16 de setembro de 2024
Cinema

Corpo em Chamas / El Cuerpo en Llamas

De: Laura Sarmiento Pallarés, criadora, Espanha, 2023

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 02/2024)

A primeira sequência da série espanhola Corpo em Chamas, de 2023, mostra o fogo sendo ateado no carro em que está o corpo do homem assassinado. A identidade de quem matou é revelada ao final do primeiro episódio. O espectador verá os demais sete episódios – cada um de cerca de uma hora – já sabendo quem matou.

Não é, portanto, um whodunit, um “quem matou”, aquele tipo de história policial ou de mistério que é a marca registrada de Agatha Christie e tantos outros autores. Não é uma série baseada em um dos muitos livros de Harlan Coben, que têm um monte de reviravoltas, mas no fundo é isso mesmo, whodunit – uma história que guarda para o finalzinho a revelação de quem matou.

Confesso que levei um susto quando terminou o primeiro episódio. Cacete: e o que vão ficar fazendo nos próximos sete episódios?, falei com Mary.

A princípio, fiquei pensando que era uma opção estilística da criadora, Laura Sarmiento Pallarés: construir uma história policial, de mistério, não ao estilo Agatha Christie, mas ao estilo Alfred Hitchcock. O mestre muitas vezes fazia isso – fornecia várias informações para o espectador, em vez de guardar todos os segredos para o fim. Dizia que assim o suspense ficava maior.

Na verdade, mais que fazer uma opção de estilo de narrativa, os realizadores deste El Cuerpo en Llamas foram forçados a construir a série desta forma – porque a história que contam é real, e recente, e foi faladíssima na imprensa espanhola. Dificilmente haveria um espectador no país produtor da série que não soubesse quem assassinou o policial Pedro Rodríguez, colocou o corpo no porta-malas de seu carro, levou-o até um lugar ermo e botou fogo.

O crime aconteceu no dia 1º maio de 2017, e foi notícia ao longo de meses, durante as investigações. O julgamento começou em fevereiro de 2020. O caso foi tão marcante, tão noticiado, tão falado, que deu origem a um documentário e a esta minissérie – os dois lançados simultaneamente pela Netflix em 8 de setembro de 2023.

Estranhíssima, ousadíssima estratégia de marketing, para dizer o mínimo. Eu jamais tinha ouvido falar em um lançamento simultâneo de um documentário e uma série com a dramatização do mesmo caso.

A história é real, recente, e foi faladíssima na Espanha

Ando cada vez mais preocupado e atento com a coisa do spoiler. Acho que as pessoas devem ser preservadas ao máximo de ficar sabendo o que acontece nas histórias que vão ver nos filmes e/ou séries. Aqui, especificamente, não tem sentido adiantar informações para o eventual leitor que não leu ou ouviu falar sobre o que ficou conhecido como o “Crimen de la Guardia Urbana”.

O certo, o bom é ver a série sem saber da história, e ir sendo surpreendido com as informações, os fatos – como Mary e eu fomos surpreendidos ao final do primeiro dos oito episódios quando ela nos informa quem matou Pedro Rodríguez.

OK, há quem goste de saber muito da história antes de ver o filme e/ou a série e/ou o livro. Tem gosto pra tudo. Aqui, neste site, no entanto, eu tomo muito cuidado. Aviso quando tem spoiler. E então é assim: se o eventual leitor acabou caindo aqui para ler informações sobre Corpo em Chamas antes de ver a série, aqui vai o alerta: o que vem a seguir é spoiler. Estraga o prazer de ver a série.

A série é boa. Muitíssimo bem realizada. A história real que ela conta é envolvente, interessante – embora também triste, tristíssima. Vale a pena ver – mas, se o eventual leitor não conhece o caso do “Crime da Polícia Civil”, melhor seria parar por aqui.

Insisto: quem não conhece a história deveria parar de ler

Bem, é necessário haver uma sinopse, um resumo.

