12 de outubro de 2024
Colunistas JR Guzzo

A justiça no fundo do poço

Alexandre de Moraes, ministro do STF | Foto: STF/SCO

Pelo preço que paga, o brasileiro deveria estar tendo uma das melhores, mais eficazes e mais confiáveis justiças do mundo. É o exato contrário.

Imagine, por alguns instantes, um absurdo bem absurdo, multiplique por dois e eleve o resultado ao cubo. Muito bem — não importa o que você tenha imaginado, pode ter certeza de que no judiciário brasileiro já aconteceu coisa pior. Não se trata de uma questão de ponto de vista. É o que a realidade dos fatos prova, sem parar, à luz do sol e à vista de todos. Acaba de acontecer, mais uma vez. Os deputados de Alagoas, atendendo a pedidos feitos por gente que você já sabe muito bem quem é, aprovaram o seguinte desatino: a partir de agora, os juízes e desembargadores alagoanos receberão do erário estadual dois meses de “licença-remunerada”, ou seja, terão pagamento em dinheiro vivo, a cada três anos em que ficarem no serviço público. Dá R$ 60.000, a cada vez, para um juiz em começo de carreira; se ele está há mais tempo na magistratura e ganha R$ 50.000 por mês, por exemplo, já serão R$ 100.000 — e assim por diante.

Nem é preciso dizer que essas boladas são um plus a mais: os tais “três anos de trabalho” incluem as férias (que já são de dois meses por ano) e os dias relativos aos recessos judiciais de julho, dezembro e janeiro. O magistrado também poderá optar pela licença, em vez do dinheiro; nesse caso, de três em três anos, ficará quatro meses sem trabalhar e ganhando salário integral. E agora vem a cereja no bolo (no bolo deles, claro) ou a notícia realmente ruim da história toda: essa distribuição maciça de dinheiro público pode ser retroativa. Já se calcula que haverá gente botando 1 milhãozinho no bolso.

Por meio do “quinquênio”, o cidadão será roubado, a cada cinco anos, para pagar um aumento salarial automático de 5% para todos os juízes

É um mergulho desesperado no subdesenvolvimento mais agressivo — uma ditadura africana de segunda categoria provavelmente teria vergonha de fazer esse tipo de mamata com os amigos do gângster que estiver ocupando a cadeira de ditador. A desculpa que arrumaram para dar algum tipo de explicação a essa tramoia é uma coisa triste: a “licença-biênio” serviria para “premiar” a dedicação dos magistrados que permanecem nos seus cargos — como se o problema da justiça de Alagoas fosse evitar uma possível demissão em massa de juízes, desmotivados pelo miserável salário inicial de R$ 30.000 por mês que ganham, fora os benefícios. O pior é que a decisão não diz respeito só a Alagoas. Como acontece com outras unidades da federação, Alagoas é um Estado-parasita: não gera receita suficiente para honrar suas próprias despesas, e tem de ser sustentado pelo desvio de impostos pagos por cidadãos de outros Estados brasileiros.

Quem estará pagando pela farra, portanto, não é “o governo”, e nem o erário alagoano — é você mesmo, a cada vez que liga o celular, acende a luz de casa ou põe 1 litro de combustível na bomba do posto. Alagoas não ajuda ninguém. É apenas, do ponto de vista da política, um exportador líquido de gigantes como Fernando Collor, Renan Calheiros ou Arthur Lira, para ficar no resumo da opera — ou de decisões como a do “biênio” para os juízes.

O saque aos cofres públicos feito em Alagoas vem se somar a outro despropósito em estado puro que acaba de ser praticado nestes dias: a ressurreição do infame “quinquênio”, uma praga extinta em 2005 e trazida de volta agora pelo Congresso, por pressão do sindicalismo judicial que envenena de forma tão completa as relações entre o judiciário e a sociedade brasileira. Por meio do “quinquênio”, o cidadão será roubado, a cada cinco anos, para pagar um aumento salarial automático de 5% para todos os juízes, desembargadores e integrantes do Ministério Público deste país. Não se trata de premiar mérito nenhum, ou produtividade, ou mais qualidade no trabalho, ou o cumprimento de metas, ou sequer um tratamento um pouco mais decente para os que têm a infelicidade de se verem envolvidos com a justiça — é dar dinheiro por “tempo de casa”, e só isso.

O “quinquênio” vem se juntar ao colar de “penduricalhos” que anulam a regra constitucional do teto de remuneração para os magistrados — ninguém pode ganhar mais que um ministro do Supremo Tribunal Federal — e fazem do poder judiciário brasileiro um dos mais caros do mundo. São acréscimos salariais pagos a título de “auxílio” para moradia, alimentação, transporte, educação familiar, viagens, livros, “excesso de trabalho” — mais férias anuais de 60 dias, aposentadoria com salário integral, aumentos eternos, pensões, assistência médica de gente rica e por aí afora. Isso leva o ganho médio de um juiz ou procurador aos R$ 50.000 por mês — e frequentemente muito mais. Os sindicatos que estão na origem disso tudo, e que pressionam o tempo todo o Congresso e as assembleias legislativas, acham pouco.

