30 de outubro de 2024
Colunistas Ligia Cruz

A dor do outro

Mesmo na tempestade, quando você olha no entorno sempre extrai algo bom das experiências e domina suas dores. Aprendizado que vale uma vida.

Estava eu de olhos cerrados num intervalo entre-exames no PS e eis que avisto um rapaz entrar mancando, com alguma expressão de dor sob a máscara.

Por alguma razão, resolvi ouvir minha voz interior e rompi com uma reincidente mania de observar o outro para extrair sua história e isso sempre me pegou.

Desta vez resolvi focar em mim.

De fato, eu não estava disposta a nenhuma interação com aquela ou qualquer outra criatura dali. Fiquei quieta.

Vagou um assento e ele se sentou a meu lado e começou a resmungar qualquer coisa. Respirei fundo, travei o plexo solar, o coronário, os outros todos e ainda cruzei as mãos. A crina subiu. Pensei comigo: nem vem. Eu tinha que cuidar da minha própria dor.

Por sorte, a vizinha do outro lado comprou a cena e interagiu. Com meu ouvido bom na fronteira, não tive como não escutar a história toda.

Em segundos ele resumiu sua saga de sofrimentos, como se vomitasse as próprias entranhas. “Não aguento mais. Me quebrei todo em casa”. Foi só o prólogo de algo que eu imaginava não ser nada bom.

O pobre rapaz sofreu uma queda após esvaziar uma “Velho Barreiro”, quebrou o nariz, borrifou a casa toda de magenta, tomou pontos na cabeça e nem se lembrava do que tinha acontecido. Pensei: mais um porre de garoto. Só que não parou aí.

A trama ganhava contornos a cada frase, cada vez mais carregada de lamúrias.

Tudo tem acontecido com o rapaz depois que começou a se drogar e ele nem se lembra desde quando. A vizinha surpreendeu-se, pelo seu tom de voz. “Você tem que sair disso!”.

Eu diria algo semelhante ou talvez um pouco pior. E ela emendou dizendo que também entrou nessa furada quando jovem. Me pergunto se a idade mental das pessoas determina isso. Mas sem julgamentos. O fato é que cada um passa o seu.

Em quinze minutos eu ouvi a biografia de mazelas do rapaz. Por conta das drogas, segundo seu relato, já perdeu a vesícula, comprometeu o pâncreas e os rins não estão dando bons sinais. Ao revelar os fatos ele nem respirava e elevava o tom de voz. Todo mundo ali — e era muita gente — parou.

Mas e a perna? Pergunta número um que eu teria feito de cara. Ele a quebrou em quatro partes, pôs pinos no joelho e quase ficou paraplégico porque fraturou três vértebras.

Ou seja, já era veterano no convênio. Descreveu os quartos dos hospitais em que esteve, se vangloriou de sua popularidade com os médicos e muito mais. Tudo por causa da maldita manguaça, as drogas e a mistura delas. Nisso, não há um único fiapo de humor negro de minha parte.

Entendi que o principal fato escapou do enredo infeliz e que a vizinha ao lado não pescou: a dor da alma do garoto. Sinceramente, me esqueci do porquê eu estava ali e dos meus próprios infortúnios.

Logo, chegou a vez da vizinha e ele ficou só, resmungando do meu lado. Eu, na defensiva, continuei de olhos fechados. Não queria estabelecer contato porque sei o que acontece depois.

O rapaz se levantou abruptamente e foi mancando para a parede oposta a cerca de um metro e meio de mim. Intimamente, talvez ele buscasse um contato visual com alguém que ouviu tudo aquilo e não se apiedou.

Abri meio olho para conferir minha vez no painel e, por segundos, escaneei as tatuagens dos braços e pernas, o gestual e todas as tentativas de chamar a atenção das pessoas.

Fotografou-se, baixou a máscara, mostrou a fratura do nariz, tirou o boné para apalpar as cicatrizes da cabeça e mais uns minutos teria sugado minha energia toda ali naquela encenação copiosa. Uma voz me salvou.

Ouvi meu nome no corredor. Reuni as forças que tinha e saí dali numa velocidade impressionante.

Que teste foi esse? Consegui pensar só em mim, como em poucas vezes, e escapar de todas as ciladas de me envolver com aquilo tudo. Eu estava ficando boa em escapar dos engodos, mas ainda longe da perfeição.

Ainda não atingi nem de longe a máxima de que “cada um que cuide de si”. Lá estava eu, em outro andar, refletindo sobre aquilo tudo. Até um idoso reclamar: está frio aqui!

Pulei da cadeira, no automático, acionei minha terceira perna e levantei as aletas do ar-condicionado. Ele sorriu. É a maldita voz de comando do inconsciente.

Quando saí do meu atendimento fiquei sabendo que ele foi internado. Juntei meus cacos, cumprimentei a esposa e saí dali o mais rápido possível.

Estava chovendo lá fora, mas fiquei feliz com a água lavando o meu rosto.

Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *