Anistia tratada com dois pesos e duas medidas
Foto: Editoria de Arte
Entre 1968 e 1971, ano em que fui embora do Brasil na terceira classe de um navio italiano, convivi com gente ligada aos movimentos de esquerda – alguns envolvidos com Marighella, Lamarca e outros líderes. A meta era derrubar o governo militar e transformar o Brasil num país comunista; uma nova ditadura do proletariado, a exemplo de Cuba, Rússia, China. Caso o plano desse certo, trocariam a ditadura militar por… outra de perfil oposto.
Porém, para mim eram ambas apenas “ditaduras” – e isso me bastava; acendia-me um alerta, uma repulsa, um pé atrás. E como nenhuma das alternativas se encaixasse nos meus ideais de juventude e liberdade, preferi vagabundear como mochileiro pela Europa nos bons anos do rock, dos festivais, das caronas, das comunidades hippies e do sonho que ainda não tinha acabado.
Por lá, às vezes encontrava alguns exilados, militantes que saíram às pressas do Brasil para não serem presos, torturados ou até executados. Muitos não resistiram à distância, à saudade, à solidão, ao medo que os alcançava no silêncio da noite, independente de se sentirem mais ou menos a salvo na França, Suécia, Itália.
Retornei ao Brasil para virar adulto, tomar vergonha na cara, arrumar trabalho e levar a vida a sério, e o cenário já era outro. Falava-se em “abertura lenta, gradual e segura”, incluindo a anistia “ampla, geral e irrestrita” aos condenados pelo regime e sua volta à pátria-mãe – que se tornara, então, um pouco mais gentil. Foi uma das únicas vezes que saí às ruas com cartazes e faixas, torcendo para que compatriotas pudessem regressar em paz e tocar suas vidas.
No polêmico episódio de 8 de janeiro em Brasília, centenas de homens e mulheres foram presos – muitos deles idosos, humildes ou ingênuos. Para o STF, foi a tentativa de um golpe de estado, algo inédito na história mundial uma vez que não havia fuzis, tanques nas ruas, maciço apoio popular, lideranças e outras peculiaridades que caracterizam um evento desse perfil. No entanto, a bagunça de um dia resultou em penas absurdas, como a que condenou a 17 anos de prisão uma mãe de família que usou um batom como arma.
Nos anos 1970 havia gente treinada em Cuba e na África para luta armada. Guerrilhas surgiram no Araguaia e em outros cantos. Sequestros de embaixadores, atentados e assaltos a bancos, promovidos pelos inúmeros grupos da esquerda, assustavam a nação. Jovens prestando Serviço Militar e cidadãos inocentes foram assassinados. Existia uma cadeia de comando; reuniões secretas, comunicação codificada, apoio financeiro, estratégias e fornecimento de material bélico por parte de países estrangeiros. Tudo estava pronto para um legítimo “golpe”, uma indiscutível tomada de poder, no peito e na marra – situação completamente diferente da baderna de Brasília.
Veio a anistia de 1979; tribunais militares arquivaram processos, presos foram libertados – tudo sustentado por uma legião de advogados, dentro dos prazos e meandros legais. E mais: ex-guerrilheiros urbanos e rurais recebem hoje gordas pensões do governo, como Dilma Rousseff, que atuou numa facção. Portanto, o estado paga – com o nosso dinheiro – “indenizações” a pessoas que tentaram, com armas na mão, derrubar o governo e perderam.
Enquanto isso, centenas parecem estar sendo condenados à margem da lei; seus advogados reclamam não terem acesso às íntegras dos processos; as penas são exageradas, claramente desumanas.
Se Kafka vivesse hoje, certamente faria postagens no seu blog denunciando outra vez, com sua verve literária, a burocracia surreal, obscena, injusta e opressora. Ou, não: logo o velho Franz teria suas redes sociais bloqueadas e, acusado de divulgar fake-news, iria em cana.


Escritor e colunista de O TEMPO