Por que não, se estão obtendo tanto sucesso? Normalmente, para os grupos sindicais, Conselho Nacional de Justiça e Supremo Tribunal Federal funcionam como parceiros; é pedir dinheiro e correr para o abraço.

Nada é tão ruim quanto a avaliação da imparcialidade dos juízes criminais brasileiros. Nosso lugar é o de número 138; pior que isso, só a Venezuela

Pelo preço que paga, o brasileiro deveria estar tendo uma das melhores, mais eficazes e mais confiáveis justiças do mundo. É o exato contrário: está tendo uma das piores, e pode colocar pior nisso. É revelador, a propósito, o último levantamento do WJP, ou World Justice Project, uma sociedade internacional dedicada à promoção do respeito à lei ao redor do mundo. Somando-se todos os itens que compõem a avaliação, o Brasil é o 112º entre os países que têm a pior justiça do planeta — está entre os 20% que fecham a raia, num total de 139 avaliados. Verifica-se, ali, que no item sobre justiça criminal — uma área essencial para se avaliar a qualidade do sistema de justiça de um país — o Brasil está no 117º lugar. É difícil ficar muito pior do que isso.

O índice que mede se os autores de crimes são efetivamente punidos, e se os juízes são competentes e rápidos nas suas decisões, é mais baixo ainda: entre os mesmos 139, aí, o Brasil fica no posto 133. Nada é tão ruim, porém, quanto a avaliação da imparcialidade dos juízes criminais brasileiros. Nosso lugar é o de número 138; pior que isso, em toda a face da Terra, só a Venezuela.

Tudo isso já parece mais do que suficiente em matéria de depressão, baixo-astral e fundo de poço, mas no Brasil de hoje sempre se pode contar com o STF para piorar o pior. Poucos, ali, têm uma história de superação comparável à do ministro Alexandre de Moraes. O ministro já é possivelmente o grande marechal de campo das milícias judiciárias que operam no momento neste país — conduz pessoalmente, na condição de magistrado do STF, um inquérito criminal contra “fake news” e “atos antidemocráticos”, uma aberração que nenhuma lei brasileira permite.

Desde quando, afinal, a suprema corte da nação pode funcionar como uma delegacia de polícia? Agora, Moraes voltou a subir a régua e bater a sua marca mais recente: mandou de volta à prisão fechada um pedreiro do interior da Paraíba, que cumpria sua pena em regime domiciliar, porque o cidadão saiu de casa para trabalhar 20 minutos antes da hora permitida. Só deveria sair às 5 horas da manhã. Saiu às 04h40min, segundo a tornozeleira. O caso foi parar no Supremo e Moraes mandou prender de novo o pobre-diabo, por desrespeito aos horários que deveria cumprir. “Tais faltas não podem ser relativizadas”, decidiu ele.

É alucinante. O homem não saiu de casa às 04h40min para tomar uma pinga, mas para trabalhar, numa hora em que os ministros do STF e milhões de outros brasileiros estavam dormindo o sono dos justos. Quer dizer: foi punido por levantar cedo, castigo possivelmente inédito na história do direito universal. Mas a ideia-chave da prisão domiciliar não é justamente o incentivo ao trabalho? Não é, segundo a suprema corte brasileira — o que importa, de acordo com essa decisão, é obedecer à tornozeleira.

O ministro Moraes quis mostrar que é imparcial; como o Rei Salomão, aplica o “mesmo rigor” para o deputado Daniel Silveira, contra quem faz há mais de um ano uma guerra ilegal, inédita e incompreensível, e o pedreiro da Paraíba. Na verdade, revela apenas um comportamento fanático. Não aplica justiça; persegue os dois. Não é equilíbrio. É uma justiça de pesadelo.

Como acreditar em justiça quando juízes de direito roubam abertamente o erário público

Quando se aponta a insânia pura e simples de uma decisão como essa, o STF, a imprensa e a esquerda falam em “ataque” às “instituições”. Como assim? E as observações do World Justice Project — também seriam um ataque?

Ataque internacional, a soldo dos inimigos mundiais da democracia? A verdade é que a justiça brasileira, hoje em dia, está reduzida a decisões como a volta do pedreiro paraibano à prisão — ou a episódios de assalto ao erário como o que ocorreu com a licença-prêmio-biênio de Alagoas. É uma comprovação a mais de que a democracia brasileira não existe, ou não tem um mínimo de sentido lógico para os cidadãos.

Democracias exigem, obrigatoriamente, que a população acredite, por um mínimo que seja, na capacidade da justiça em fazer justiça — punir o errado e premiar o certo, para começar. Como alguém vai achar isso se há juízes com a conduta de Alexandre de Moraes? Como acreditar em justiça quando juízes de direito roubam abertamente o erário público, como acaba de acontecer em Alagoas?

Como acreditar numa justiça feita de “quinquênios”, “biênios”, férias de 60 dias por ano e salário extra para ler livros, julgar processos que estão em atraso ou pagar o ensino de filhos até 24 anos, como acontece no Rio de Janeiro? É cada vez mais difícil.

Fonte: Revista Oeste

J.R Guzzo

José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, colunista dos jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da qual integra também o conselho editorial.

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José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, colunista dos jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da qual integra também o conselho editorial.

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