29 de março de 2024
Colunistas Lucia Sweet

Para distrair um pouco

Salvador Dali nasceu no dia 11 de maio de 1904. Nos anos 70 fotografei o Salvador Dali para O Globo em Paris, no quarto dele do Hotel Meurice, na Rue de Rivoli, quando ele resolveu fazer uma performance em homenagem póstuma a Picasso, gravada pela televisão francesa.

A energia de Dali era tão grande que me fazia trepidar. Ou seja, eu não conseguia parar de tremer na presença dele. Foi a pessoa mais carismática que conheci. Dali posou para mim e eu fiz as fotos antes da performance começar.

Depois, ele sentou-se numa mesa para assinar uma pilha de serigrafias e me chamou para ficar a seu lado. Em vez de conversar, Salvador Dali “monologou” comigo cerca de 40 minutos. Foi fascinante.

Vestido com uma diáfana túnica de renda branca por cima de suas roupas, ele declarou que o mundo era kitsch, e me contou coisas inacreditáveis. Morro de rir até hoje quando me lembro. Ele falava um francês impecável.

No meio do quarto, perfumado com tuberoses (angélicas) e lírios brancos em profusão, havia um deslumbrante biombo Coromandel, cercado de cobras de pano feitas pela Mijanou Bardot, irmã da Brigitte, designer de móveis e objetos de decoração.
Ela, o marido e Salvador Dali fizeram juntos uma coleção de almofadas gigantes de pano, em formato de animais. No centro do biombo tinha uma maca prateada e em cima da maca um boneco , de madeira clara, sem feições, representava o Picasso.

Mijanou, que estreou no cinema na comédia Club de Femmes, com Jean-Louis Tritingnant, depois foi morar em Los Angeles com o marido, o ator belga Patrick Bauchau. Patrick Nicolas Jean Sixte Ghislain Bauchau, era filho de Henry Bauchau, (autor, psicanalista e filósofo). Sua mãe era editora.

Baucheau estudou em Oxford onde se graduou em Modern Languages. Fala fluentemente seis idiomas. Também trabalhou em muitos filmes, entre eles “A View to a Kill” (James Bond). Seus filmes “Entre Nous” e “The Music Teacher” foram nomeados para o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Mijanou, née Marie-Jeanne, assim como a irmã, sempre cuidou de gatos e cachorros. E tinha gente que a achava mais bonita do que a Brigitte.

Voltando a Dali, notei um homem de sua entourage que estava usando o terno cinza mais bem cortado que já vi. O caimento era perfeito, bespoken (sob medida). Só que aquele homem elegantérrimo estava com o rosto coberto de ataduras (gazes bem claras) , com uma mancha vermelha como sangue numa das faces.

Antes de ir embora não resisti e fui cumprimentá-lo. Disse-lhe que aquela caracterização de terno com ataduras no rosto simulando uma mancha de sangue estava perfeita e que foi a coisa mais surrealista que já tinha visto. Ele só faltou morrer de rir, reclamando que não podia rir, e apresentou-se: era o psicanalista do Salvador Dali e havia sofrido um acidente. Segurou a minha mão e afirmou que surrealista era eu, e que tinha de ser meu amigo. Imediatamente me deu seu cartão e pediu que eu não deixasse de ligar no dia seguinte, pois precisava me conhecer melhor. Eu fiquei passada, completamente sem graça, coloquei o cartão na bolsa, agradeci à equipe de televisão que me fez a gentileza de iluminar Dali para as minhas fotos com um equipamento dos sonhos de qualquer fotógrafo. E nunca liguei para o psiquiatra, é claro.

Agora eu preciso contar como fui contratada para fazer essa fotografia. A correspondente em Paris do Globo nessa época era a Nina Chavs, que eu não conhecia. Consegui seu telefone, liguei e perguntei se ela gostaria de entrevistar o Príncipe Moulay Ali, casado com a irmã do rei do Marrocos e que tinha ficado meu amigo (em circunstâncias fantásticas que um dia conto.Inclusive o príncipe e a princesa me ofereceram um jantar no palácio deles, em Marrakesch).
Parece que o príncipe era o homem forte do regime. Nina disse que sim, claro. Só que eu combinei que eu faria as fotos da entrevista. Assim foi feito e as fotos ficaram ótimas. Modéstia à parte, faço maravilhosos portraits.

A Nina então comentou que na na semana seguinte escreveria uma matéria sobre o Salvador Dali, numa homenagem póstuma que faria à Picasso (que já tinha morrido há algum tempo). Quase caí para trás e pedi — pedi, não implorei — que ela me deixasse fotografá-lo. Eu tinha 20 anos nessa época e tudo me entusiasmava, principalmente o Salvador Dali. Nina me disse que infelizmente já tinha combinado com o fotógrafo que fazia as fotos dela e eu fiquei tristíssima.

No dia da entrevista, não sei por que motivo, eu que passei meus dias só pensando no Salvador Dali, para me distrair resolvi ir bem cedo caminhar nos Champs Elysées e tirar umas fotos. Quando estava passando por uma das ruas transversais ouvi uma gritaria. Com minha máquina a postos fui rapidamente ver o que estava acontecendo. No meio da rua uma mulher de camisola !!! estava brigando e batendo com um cabo de vassoura num sujeito de pijama!!!

Apesar de cedo, o barulho atraiu várias pessoas. Quando cheguei perto, ouvi um monte de impropérios em português!!! Por incrível que pareça, o homem era o fotógrafo da Nina, e a mulher, uma das mulatas do Sargentelli.
Saí correndo até conseguir achar um telefone público e liguei para a Nina. Acho que a acordei. Disse-lhe que algo me dizia que o fotógrafo dela não ia dar as caras na entrevista. Nina disse que eu estava enganada. Tanto insisti, que ela acabou me dando o endereço. Ficou combinado que eu iria de stand by. Se ele não aparecesse, eu faria a foto. Dito e feito: foi o que aconteceu.

A partir desse trabalho eu garanti meu emprego. Fazia todas as fotos do Globo em Paris. Trabalhei dois anos, até cansar e voltar para o Brasil, pronta para novas aventuras. Que foram muitas.

Nada melhor que o destino para dar uma ajudazinha.

Pois é, uma coisa leva a outra, que leva a outra, que leva a outra.
Não por acaso nasci no mesmo dia que Marcel Proust, que era um gênio, mas prolixo.
Eu e a minha cultura inútil…

 

E pra terminar…

Lucia Sweet

Jornalista, fotógrafa e tradutora.

Jornalista, fotógrafa e tradutora.

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