus, como há tragédias no passado daquelas pessoas todas!
De Alice Fletcher (o papel, repito, de Michelle Dockery), ficamos sabendo que, muito jovem, ali pelos 18 anos de idade, deixou Boston, então uma das maiores e principais cidades do país, e foi para o Oeste, para se casar com o sócio de seu pai, uma união arranjada e determinada por ele. Pouco depois de chegar àquele distante fim de mundo, houve uma grande inundação em que ela quase morreu e perdeu o marido. Mais tarde, sofreu um ataque brutal de um grupo de bandidos – e foi ajudada por um homem chamado Bill McNue. Conheceu um índio, com quem se casou e teve um filho, Truckee (Samuel Marty). O marido morreu, e ela ficou apenas com a velha sogra, Iyovi (Tantoo Cardinal, em desempenho excepcional), o filho e uma fazenda para cuidar.
Por ser viúva de um índio, mãe de um mestiço (half-breed, expressão racista, usada pelos brancos com nojo), e viver com uma velha índia com jeito de bruxa, Alice atraiu a antipatia, o desprezo, até mesmo o ódio da maior parte dos habitantes da cidade mais próxima, LaBelle.
O filho Truckee e a sogra Iyovi, por sua vez, são personagens fascinantes neste arco narrativo em torno de Alice Fletcher. Iyovi não apenas tem todo jeito de bruxa – ela é mesmo um tanto feiticeira, com aquela sabedoria milenar dos índios. Quando Roy Goode, fugindo do bando assassino de Frank Griffin, chega à fazenda de Alice para tentar se esconder e leva um tiro na garganta, a velha Iyovi trata do ferimento com medicina indígena, que inclui pólvora e fogo no local. Deve ter doído mais do que o tiro, mas Roy fica melhor bem rapidamente…
Iyovi se recusa a falar Inglês; só fala sua própria língua – que, felizmente, a nora e o neto compreendem.
Detalhinhos: Iyovi pertence à nação indígena dos paiutes. A atriz que a interpreta, essa ótima Tantoo Cardinal – que aliás está também em Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese – é de Alberta, Canadá, descendente de brancos e de índios cris (cree, em inglês).
A avó é índia demais – mas o neto é índio de menos. Truckee é um rapaz de uns 16 anos de idade, inteligente, sensível – mas que não gosta de caçar, sequer de montar a cavalo. Na verdade, tem até medo deles.
A amizade que vai se estabelecer entre Truckee e Roy Goode é um dos vários belos achados da série.
Alice percebe que Roy é especialmente jeitoso para lidar com cavalos – e ela tem uma dúzia ou mais de cavalos selvagens em sua fazenda. É seu mais valioso bem. Então, enquanto Roy vai se recuperando do tiro que levou de Alice, ela pede a ele que cuide dos seus cavalos – os dome, os treine, para que possa vendê-los às mulheres de LaBelle. Com o dinheiro que viesse a obter, ela tentaria voltar para Boston.
Pois aí vão ficando amigos o mestiço órfão de pai índio que tem medo de cavalos e o branco que havia ficado órfão muito cedo – os pais haviam sido assassinados brutalmente – e então sido criado pelo bandido Frank Griffin, e possuía especial dom para cuidar dos animais.
O branco ensina o filho de índio a montar, cavalgar. Em troca, a mulher que havia saído do civilizado Leste para enfrentar os perigos todos do Oeste ensina Roy a ler.
Parece óbvio para qualquer espectador que alguma hora vai haver algo entre Roy Goode e Alice Fletcher. Uma mulher linda, viúva, solitária. Um homem bonito, que, apesar de ter sido criado no meio de bandidos sanguinários, não é um bandido. E, afinal de contas, são os personagens centrais da história, diacho!
Mas há outro homem que arrasta as asinhas para a aquele mulherão: é o xerife de LaBelle, Bill McNue (o papel de Scoot McNairy), que, no passado, a havia ajudado quando sofreu o ataque brutal de um grupo de bandidos.
Sim, sem dúvida alguma, o “arco narrativo” em torno de Alice Fletcher é fascinante. Mas o xerife Bill McNue é o centro de um outro arco narrativo.
