30 de outubro de 2024
Cinema

Mixed by Erry

De: Sydney Sibilia, Itália, 2023

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 7/2023.)

Gostoso, divertido e muito bem realizado, Mixed by Erry, produção italiana de 2023 com a grife Rai Cinema, conta uma daquelas histórias incríveis, fantásticas, inacreditáveis, que – a gente fica imaginando – só poderiam sair da cabeça de um escritor de imaginação insana, maluca, talvez até com a ajuda de um poderoso coquetel de alucinógenos…

… e que, no entanto, se baseia em fatos reais!

Sim, Enrico Frattasio – Erry para seus fãs, centenas de milhares de fãs – existiu mesmo. Quer dizer, existe, está vivo, assim como seus irmãos Peppe e Angelo. (Enrico está na foto abaixo.)

A gente costuma dizer frases como “só mesmo no Brasil poderia acontecer uma coisa destas”. Não sei se os italianos têm essa mesma mania, mas, se não têm, deveriam ter. Há coisas que só acontecem mesmo na Itália, como por exemplo a história do engenheiro Elio Germano, que construiu uma ilha – ao largo do litoral do Adriático, na região de Rimini, a terra de Federico Fellini –, declarou-a uma nação independente e provocou um gigantesco fuzuê na diplomacia internacional.

Se Elio Germano criou um país, Enrico, Peppe e Angelo Frattasio criaram algo que na prática era uma gravadora pirata, que chegou, nos anos 1980, a vender mais discos que qualquer outra empresa na Itália.

Sim, isso mesmo: três jovens napolitanos, criados em Forcella, famoso bairro pobre da cidade do Sul da Itália que parece a própria Miséria Festiva, botaram no chinelo multinacionais como a Philips, a RCA, a Warner, a Columbia-CBS.

Lembrar o engenheiro Elio Germano não é à toa. A incrível, fantástica, inacreditável história dele foi contada em um filme gostoso e divertido como este aqui – e A Incrível História da Ilha das Rosas, de 2020, foi realizada pelo mesmo Sydney Sibilia deste Mixed by Erry.

Sydney Sibilia, garotão nascido em 1981 (quando minha filha, aos seis anos, já via filmes comigo e com a Inês no nosso moderno videocassete player comprado no contrabando), em Salerno, na mesma região de Campania em que está a Nápoles de seu filme, é também o autor do soggeto – o argumento, a história, a trama – e do sceneggiatura – o roteiro deste Mixed by Erry. O soggeto ele assina com Simona Frasca & Armando Festa; o sceneggiatura, apenas com Armando Festa.

O ator que faz o protagonista está excelente

Sibilia e Festa resolveram usar o que chamo de narrativa-laço, e o pessoal elegante de in media res, o latinório para “no meio das coisas” – aquele recurso de começar mostrando um evento de grande impacto para só então voltar atrás no tempo e contar como a história começou.

Há o aviso – “Baseado em uma história real” – e, na primeira sequência, o número 1991 aparece em um corpo descomunal, ocupando toda a tela. Três rapazes estão entrando no que parece ser o hall central de um presídio, e os presos os recebem com aplausos, tiras de papel – como se fossem heróis.

Quando um deles entra no que deverá ser sua cela, uma grande cela coletiva, é recebido com festa por um dos presos:

– “Mestre, que honra! Menino, faz um café pro Mestre.”

Os outros presos se aproximam dele, o cercam. Um pergunta se ele quer jogar cartas, Um outro diz: – “Meu sobrinho é incrível, um gênio. Talvez você pudesse ouvi-lo…”

Close-up do rapaz, e ele se mostra espantado com aquela recepção.

É Enrico Frattasio, e, embora ele não soubesse, é um homem famoso entre os presidiários – e a expressão no rosto do ator Luigi D’Oriano é impressionante. Demonstra surpresa, sim, claro, e também incredulidade, dúvida, espanto – e inocência, candura, bondade.

Mixed by Erry tem muitas qualidades, mas eu diria que a escolha de Luigi D’Oriano para o papel do protagonista da história e a fantástica interpretação dele são muito certamente as melhores. O ator tem o tal do physique du rôle absolutamente perfeito para interpretar o rapaz pobre de Nápoles que, por ter sensibilidade e paixão pela música, começou a gravar fitas cassete para vender no bairro – e, com a ajuda dos dois irmãos, rapidamente criou um gigantesco império de pirataria fonográfica.

Um filme gostoso que a gente vê com um permanente sorriso

Rapidamente é pouco. A transformação do negocinho inicial de gravar fitas – canções pop “mixed by Erry”, como ele escrevia nos cassetes – em um império aconteceu em um brevíssimo espaço de tempo, de uma forma estonteante, fulgurante, fulminante.

O Enrico Frattasio que o diretor e co-roteirista Sydney Sibilia e o ator Luigi D’Oriano criaram está tão longe do crime quanto o Oiapoque do Chuí, a Terra de Andrômeda, Al Capone da honestidade, Pelé da incompetência.

Enrico era… Diabo, não dá para evitar a citação da canção de Gianni Morandi. Era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones. Bem, não sei se especificamente os Beatles e os Stones, mas amava a música pop, e, exatamente como eu, gostava de fazer fitas cassete, e dar de presente para os amigos.

Sonhava em trabalhar como DJ. E simplesmente não pensava que estava prejudicando alguém, ao gravar suas fitinhas cassete, ao misturar canções das bandas e dos cantores do momento. Não passava pela sua cabeça que aquilo era pirataria – simples assim. Para ele, o que importava era satisfazer a pessoa que, no início, ganharia de presente a fita que ele gravava; ele percebia o gosto da pessoa, e misturava as canções de acordo com aquele gosto. A expressão não era usada em 1985, mas o que Enrico fazia era customizar as fitas. Mixed by Erry segundo o gosto do freguês – seleção musical customizada.

Só que deu certo – e aí entraram a esperteza, a engenhosidade e a audácia dos seus dois irmãos, Peppe e Angelo (interpretados respectivamente por Giuseppe Arena e Emanuele Palumbo). E o negócio foi crescendo, crescendo, crescendo…

O Enrico Frattasio que o diretor Sidney Sibilia e o ator Luigi D’Oriano criaram é o pirata mais inocente, mais puro, mais sem maldade na alma que já passou por uma tela de cinema.

Como já havia feito em seu L’incredibile Storia dell’Isola delle Rose, o jovem Sibilia deu ao seu novo filme sobre história fantástica um ritmo rápido, ágil, e um humor delicioso, curtido, bem sacado. Mixed by Erry é daqueles filmes gostosos que não são feitos para provocar grandes gargalhadas – mas para deixar o espectador com um quase permanente sorriso, só interrompido aqui e ali por uma exclamação tipo “ah, mas não é possível”.

Os irmãos venderam 180 milhões de fitas cassete!

Não é possível mesmo – mas aconteceu! Os irmãos Frattasio venderam 180 milhões de fitas cassete na Itália, nos anos 1980.

Na época do lançamento do filme – março de 2023 na Itália, maio mundo afora –, Enrico Frattasio foi entrevistado pelo jornal inglês The Guardian. “Tinha apenas 12 anos quando o meu pai me mandou para um estúdio de gravação como aprendiz. Queria que eu me afastasse das más companhias”, contou.

Más companhias eram o que não faltava no bairro de Forcella, na terra da Camorra.

“A passagem pelo estúdio fê-lo apaixonar-se pela música”, relata texto do site português NiT. “Arranjou algum material rudimentar e começou a fazer compilações piratas a pedido dos amigos. O conhecimento musical foi-se aperfeiçoando, a técnica também e a palavra espalhou-se pelo bairro.

