28 de março de 2024
Colunistas Joseph Agamol

Esperança

Foto: Tim Bowler
Inácia enxugou as mãos e gritou para a cozinha: “morango ao leite!”. Aguardou a confirmação do pedido e olhou o salão. Àquela hora e a Central do Brasil já formigava: trabalhadores que iriam se espremer no metrô até o Centro, em sua maioria. Inácia pensava no filho em uma escola pública na comunidade – “que comunidade, gente, vamos dar às coisas os nomes que elas tem!” disse para si mesma.

E pensou no quanto ela tinha nojo do esgoto a céu aberto em seu quintal, e no quase um metro de lama quando chovia, e do medo que sentia a cada noite imaginando os tiros, se ia ou não precisar por o colchonete na cozinha, mais abrigada, para ela e o filho. Foi trazida de volta por uma voz irritada:

– pensando na vida?! Tem uma meia hora que pedi meu suco! Quer que reclame com o gerente?

Ela engoliu em seco, pediu desculpas e trouxe o morango ao leite que o rapaz dos sucos demorou para fazer.

– olha que se eu treinar uma capivara ela faz melhor, hein?!

Ela sentiu os olhos arderem com as lágrimas que queriam brotar com essa humilhação final, mas não ia dar àquele filho da mãe o gostinho de vê-la se debulhar em choro. Antes do meio-dia ela já havia recebido uma bronca do patrão, ouvido três bêbados falarem do seu traseiro e recebido duas propostas indecentes.

Debruçada sobre o balcão – que ela mantinha impecavelmente limpo, aprendera com a mãe, essas coisas vinham de berço – ela imaginava as lágrimas como um pequeno exército de soldadinhos azuis querendo romper uma frágil resistência para invadir seu rosto.

Foi quando  o freguês que havia pedido uma empanada (ela nunca tinha ido a Buenos Aires, mas sabia que o que vendiam ali não era empanada nem ali nem na China) sorriu e lhe entregou o dinheiro para pagar o lanche – junto com um pequeno papel dobrado.

“Pronto, mais uma cantada barata”, pensou, com desalento. Esperou o cliente sair, puxou o papel do bolso do jeans justo (“tinha que parar de vir com essa calça”, bufou, distraidamente) e leu:

“Hoje é sua SEGUNDA FEIRA DE SORTE! Esses números estão PREMIADOS! Use com cuidado. Não seja gananciosa. E RETRIBUA.” E, do outro lado do papel, uma sequência de números. Inácia começou a rir. Riu até o chefe achar que estava tendo uma espécie de ataque, até os outros clientes começarem a olhá-la de modo estranho, até ela própria ficar com vergonha.

Era aquilo, afinal. Não uma cantada, não mais um elogio ao seu traseiro (que um dos bebuns fizera questão de dizer que era “melhor que o da Gréti!”), nem uma gorjeta. Era só um maluco que sonhava que era um anjo. Ela enfiou o papel no bolso e esqueceu o assunto.

Quando saiu, um pivete surgiu do nada e roubou sua bolsa. Ela sentou no meio fio e nem chorou. A bolsa era velha, e ela tinha posto o dinheiro da passagem no bolso. Pegou o dinheiro e junto com as notas, o papel. Ela sorriu e grasnou para a noite do Rio:

– Segunda de sorte, né? Caraca! Mais uma segunda de sorte assim e eu…

Não completou a frase. Teve o que os antigos chamavam de “um estalo”. Pegou o papel: era amarelado e parecia antigo. A letra era elegante. Ela pensou que, se os anjos escrevessem bilhetes, seria num papel assim. Passou as mãos no traseiro, limpando a poeira do chão, e bradou, para todo mundo e ninguém em especial:

– quer saber? O que é um pum pra quem já todo melado?!

Voltou e marcou um volante de loteria. O tempo todo uma vozinha ficava repetindo em sua cabeça uma espécie de mantra maldoso:

“Ridícula, ridícula, ridícula, como você é PATÉTICA, ridícula…”

Ela guardou o volante no bolso, junto com o bilhete (que já estava chamando de “bilhete do anjo”) e foi pra casa. A pé. E esqueceu por três dias. Só lembrou quando pôs a calça para lavar e resgatou o bilhete (“do anjo”, pensou) e o volante do bolso. Quando saiu do trabalho, foi à loteria para conferir, o tempo todo se dizendo para não ser estúpida, para não ter esperança, a vozinha em sua mente misericordiosamente quieta.

Parou em frente ao quadro com os resultados. Conferiu. Nada. Olhou de novo. Nada. As lágrimas vieram com força agora, junto com a vozinha malvada entoando seu mantra debochado. Ela secou os olhos e jogou o volante e o bilhete no lixo. Olhou de novo o quadro (“burra, burra, como pode ser tão BURRA?!), num paroxismo masoquista… e foi quando viu que havia algo ERRADO. Ela tinha conferido os resultados do prêmio anterior. O do jogo que ela havia feito estava ao lado.

“Que burra!!!”, pensou, lembrando do seriado do Chaves e sufocando outro ataque histérico de riso.

Trotou até a lata de lixo, sem ligar para os olhares de desdém e espanto que recebia, e escarafunchou como um terrier caçando uma toupeira e, em meio à papéis de bala Halls e outros bilhetes desprezados, estavam os – voilà! – seus. Voltou ao quadro de resultados, tentando – inutilmente, diga-se a bem da verdade – manter uns fiapos de dignidade.

Conferiu uma vez. Piscou duas vezes para o quadro, como uma coruja ao amanhecer. Não acreditou. Chegou mais perto. Olhou a data, os números, o seu bilhete, uma, duas, cinco vezes. Não fez força para conter as lágrimas, agora. Puxou um papel do bolso para secar o rosto – com horror, percebeu que quase usara o volante premiado para isso.

O volante premiado. Sim. Era sua segunda feira de sorte, como dissera o ANJO.

Foi até o o caixa e perguntou qual era o prêmio. O caixa disse o valor. Ela ouviu, mas não via as notas em sua mente: o que via era uma casa decente, talvez numa outra cidade, uma casa com jardim e buganvílias, cata-ventos e girassóis, borboletas e esperanças, via brinquedos para o filho, via o filho correndo num lugar onde poderia correr livre e onde não ouviria o estampido de tiros à noite, via uma pequena lojinha de doces e café que ela adorava fazer – e sem ninguém para lhe dar ordens. Ninguém para lhe humilhar. E só elogiaria seu traseiro quem ELA quisesse.

O caixa perguntou se ela não queria aproveitar a sorte e comprar outro. Inácia pensou bem e lembrou da advertência do anjo – sim, só podia ser um anjo, quem explicaria isso melhor, ora bolas? – para não ser gananciosa e imaginou que, se alguém tinha um poder daqueles para dar, tinha também para tirar.

Ela disse, não, obrigado.

(Melhor não abusar)

– Foi só uma segunda feira de sorte, viu, moço?

Mas pode chamar de esperança.

Joseph Agamol

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

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