Ou como estragar um sagrado momento do dia.

Estava degustando em paz meu bendito arroz-com-feijão no comida-a-quilo quando ele invadiu o recinto. Era um menino, uns 8 anos, em disparada, seguido às costas pela senhora sua avó. Chegavam para o almoço; momento de raro convívio familiar. Ou, quem sabe, um socorro providencial à mãe do capetinha, exausta ao final das férias e sonhando conceder-se um mísero intervalo de paz para fazer as unhas.
O pequeno atraiu atenções imediatas graças à sua desenvoltura social. Gritava, trombava nas pessoas, furava as filas, mexia em tudo; quase derrubou as panelas fumegantes. Exibia aquilo que os educadores modernos denominam como “hiperatividade”. E que os antigos, na sua sabedoria, chamavam de “falta de limites, de chinelo na bunda” (ops! Esqueci! Hoje não podemos mais falar “palmada” nem “autoridade”, fica logo “autoritário”). Ansiosa, a vovó correu os olhos pelo salão:
– Meu querido, você quer se sentar nesta mesa bonitinha ou naquela mesinha legal?
Em dúvida, o monstrinho testava a estabilidade das mesas com esbarrões propositais, certeiros. Prudentes, todos seguravam bolsas, copos e garrafas.
– Amorzinho, você quer a cadeirinha de gente grande ou essa pequenininha?
O amorzinho assentou-se, sacou do bolso um celular com joguinhos e iniciou a batalha contra os mutantes do planeta Komikilon. A trilha sonora “Pling! Zóin! Nhec-nhec! Ton-ton!” alcançava uma centena de decibéis. Em meio ao barulhão, a vovó insistiu:
– Querido, vou fazer seu pratinho. Você quer batatinha frita ou macarrãozinho?
Nenhuma resposta. Após liquidar o Dragão Escarlate, ele se concentrava agora na mudança de fase. A avó, aproveitando-se do momento estratégico, foi ao bufê e serviu-se.
– Olha, meu bem! A vovó botou milho, você adora! Vamos papar?
Alertado ao ouvir o verbo “papar” dito a um guerreiro daquele porte e idade, levei automaticamente a mão à cintura. Minha pistola de raios estava pronta, se um Papão Sanguinário de Komikilon escapasse do jogo e atacasse alguém. O monstrinho não se deixou perturbar. Abrira o terceiro portal dos Ogros Defensores e invadira a fortaleza do cruel Malévolus. A vovó, usando a colher como um aríete, tentou igualmente invadir o portal bucal do neto.
– Não quero! – berrou ele.
– Mas a vovó foi buscar pra você! Só um pouquinho, come!
– Não quero! – repetiu.
– Então, a batatinha frita! Só uma!
Foi nesse instante que o milagre ocorreu. No lugar do Papão Sanguinário, foi o Avatar Prateado que saltou da tela do celular, materializando-se. Grande, brilhante, poderoso, quase assustador. Postou-se junto à mesa deles, mãos na cintura. Com voz cavernosa e metálica, disse ao garoto:
– Menino cheio de frescuras! Menino abusando da vovó!
Apavorado, o monstrinho abraçou-se à senhora, pedindo colo:
– Menino, precisa comer de tudo. Arroz. Feijão. Tomate. Macarrão. Menino não pode brincar com celular enquanto come. Vovó também não pode mimar assim o netinho. Entendido?
O garoto fez que sim; uma, duas vezes, balançando a cabecinha. Desligou o celular. Pegou o garfo – sozinho, sem ajuda, vejam só – e pôs-se a comer, bem-comportado. A vovó suspirou, aliviada. Pessoas que almoçavam bateram palmas, inclusive eu:
– Muito bem! Viva o Avatar Prateado! Viva!
O Avatar Prateado levou a mão à testa, em despedida. Mais uma missão cumprida. Alguns ainda viram-no pagando a conta com cartão de débito e sumindo num rastro de luz.


Escritor e colunista de O TEMPO