Fartura, desperdício e fome

Como é de praxe entre os imigrantes e exilados, meus avós vieram da Itália passando fome. Fugindo do calor, instalaram-se aqui em Minas atraídos pelas oportunidades de trabalho da construção da nova capital. Na Toscana eram pequenos agricultores; tinham lá uma centena de pés de oliveiras das quais extraíam o bom azeite usado à mesa e ainda vendido na cidade, para ajudar nas despesas.
Minha avó cozinhava maravilhosamente bem; foi até convidada para ensinar receitas à família do governador João Pinheiro. Aquela mulherzinha brava prestava reverência aos dois alimentos básicos de suas origens mediterrâneas: o pão e o azeite. O pão era feito em casa, assim como a massa do macarrão, em rituais quase diários que contavam com o apoio – prazeroso, voluntário e caótico – dos netos, felizes por ajudar. Eu, como neto caçula e temporão, mal alcançava o beiral da velha mesa de madeira coberta de farinha branca. E o azeite? Ah! Este deveria ser obrigatoriamente italiano e de boa qualidade, adquirido com as sagradas economias domésticas. Porque, para minha avó, distante de sua terra natal, botar azeite ruim na mesa já seria demais; coisa humilhante; sinal de miséria, de perda da dignidade.
Com os budistas, aprendi a agradecer cada refeição colocada à minha frente, um privilégio do qual muitas vezes não nos damos conta. Não sou propriamente um gourmand, como se diz. Muito menos um glutão, o chamado bom garfo. Mas também não paro em pé quando o saco está vazio. Minha sabedoria culinária se restringe à simples diferenciação de comidas honestas ou desonestas. E meu olho tem o tamanho exato de minha barriga. Detesto as aberrações e os excessos norte-americanos, assim como o minimalismo desolador – ainda que elegantíssimo – da nouvelle cuisine francesa. São, sim, obras de arte lindas de se contemplar, mas responsáveis por inquietantes vazios interiores de meu ser.
Fiel às raízes, permaneço atento à primazia – ou seria à obsessão? – que os italianos dão ao comer. Não é novidade: as famílias se reúnem, conversam, gritam e brigam sempre em torno da mesa. Observando bem, constatei que os italianos, enquanto comem, falam de… comida! Elevando aos céus a magnitude do verbo comer, o próprio papa Francisco encerra suas aparições dominicais na janela do Vaticano saudando a multidão e desejando buon pranzo a tutti! Bom almoço a todos!
Na linha odiosa do ganhar ou perder que domina o mundo, os programas de TV conseguiram transformar a cozinha num inferno com demônios implacáveis à espreita do menor deslize do pobre aprendiz. Os ditos jurados, gargalhando cruéis, estão prontos para espetarem as carnes tenras das criancinhas – ex-futuras chefes – com o tridente fatal. A exemplo das outras asneiras do gênero da TV, ingredientes, temperos e modos de fazer são secundários. O estranho prato servido a cada episódio é a tensão permanente, o medo da eliminação, o choro, a decepção e – como sobremesa – a glória do vencedor.
Chefes de cozinha e amantes da culinária precisam estar atentos à fronteira estreita que separa o prazer gastronômico da insanidade perfeccionista. Sem esquecer que é difícil ser exigente, charmoso e sofisticado à mesa num mundo onde 1 bilhão de pessoas hoje passam fome, sendo cerca de 10 milhões no Brasil.
Tais cidadãos anônimos fazem parte de nossa rotina: rasgam os sacos, reviram os dejetos, separam o que lhes interessam e deixam tudo espalhado. Tente dizer a eles que isso não pode, que é feio, que é pouco civilizado, que polui o bairro, que lixo largado na calçada é levado pelas chuvas e entopem os bueiros, causando enchentes como as dessa temporada. Eu, não tenho coragem.


Escritor e colunista de O TEMPO