Bill perdeu a mulher Anna (Whitney Able) bem cedo – ela morreu por complicações no parto da segunda criança do casal, a garotinha Trudy, que, nos dias “de hoje”, quer dizer, os dias em que se passa a ação principal, está aí com uns seis, sete anos de idade (o papel de Marie Wagenman).
Exatamente como faz o ex-pistoleiro tornado fazendeiro Bill Munny de Os Imperdoáveis/Unforgiven (1992) de Clint Eastwood, que visita sempre a sepultura de sua Claudia e conversa com a mulher morta, o xerife Bill McNue fala com Anna diante de seu túmulo. Conta para ela que tem dificuldades no relacionamento com a filhinha – na verdade, ele culpa a filha pela morte de sua mulher.
Mas Bill tem sonhado e pensado bem menos em Anna do que antes – e sua cabeça tem ficado mais e mais ocupada por Alice Fletcher. O espectador fica sabendo disso logo no primeiro dos sete episódios de Godless.
O grande problema que aflige o xerife é o fato de que ele está enxergando cada vez pior. Acha que está ficando cego – no primeiro episódio, nós o vemos submetendo-se a um tratamento dado por um índio, um curandeiro.
Por causa dos problemas com a visão, o xerife tem ficado cada vez menos tempo trabalhando em LaBelle – deixando que seu jovem assistente assuma as tarefas diárias. Isso provoca comentários dos habitantes da cidade, os poucos homens que sobreviveram à tragédia da mina e as muitas mulheres que ficaram viúvas: fala-se que o xerife McNue não enfrenta mais os eventuais bandidos que aparecem por ali, que está ficando covarde.
O jovem auxiliar do xerife se chama Whitey Winn (o papel de Thomas Brodie-Sangster, ótimo), e é uma boa figura, um personagem bem interessante. Whitey, que admira o chefe e tem o maior respeito por ele, fica apaixonado pela jovem e bela Louise Hobbs (Jessica Sula), filha de um dos homens mais importantes da cidadezinha de Blackdom, não muito distante de LaBelle. Blackdom, como o próprio nome indica, é uma cidade formada só por negros, vários deles veteranos da Guerra Civil (1861-1865).
Na verdade, Blackdom é, em si, uma outra subtrama, um outro arco narrativo. Há várias sequências passadas na cidade dos negros, e fala-se muito de seus habitantes, os veteranos da guerra que eram chamados de Buffalo Soldiers (a origem do título da canção de Bob Marley, “Buffalo Soldier, dreadlock Rasta / There was a Buffalo Soldier / In the heart of America”).
As subtramas se interconectam, se interpenetram. O garoto Whitey que se apaixona pela filha de um ex-Buffalo Soldier vive sozinho, sem família alguma – e Mary Agnes McNue (o papel de Merritt Wever, fantástica, na foto acima) cuida dele como se fosse um filho.
Mary Agnes está no arco narrativo em torno do xerife – é irmã dele. Mas, a rigor, é o centro de uma outra subtrama. É uma mulher forte, poderosa, uma daquelas pessoas que é líder natural na sua comunidade. Como tantas outras mulheres de LaBelle, perdeu o marido – e, dura, independente, voltou a usar o nome de solteira. Esse é um detalhinho fascinante – a rigor inimaginável para aquela época, 1884 -, feito para indicar como era de uma independência fantástica aquela mulher forte.
Mary Agnes – o espectador ficará sabendo apenas no terceiro episódio – está vivendo um caso de amor com Callie Dunne (o papel de Tess Frazer, na foto abaixo), a mulher mais linda que aparece na tela ao longo das 7 horas e meia de Godless – ao lado de Alice Fletcher-Michelle Dockery.
Callie Dunne havia sido puta, e ganhado bastante dinheiro na profissão. Depois mudou de vida, e, na época da ação central, era a professora das crianças de LaBelle. Era ela também que costumava ler para as amigas, as senhoras da cidade, as notícias do jornal The Daily Review, de propriedade de A.T. Grigg, único repórter e único editor do periódico editado na cidade de Taos, que, apesar de ter “daily” no título, era semanal.
A.T. Grigg e The Daily Review são importantes na trama, e são fascinantes, mas volto a Callie Dunne. Lá pelas tantas, a linda mulher recebe a visita da outra linda mulher do pedaço, Alice Fletcher, que vai pedir a ela emprestada uma cartilha, para facilitar nas aulas de alfabetização de Roy Goode. O diálogo entre as duas é maravilhoso, impressionante. Callie diz à fazendeira que, se ela quisesse, poderia ganhar muito dinheiro na profissão de puta. E mais ainda se quisesse ser a madame, a dona da casa, o que ela poderia ser, já que é uma mulher forte, firme, experiente. E aí diz uma frase fantástica: – “Sabe que há mais palavras para puta do que para médico ou advogado?”
Este texto já está bem grande, e ainda não cheguei ao arco narrativo em torno do bandidão.
Frank Griffin é uma figura um tanto paradoxal – na verdade, bastante paradoxal. Ele é O Mal Em Si, um concentrado de toda a maldade que pode haver no mundo. No entanto, gosta de falar de Deus, do Senhor, do Good Book, como em língua inglesa os cristãos se referem à Bíblia. Mais ainda: usa sempre aquele colarinho clerical – o que faz muita gente perguntar se ele é um pastor.
Tem mãos que acalmam os cavalos – é um encantador de cavalos, e havia passado esse dom para Roy Goode, que acolheu como um filho quando o garoto era um órfão sem eira nem beira.
Mas é o Mal em Si. Perto dele, até mesmo outro Frank, o bandido interpretado por Henry Fonda em Era Uma Vez no Oeste (1968), de Sergio Leone, parece um pouco menos pavoroso.
O momento em que Frank Griffin-Jeff Daniels diz que aquele lugar ali é uma terra sem Deus é de dar um frio na espinha da gente.
Acontece no segundo episódio. Enquanto procuram por Roy Goode, Frank e seu bando encontram uma grande família de imigrantes noruegueses que, como tantos e tantos imigrantes, rumaram para o Oeste dos Estados Unidos à procura de uma vida melhor do que a que tinham antes. Primeiro Frank conversa com eles com um tom doce, suave – e relata, para eles e para o espectador, como sua família foi massacrada quando viajou para o Oeste e ele ainda era uma criança pequena. Os assassinos – relata ele – eram homens que se diziam religiosos, de Salt Lake City. O líder do grupo falava que o sangue dos ateus purificava os homens de bem – e foi esse sujeito, o assassino de seus pais, que o tomou como a um filho. Depois de um longo monólogo, Frank diz que os dois noruegueses devem escolher qual de suas belas esposas dormirá com ele naquela noite.
Na manhã seguinte, um dos pobres irmãos noruegueses diz para Frank: – “Você não é um homem de Deus!”
Jeff Daniels dá um show de interpretação quando responde:
– “Deus? Que Deus? Você não sabe onde está. Olhe em volta. Não tem ninguém lá em cima para cuidar de você e de seus filhos. Aqui é o paraíso do gafanhoto, do lagarto, da cobra. É a terra das lâminas e do rifle. É uma terra sem Deus. E quanto antes você aceitar essa verdade inevitável, mais tempo você viverá. Se você pensar bem, o mesmo Deus que criou a você e a mim também criou a cascavel. Isso não faz sentido. O homem só pode contar consigo mesmo. Essa é a verdade.”
O autor e diretor Scott Frank, 57 anos de idade em 2017, o ano em que lançou Godless, é um sujeito eclético – e com uma filmografia respeitabilíssima, riquíssima. Confesso, e sem embaraço, que eu não tinha idéia de que o sujeito fosse autor de tanta coisa boa. Ainda em 1991, portanto com apenas 31 anos, ele assinou a história original e o roteiro de Voltar a Morrer/Dead Again, aquele filmaço de e com Kenneth Branagh, e também de Mentes Que Brilham/Little Man Tate, de e com outra mente que brilha, Jodie Foster. Seu nome está também nos créditos dos roteiros de O Nome do Jogo/Get Shorty (1995), Minority Report (2002), A Intérprete (2005)…
São 24 títulos no total. Meu, é muito filme bom que o cara escreveu!
Como diretor, foram até agora apenas sete títulos. Godless foi o quinto deles – e depois, em 2020, veio aquela ótima série O Gambito da Rainha; ele dirigiu os sete episódios e escreveu o roteiro ao lado de Allan Scott, com base no romance de Walter Tevis.
Série de western, série dramática sobre o mundo do xadrez internacional, comédia romântica, drama policial, ficção científica… O cara faz de tudo – e muito bem!