A Polícia da Catalunha é avisada de que há um carro incendiado numa área remota junto de um pântano e um reservatório de água. Casos de carro incendiado, com um corpo dentro, para dificultar a identificação, não eram muito raros – e em geral eram crimes ligados a quadrilhas de traficantes. A inspetora enviada para chefiar as investigações, Ester Varona (Eva Llorach) não demora a identificar, dentro das cinzas do corpo calcinado, um pino de metal, normalmente usada em operações na coluna vertebral. Através desse objeto e dos dados do carro, chega à identidade da vítima: Pedro Rodríguez, da Guardia Urbana de Barcelona – o equivalente ao que aqui é a Polícia Civil. Pedro atuava no trânsito, e estivera suspenso do serviço depois que agredira um motoqueiro que se recusara a obedecer à ordem de parar para mostrar seus papéis.

Pedro (José Manuel Poga) havia sido casado com Silvia (Aina Clotet), com quem tinha um filho pequeno. Nos cerca de seis meses antes de ser morto, vivia com Rosa Peral (Úrsula Corberó, nas fotos acima e abaixo) – ela também policial da Guardia Urbana, que, quando Pedro é assassinado, estava de licença médica, com diagnóstico de depressão.

A inspetora Ester vai à casa de Rosa e diz que está procurando por Pedro. Rosa diz que não sabe onde ele está nem onde esteve nos dias anteriores: – “Estou tendo muitos problemas com meu ex-marido pela guarda da minha filha, e andamos brigando muito. Aí ele sai de casa… reflete, e depois volta.”

A inspetora então conta para Rosa que o carro de Pedro havia sido encontrado perto do Reservatório de Foix, queimado, com restos de um corpo que ainda não fora identificado. E pergunta a ela se Pedro havia sido operado da coluna. Rosa demonstra profunda tristeza.

Em uma das conversas posteriores com a inspetora Ester, Rosa levanta suspeita sobre seu ex-marido, o pai da sua filha Sofia (Guiomar Caiado), garotinha aí de uns seis, sete anos. O ex-marido, Javi (Isak Férriz), também é policial.

Um dia antes de receber a primeira visita da inspetora Ester, com Pedro fora de casa, Rosa havia sido aconselhada pelo pai, Juan (Pep Tosar), a não se deixar abater, e não deixar de ir à festa de um colega. Rosa segue o conselho do pai, e vai à festa, usando um minivestido absolutamente mini, acompanhada de um velho amigo e parceiro de rondas policiais, Albert López (Quim Gutiérrez).

A série vai e volta no tempo. E é cheia de coisas estilosas

Como tem sido cada vez mais comum nos filmes e séries, Corpo em Chamas não narra os fatos em ordem cronológica. Bem ao contrário, o roteiro vai e vem no tempo, vai e vai, vai e vem, feito bola de pingue-pongue.

Vem e vai bem lá longe, até o tempo em que Rosa ainda sequer tinha conhecido Javi nem entrado para a polícia – quando bem mais jovem, ela foi dançarina e stripper num nightclub daqueles bem barra pesada.

Além dessa característica de ir e vir no tempo o tempo todo, a série tem coisas estilosas.

A primeira sequência – a do carro sendo encharcado de gasolina e depois incendiado – foi filmada como se fosse uma peça publicitária. As imagens são feitas com o maior capricho, com um cuidado esmeradíssimo, como se fosse um anúncio feito para participar dos concursos mais exigentes, para ganhar medalha no festival do filme publicitário de Cannes.

Muitas das belíssimas tomadas do combustível sendo lançado sobre o carro são em close-up – e nós vemos tudo ao som da voz aveludada de Elvis Presley cantando “Love me Tender”.

Um ato criminoso apavorante mostrado como se fosse um anúncio de perfume.

Euzinho aqui não gosto desse tipo de coisa – o edulcoramento de um ato de violência, um crime, um assassinato. Reconheci que a coisa era feita com imenso talento, mas botei um pezinho para trás.

