Encontro imaginário em certo reduto do poder.
– Podemos começar, estão todos aí?
– Bem… Nem todos, senhor. Alguns nem deram as caras.
– Devem ser extremistas de direita, antidemocratas, negacionistas, carnívoros, etc. Mas vamos ao que interessa. Quem for a favor de reduzir a criminalidade, levanta a mão!
Metade da turma ergue os braços; alguns ensaiam o gesto e fingem checar mensagens nos celulares, constrangidos.
O homem à cabeceira retoma a palavra:
– Pois é, temos um problema cada vez mais sério nesse país, sabe. A criminalidade está se institucionalizando; ocupando espaços; comendo pelas beiradas, dia a dia. Se continuarem assim, chegarão até as esferas mais altas da nação! … – diz ele, cara fechada, espargindo perdigotos.
Alguns se entreolham. Despontam risadinhas discretas, abafadas.
– Um dia??? – alguém sussurra, em tom de piada.
Mais sorrisos, disfarçados com tosses e pigarros.
Outro idoso, eufórico, vai até o microfone:
– Verdade, verdade! É imensurável o poder dos criminosos, sobretudo certos indivíduos de aparência inocente, inofensiva, segurando bíblias. Principalmente mulheres, muitas mulheres, sentindo-se empoderadas. Vieram armadas de bolinhas de gude, batom, garrafas de água. Mas a justiça está sendo implacável: já são prisioneiras políticas, condenadas com penas que chegam até os 17 anos de reclusão! Aposentadas, diretoras de escolas, donas de casa, feirantes, cuidadoras de idosos, na faixa de 60, 70 anos – mas, como vimos, altamente danosas ao estado democrático de direito!
– Ótimo, grande medida! Já estão pagando pelo golpe institucional que tentaram impetrar. Isso é parte do passado, quero novas ideias, propostas para o futuro…
Levantou-se um assessor:
– Acho que a ação mais importante será acabar de vez com essa praga chamada rede social. Antes, nosso povo vivia feliz no sofá, vendo o noticiário com as informações que a gente mandava e que eles botavam no ar entre as fartas propaganda do governo. Em seguida, a família unida assistia a aquelas lindas novelas, todos os atores com sotaque nordestino, coisas engraçadas, maneirismos nacionais, diversão… Ah! Que saudades!
– Verdade! Perdemos todo o controle; agora todo mundo tem celular, muita gente começou a dar palpite, a dizer o que acha do governo, a criticar, a contar o que acontece nos bastidores! Onde vamos parar?
Foi nesse ponto que um dos participantes, que a tudo escutava calado, tomou o microfone:
– Chefe, tenho dúvidas. E a movimentação de drogas através de nossas fronteiras? As organizações criminosas dispões de infindáveis recursos financeiros, dinheiro vivo, milhões, bilhões, e é por isso que estão mandando no mundo inteiro. Aqui, traficantes pegos em flagrante com toneladas de cocaína são liberados imediatamente por “falta de provas”. Canalhas, bandidos condenados por corrupção são absolvidos a torto e a direito!
Clima tenso. Alguns fingem rabiscar garatujas. Ele continua:
– Já existem países totalmente dominados pelos narcotraficantes. Membros do judiciário vendem sentenças, porque é praticamente impossível resistir a tanto dinheiro. Além das drogas, temos o tráfico de armas, munições e explosivos que abastecem grupos armados, organizações criminosas… Ou seja: eles já estão no comando.
Impaciente, o líder da reunião olha o relógio, remexe-se na poltrona, comenta algo com um assessor, cobrindo a boca com mão. Súbito, ergue-se:
– Hum… Vossa excelência está tergiversando, isso não vem muito ao caso; podemos tratar dessa pauta oportunamente. Reunião encerrada, boa noite a todos.
Lá fora, o sol se põe manso no horizonte e a vida segue como sempre.
Escritor e colunista de O TEMPO