É bom registrar que em Godless Scott Frank usou alguns nomes reais. Existiu de fato uma pequena cidade chamada LaBelle (às vezes grafada como La Belle) no Condado de Taos, no Novo México.
Na cidade fictícia de Blackdom, há um veterano da Guerra da Secessão chamado John Randall. Existiu, sim, um John Randall, que serviu na 10ª da Cavalaria durante a guerra. Tudo o que os personagens falam sobre os Buffalo Soldiers como John Randall é real.
E existiu na vida real uma Alice Cunningham Fletcher. Scott Frank tomou emprestado, para dar à heroína da sua história, o nome de uma etnologista, antropóloga e cientista social norte-americana, nascida em 1838 e morta em 1923, que estudou a cultura dos índios dos Estados Unidos e deixou uma vasta obra. Foi presidente da Sociedade Antropológica de Washington a partir de 1903 e tornou-se a primeira mulher a presidir a Sociedade Americana de Folclore em 1905. Suas cinzas foram enterradas em um muro do Museu de Arte do Novo México.
Godless ganhou oito prémios e teve 27 indicações. Só ao Primetime Emmy, o prêmio mais importante da televisão americana, foram 12 indicações entre as minisséries ou filmes, inclusive melhor minissérie, direção para Scott Frank, atriz para Michelle Dockery, atriz coadjuvante para Merritt Wever, roteiro para Scott Frank, fotografia e música. Venceu os Emmys de melhor ator coadjuvante para Jeff Daniels e melhor tema musical.
O Washington Post e a Vanity Fair incluíram a série entre as 10 melhores do ano.
Godless é uma belíssima série. Agora, vem cá: por que não chamá-la, aqui neste Brasilzão, de Sem Deus?
Anotação em março de 2024
Godless
De Scott Frank, criador, diretor, EUA, 2017
Com Jack O’Connell (Roy Goode),
Michelle Dockery (Alice Fletcher),
Jeff Daniels (Frank Griffin),
Scoot McNairy (Bill McNue, o xerife de La Belle), Merritt Wever (Mary Agnes McNue, a irmã de Bill), Thomas Brodie-Sangster (Whitey Winn, o auxiliar de Bill), Tantoo Cardinal (Iyovi, a índia sogra de Alice), Samuel Marty (Truckee, o filho de Alice), Tess Frazer (Callie Dunne, a professora, ex-puta), Jeremy Bobb (A.T. Grigg, o jornalista), Christiane Seidel (Martha, a alemã pintora), Jessica Sula (Louise Hobbs, a garota que Whitney paquera), Duane Howard (o índio shoshone), Matthew Menalo (o garoto do jornal Daily Review), Elisa Perry (June Hobbs, a mãe de Louise), Marceline Hugot (Lucy Cole, a senhora que criou Roy), Sam Waterston (delegado John Cook), Rob Morgan (John Randall, Buffalo Soldier), Julian Grey (William McNue, o filhinho de Bill), Marie Wagenman (Trudy McNue, a filhinha de Bill), Whitney Able (Anna, a mulher de Bill), Russell Dennis Lewis (Daryl Devlin), Matthew Dennis Lewis (Donnie Devlin), Adam David Thompson (Gatz Brown), Samantha Soule (Charlotte Temple), Kayli Carter (Sadie Rose), Audrey Moore (Sarah Doyle), Keith Jardine (Dyer Howe), Rio Alexander (Bud Ledbetter), Justin Welborn (Floyd Wilson), Luke Robertson (Bill Chick), Joe Pingue (Alonzo Bunker), Travis Hammer (John Doe), Brian Lee Franklin (Amos Green), Randy Oglesby(Asa Leopold), Sophia Silver (Sophia do Saloon), Kim Coates (Ed Logan)
Argumento e roteiro Scott Frank
Fotografia Steven Meizler
Música Carlos Rafael Rivera
Montagem Michelle Tesoro
Casting Ellen Lewis
Desenho de produção Carlos Barbosa, David J. Bomba
Figurinos Betsy Heimann
Produtores executivos Scott Frank, Casey Silver, Steven Soderbergh. Produção Jessica Levin, Michael J. Malone, Netflix.
Cor, 452 min (7h32)
Fonte: 50 anos de filmes
Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.