Outro exemplo de como os realizadores criaram coisas estilosas. Em diversos momentos, quando um personagem envia mensagem de texto pelo celular, o ator que o representa é mostrado de frente, olhando para a câmara, ou seja, para o espectador, dizendo o que está no visor do celular.

Logo após aquela sequência inicial do carro sendo queimado, vemos em close-up o rosto bonito dessa moça Úrsula Corberó, que faz Rosa, dizendo: – “Pedro, meu amor, cadê você? Sei o que a gente disse… E tudo é mais difícil do que parecia antes. Mas quando você vai voltar? Sinto sua falta.”

A série avisa que não é a reconstituição exata dos fatos

Os realizadores avisam no início de cada um dos episódios: a série não pretende ser a reconstituição exata dos fatos reais. “Está série” – diz um letreiro – “se baseia em fatos reais. Alguns eventos, personagens circunstâncias foram mudadas com fins dramáticos”.

Uma reportagem no site AH – Aventuras na História, no UOL, publicada em novembro de 2023, apresenta as seis maiores diferenças entre a série e a história real. A primeira delas é que, na série, Rosa tem uma filha, Sofia. Na vida real, foram duas. Acho corretíssima a decisão dos realizadores. Não muda a essência da história – e, em termos de narrativa, de dramaticidade, fica mais fácil concentrar o foco em uma única criança.

Os nomes da maioria das pessoas envolvidas no caso foram mantidos na série. É o caso de Pedro, Rosa e Albert. A exceção é o nome do homem que foi o marido de Rosa durante vários anos, pai das duas filhas. Ele se chama Ruben Carbó, mas, na série, aparece como Javi, de Javier. Provavelmente os realizadores quiseram evitar que Ruben Carbó entrasse com algum processo na Justiça. Isso é apenas um pequeno detalhe, não faz a mínima diferença.

Há um detalhe que me incomodou bastante. Todos os principais personagens da história são policiais que não ocupam postos elevados – Pedro, Rosa, Albert, Javi, a ex-mulher de Pedro, Silvia. E, no entanto, a série mostra que todos eles moram bem – alguns muito bem. É algo obviamente falso. (Na foto abaixo, a Rosa da vida real e a atriz que a interpreta).

A roteirista e o principal diretor voltam a demonstrar talento

Úrsula Corberó. Não conhecia a moça – apesar de gostar muito, demais, do cinema espanhol, que considero ser há anos um dos melhores do mundo, juntamente com o feito nas Ilhas Britânicas.

Nasceu em Barcelona, em 1989, o ano em Pedro Almodóvar lançou Ata-me! e Carlos Saura A Noite Escura. Estava, portanto, com 34 quando foi lançada a série Corpo em Chamas, praticamente a mesma idade de sua personagem – Rosa Peral tinha 36 em 2017, o ano em que Pedro Rodríguez foi assassinado. Começou a carreira de atriz bem cedo, aos 13 anos de idade, em uma série de TV, Mirall Trencat. No início de 2024, sua filmografia tinha 39 títulos, o mais famoso dos quais, creio, é La Casa de Papel, a série de extraordinário sucesso internacional. Ela está presente em todos os 41 episódios da série, no papel de Tokio.

Úrsula Corberó é uma mulher bonita, vistosa, atraente, de corpo escultural – e os realizadores da série souberam explorar a beleza e a sensualidade dela. Não me pareceu ser uma grande atriz – e a verdade é que sua personagem é complexa demais. Seria dificílimo para qualquer atriz, mesmo as grandes, interpretar uma mulher tão multifacetada quanto essa Rosa Peral.

A criadora e principal roteirista da série, Laura Sarmiento Pallarés, e Jorge Torregrossa, que dirigiu cinco dos oito episódios, já haviam trabalhado juntos em uma série excelente, brilhante, Intimidade (2022). Laura foi uma das criadoras, ao lado de Verónica Fernández, e Jorge Torregrossa foi um dos diretores.

Sobre essa série, escrevi: “Intimidad é uma declaração de princípios, um discurso, um panfleto. Conta as histórias paralelas de duas mulheres – que não se conhecem, mas são da mesma cidade, Bilbao, a metrópole do País Basco –, cada uma delas filmada fazendo sexo. E que têm as imagens de sua intimidade divulgadas. Intimidad defende – com garra, vigor, paixão – que as mulheres que têm suas imagens mais íntimas divulgadas não devem sentir vergonha. Que as mulheres fazerem o que bem entenderem, em sua intimidade, é um direito absoluto – e divulgar imagens daquela intimidade é violação, e é crime.”

Neste Corpo em Chamas, roteirista e diretor demonstram mais uma vez que têm muito talento. Há grandes sacadas na narrativa, como, só para dar um exemplo, colocar simultaneamente, paralelamente, tomadas de Pedro na sala de cirurgia, para implantação do pino na coluna vertebral, e de Rosa e Albert trepando. São tomadas curtas, em montagem acelerada, que têm um fortíssimo apelo dramático. Me fizeram lembrar do momento em que, na trilogia The Godfather, Francis Ford Coppola mostra, simultaneamente, tomadas de seguidos assassinatos cometidos pela família Corleone com tomadas em que alguns deles estão reunidos em uma cerimônia religiosa em uma igreja.

Há outro momento absolutamente memorável, durante o julgamento – nos dois últimos episódios, o sétimo e o oitavo, Corpo em Chamas vira um uma série de tribunal. Quando promotor diz que há uma pessoa que pode reconstituir o que de fato aconteceu, como Pedro Rodriguez foi assassinado… Pedro Rodriguez surge na porta do tribunal e caminha no corredor central entre os espectadores do julgamento, em direção à cadeira das testemunhas.

Um brilho.

Anotação em fevereiro de 2024

Corpo em Chamas/El Cuerpo en Llamas

De Laura Sarmiento Pallarés, criadora, Espanha, 2023

Direção Jorge Torregrossa (5 episódios), Laura Mañá (3 episódios)

Com Úrsula Corberó (Rosa Peral)

e Quim Gutiérrez (Albert López, o amante de Rosa), José Manuel Poga (Pedro Rodríguez, o segundo marido de Rosa), Isak Férriz (Javi, o primeiro marido de Rosa), Eva Llorach (Ester Varona, a inspetora), Pep Tosar (Juan, o pai de Rosa), Mamen Duch (Rosamaria, a mãe de Rosa), Guiomar Caiado (Sofia, a filha de Rosa e Javi), Aina Clotet (Silvia, a ex-mulher de Pedro), Júlia Truyol (Almu, amiga de Rosa), Meritxell Calvo (Carmen, a nova mulher de Javi), Iván Morales (Gerard, irmão de Albert), Anna Moliner (Montse, advogada de Rosa), David Bagés (Tomás, advogado de Albert), Bruno Sevilla (Álvaro, advogado de Rosa), Carles Cruces (advogado de ofício de Rosa), Annabel Castan (advogada de Javi), Aleida Torrent Casellas (Vane), Oscar Dorta (Alfonso), Raúl Prieto (Manu)

Roteiro Laura Sarmiento Pallarés (criadora), Eduard Sola (2 episódios), Carlos López (1 episódio), José Luis Martín (1 episódio)

Fotografia Ricardo de Gracia, Miquel Prohens      …

Música Aitor Etxebarria

Montagem Luis Calvo, Queralt González, Luis Rico

Casting Anna González

Desenho de produção Balter Gallart

Figurinos Anna Güell

Produção Ibon Cormenzana, Ángel Durández, Ignasi Estapé,

Andrea Martínez Muñoz, Sandra Tapia, Arcadia Motion Pictures.

Cor, 394 min (6h34 min)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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