“Aos poucos, foi-se aventurando a criar remisturas de temas estrangeiros com temas italianos. Criava cassetes para todas as ocasiões: festas noturnas, viagens pela autoestrada. E, inevitavelmente, a gravação de discos piratas de artistas famosos. Cada uma dessas cassetes trazia uma marca inconfundível: ‘Mixed by Erry’, ‘Remisturado por Erry’.”

(Os portugueses usam “mistura” para o que aqui chamamos de mixagem.)

“Eu era o YouTube ou o Spotify dos anos 80”, declarou Enrico ao Guardian. “O dinheiro não era o mais importante. Eu estava criando compilações. Cada uma demorava vários dias a fazer. Fazia um trabalho muito sério.”

Ah, mas isso não é possível! Só que aconteceu: cerca de 180 milhões de fitas cassete vendidas.

E, pelo que o filme mostra, os irmãos Frattasio teriam feito a transição para a época do CD, na boa, na maior – se não fosse a Dona Justa, essa chata.

Revela-se um segredo depois dos créditos finais

Mixed by Erry é o quinto longa-metragem do jovem diretor Sydney Sibilia. Os três primeiros – muito interessante, isso! – são três tomos de uma mesma história, uma saga, tipo De Volta para o Futuro. Smetto Quando Voglio, de 2014, foi seguido por Smetto Quando Voglio: Masterclass, e Smetto Quando Voglio: Ad Honorem, ambos de 2017. O protagonista da história é um pesquisador universitário da área de química que, demitido por causa de cortes de custo, resolve se dedicar à produção de drogas. Aparentemente, o primeiro filme chegou a ser lançado no Brasil, com o título de Paro Quando Quero, tradução literal do original. Os dois seguintes, no entanto, não tiveram lançamento aqui.

O quarto filme do autor foi A Incrível História da Ilha das Rosas (2020); nem me lembro por que motivo, não escrevi sobre ele quando vi; preciso rever para comentar sobre ele aqui no + de 50 Anos de Filmes.

Na carreira de Luigi D’Oriano, este Mixed by Erry foi apenas o terceiro filme. E isso é incrível, porque o rapaz parece um ator experiente, apesar da pouca idade. Ele é de junho de 2001, e estava portanto com apenas 21 anos quando Mixed by Erry foi lançado.

O filme tem agradado bastante ao público – pelo menos é o que indica o IMDb. No grande site, ele está com a nota 7,1, média da avaliação de 3,3 mil leitores.

Para encerrar, um aviso importante: não se pode parar de ver o filme durante os créditos finais, que é o que muita gente faz. É só no finalzinho, depois dos créditos, que surge uma rápida sequência, revelando um grande segredo a respeito de como os irmãos Frattasio obtinham em absoluta primeira mão as canções apresentadas no Festival de San Remo antes mesmo do encerramento de cada uma de suas edições!

Anotação em agosto de 2023

Mixed by Erry

De Sydney Sibilia, Itália, 2023

Com Luigi D’Oriano (Enrico Frattasio, o Erry),

Giuseppe Arena (Peppe Frattasio), Emanuele Palumbo (Angelo Frattasio), Francesco Di Leva    (Fortunato Ricciardi, o capitão da polícia), Cristiana Dell’Anna (Marisa Frattasio, a mãe), Adriano Pantaleo (Pasquale Frattasio, o pai), Chiara Celotto (Francesca, a namoradas de Peppe), Greta Esposito (Teresa, a namorada de Enrico), Fabrizio Gifuni (Arturo Maria Barambani, o executivo da grande empresa)

Roteiro Sydney Sibilia & Armando Festa

História Sydney Sibilia & Simona Frasca & Armando Festa

Fotografia Valerio Azzali

Música Michele Braga

Montagem Gianni Vezzosi

Desenho de produção Tonino Zera

Produção Matteo Rovere, Groenlandia, Rai Cinema, Netflix.

Cor, 110 miin (1h50)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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