28 de março de 2024
Colunistas Joseph Agamol

Macarrão na manteiga

Foto: Astrud com Stan Getty. Créditos de Getty Images
Sou da safra de ‘65. Safra boa, olha quanta coisa bacana aconteceu: os Beatles, que faziam turnê nos Estados Unidos, visitaram Elvis. Eu queria ter sido uma mosquinha para ver essa conversa. Nas rádios, tocavam hits como “My Girl”, dos Temptations, e “Satisfaction”, dos Rolling Stones. O álbum “Getz/Gilberto”, de Stan Getz e João Gilberto, ganhou o Grammy. Nos cinemas, estreavam “A Noviça Rebelde” e “Por uns Dólares a Mais”, com Clint Eastwood. Clint!

Putz. Ano bom, hein? Tempo bom.

Eu nasci e cresci ali, limítrofe, entre Bonsucesso e Ramos, subúrbio do Rio, sob a sombra de mangueiras frondosas – mangueiras só podem ser frondosas, não? – pitangueiras, sapotis mordidos por morcegos e casas mal-assombradas – todo bairro tinha uma. Eu era um pequeno animal selvagem, que vagava pelos limites do meu território, de manhã à noite, até a hora em que eu lembrava que tinha uma casa.

A vida da criança que eu fui era doce – apesar dos perrengues financeiros que começaram a botar a cara no Brasil setentista. Chegamos ao ponto de comer ovo a semana inteira: cozido, frito, em forma de omelete… carne e frango eram como o Abominável Homem das Neves: diziam que existiam – mas eu não tinha provas concretas.

O macarrão na manteiga foi uma iguaria típica da periferia carioca, que dispensava a adição de molhos – tão saborosos como dispendiosos. Era só pegar a massa – Adria, se não me engano – cozinhar até o misterioso ponto certo e – voilà! – refogá-la numa caçarola com manteiga. Na verdade, “manteiga” é licença poética: era margarina, mesmo, Claybom, que vinha em uns pacotinhos retangulares de papel encerado, que raspávamos até extrair as últimas moléculas. Manteiga mesmo entrava na mesma categoria de criaturas lendárias da carne e do frango, ao lado do monstro de Loch Ness.

Por que eu lembrei de tudo isso? A memória é um rio de margens abarrancadas e argilosas: basta se aproximar e fincar os pés na areia para um aluvião de lembranças ir despencando, atropelando-se umas às outras.

No caso, o aluvião veio porque fiz o tal macarrão na manteiga hoje, atendendo à uma misteriosa e imperativa ordem superior.

E ouvi/vi “The Girl From Ipanema”, na voz miúda, classuda e precisa de Astrud Gilberto e seu gestual cuidadoso e mínimo, com o auxílio luxuoso do sax de Stan Getz – que citei lá em cima.

Sinto falta disso, sabiam? Não do macarrão na manteiga em si, nem da Astrud que posso ouvir no Spotify e YouTube.

Mas do que eles simbolizam: a poeira do tempo que vai formando a estrada, cada vez maior às nossas costas.
Joseph Agamol

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *