18 de abril de 2024
Colunistas JR Guzzo

O inquérito de Moraes que mira Daniel Silveira nasceu errado. Vai estar errado para sempre

Põe a tornozeleira, diz o ministro do STF. Não ponho, diz o deputado; deputado; situações absurdas, em geral, só levam a outras situações absurdas

Situações absurdas, em geral, só levam a outras situações absurdas; a demência puxa a demência. É assim que temos, agora, esse prodigioso debate sobre a tornozeleira do deputado Daniel Silveira – trata-se do grande tema da política brasileira de hoje, para se ter uma ideia do ponto a que chegou a qualidade do debate neste País. Põe a tornozeleira, diz o ministro Alexandre de Moraes, do STF. Não ponho, diz o deputado. Dá para entender que dois homens adultos, um deles tido como importantíssimo para a sobrevivência da nação, nas suas atuais funções de Defensor Perpétuo da Democracia, se metam numa discussão desse tipo? É patético, mas eis aí o resultado inevitável da decisão, tomada pelo ministro, de prender um deputado federal em pleno exercício do seu mandato. Foi uma decisão insana. Só poderia gerar insanidade.

Eis aí um caso em que tudo está errado, desde o primeiro momento, e não melhorou em nada desde então. A Constituição Federal determina, com uma clareza de cartilha escolar, que nenhum deputado federal pode ser punido por expressar em público o que tem na cabeça – seja lá o que for, sem nenhuma exceção e sem qualquer ressalva. Está escrito, também, que só pode ser preso em flagrante e se cometer um crime inafiançável. O deputado Silveira não foi preso em flagrante, não cometeu nenhum crime inafiançável e expressou o que tinha na cabeça – no caso, um monte de insultos aos ministros do STF. Apesar disso tudo, foi preso por ordem de Moraes, que há três anos conduz, com total apoio do tribunal supremo, um inquérito para investigar “atos antidemocráticos” e a circulação de “notícias falsas”.

O deputado Daniel Silveira na Câmara na noite de terça-feira, 29 de março – Foto: Gabriela Biló/Estadão

O ministro, para tanto, criou uma nova figura no direito universal: o flagrante perpétuo. Como o deputado foi preso dias depois de ter dito o que disse, Moraes inventou que a palavra “flagrante”, nesse caso, tem um significado diferente do que consta no dicionário: pode se aplicar a qualquer momento, independente do que marca o relógio ou a folhinha, pois o crime de Silveira não acaba depois de cometido; dura para sempre, e seu autor estará para sempre em situação de flagrante. Não tem pé nem cabeça – mas é o que valeu na hora. Junto com os outros delírios da prisão, o “flagrante perpétuo” gerou a aberração cinco estrelas que veio desembocar enfim, no atual bate-boca sobre a tornozeleira.

A polícia pode entrar no recinto da Câmara dos Deputados, onde Silveira se refugiou, para cumprir a ordem de colocar a tornozeleira, dada por Moraes? O deputado está no exercício normal do seu mandato, pois não foi cassado; ele poderia ser impedido, como quer o ministro, de sair da comarca onde mora, salvo para ir à Câmara em Brasília? Para exercer o seu mandato ele tem, obrigatoriamente, de ir a outros lugares. Como é que fica? Mais que tudo, como se resolve, à essa altura, o pecado original da história toda – a punição de um deputado que é protegido por imunidades parlamentares escritas na Constituição Federal do Brasil?

Não há como resolver, eis aí o problema. Da mesma forma, por sinal, que não há como resolver a charada que se formou entre a punição imposta ao deputado e os atos que ele efetivamente praticou. Silveira disse o diabo do STF – mas isso, caso ele fosse julgado e condenado, só poderia configurar os crimes de calúnia, injúria ou difamação. Nenhum deles é inafiançável. Nenhum deles permite a prisão do autor, mesmo depois da condenação: a pena é multa ou detenção, e réu primário não pode ir para a cadeia em caso de detenção. E a “Lei de Segurança Nacional”, de 1983 – o deputado não poderia ser preso por alguma infração a ela? A lei não existe mais – foi revogada em agosto do ano passado. Na verdade, e esse é o real problema, não há como resolver nenhuma questão que deriva de um inquérito ilegal como esse que está sendo levado adiante por Moraes.

Da mesma forma como absurdo leva a absurdo, o que é ilegal na origem leva à ilegalidade o tempo todo. O inquérito de Moraes nasceu errado. Vai estar errado para sempre.

Fonte: Estadão

J.R Guzzo

José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, colunista dos jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da qual integra também o conselho editorial.

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José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, colunista dos jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da qual integra também o conselho editorial.

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