29 de março de 2024
Erika Bento

O Brasil por uma criança de 11 anos

TGAFoto: sala de aula de uma escola pública em Worcester, na Inglaterra

“Se os políticos daqui usassem o dinheiro direito, seria melhor para todo mundo”. A frase foi dita, com pesar, pela minha filha quando saíamos de uma escola particular no Brasil onde fui exercer o dever do voto. Não precisou muito para que ela chegasse àquela conclusão. Intimamente, ela comparou a escola pública britânica que ela frequenta com o que ela acabara de ver e que, ela soube depois, nem todas as famílias brasileiras podem custear.
Durante os quinze minutos que ficamos lá dentro, ela viu duas salas de aula, o pátio e as escadas internas. O aspecto geral do prédio nem era ruim para os padrões brasileiros. Eu mesma fui criada em uma escola como aquela e nunca me sentira mal por isso, mas do alto da sabedoria dos seus onze anos de idade, ela pôde ver a diferença cultural que eu não tivera a chance de ver, na idade dela. Grades por todos os lados, brinquedos de ferro sem proteção e lousa quadro branco ao invés de um “whiteboard” interativo que praticamente 100% das escolas britânicas públicas já usam há alguns anos.
Ela me perguntou, então, como eram as escolas públicas. Achei melhor nem entrar em detalhes. Prefiro sempre que ela veja por si mesma e chegue à sua própria conclusão, mas como ir à uma escola pública não constava na minha lista de afazeres, disse apenas que era bem pior. O ar de pesar tristeza nos olhos dela me atingiu em cheio.
Um pequeno adendo: depois de 16 anos sem votar, fui às urnas apenas para que ela pudesse entender como funciona o voto no Brasil. Cheguei a pedir à mesária para que minha filha fosse comigo à cabine de votação, mas não deixaram. Expliquei que ela não morava no Brasil e que eu gostaria de mostrar a ela como funcionava a urna eletrônica.
Como eu não sou a Angélica nem casada com o Luciano Huck, deixaram apenas ela ir à urna depois que eu votasse para dar uma olhadinha rápida. E olhe lá!
Alguns dias depois, minha filha resumiu outra experiência em terra brasileira com “as leis aqui existem apenas para dizer que o país é moderno, né”. Isso foi depois de ficarmos 50 minutos na fila de um banco. Quando já haviam se passado vinte minutos de espera, eu disse a ela que no Brasil há uma lei do consumidor que limita a espera por atendimento a 20 minutos. Mostrei-lhe um painel na parede do banco onde havia um aviso sobre a tal lei, mas para a minha vergonha total, o número do Procon estava oculto com XXXX-XXXX. Ela sorriu.
Depois de 30 minutos, fomos falar com uma atendente que, meio sem graça, me aconselhou a “dar uma chegadinha” no caixa assim que o próximo cliente saísse. Talvez, se eu nunca tivesse saído do Brasil, teria aceitado a dica numa boa, mas naquele momento me senti violada. “Eu não posso passar na frente dessas pessoas todas que estão esperando na minha frente” eu disse e ela ficou ainda mais constrangida.
Quarenta minutos depois, pedi para falar com o gerente, mas me disseram que ele estava em hora de almoço. Eram quase duas da tarde. Como quem já trabalhou quase três em agência bancária em Londres, posso dizer que meu gerente nunca saía para o almoço antes das três da tarde. Não porque ele era muito ocupado, mas por saber que no horário de rush é quando os clientes mais precisariam dele. Bom, como a gerente não estava e não havia número do Procon visível, me mostraram um telefone vermelho para fazer reclamação diretamente ao Ombudsman. Minha filha e eu fomos até lá, mas… o (maldito) telefone não funcionava. Ela não riu, apenas balançou a cabeça e torceu a boca de lado. Cinquenta minutos após ter chegado, fomos atendidas. Ao sair da agência, expliquei que se quiséssemos mesmo levar a reclamação adiante teríamos que ir ao escritório do Procon onde provavelmente iríamos esperar mais uma hora e, furiosa, eu desabafei “lei no Brasil não serve pra nada” e ela completou com uma conclusão própria, a de que as leis servem sim, só pra dizer que é um país “moderno”.
Nos dias em que ficamos no Brasil, especificamente em Poços de Caldas, no Sul de Minas Gerais, era inevitável olhar a paisagem urbana e não me sentir desconfortável. A cidade, aos meus olhos, sempre foi linda, a Cidade das Rosas, do verde, das ruas largas e calçadas limpas. Não sei se são meus olhos que mudaram ou se a cidade realmente estava triste e malcuidada. Terrenos baldios, praças com gramados doentes, ruas e calçadas esburacadas. O parquímetro eletrônico foi o maior avanço que vi na cidade e isso me deixou triste.
É repugnante ver que milhares de crianças no Brasil poderiam ter a mesma educação que a minha filha está tendo — ou ainda melhor — se não fosse a cultura de saqueamento do cofre público que se alastrou em todas as esferas políticas do país adoecendo terminantemente a máquina administrativa brasileira, criando uma metástase cultural na mente do brasileiro que, sem ter órgãos algum que o proteja, encontra um meio de sobreviver entre um sangramento e outro da própria dignidade.
Apesar da dor dilacerante de deixar para trás filhos, amigos e parentes — principalmente depois de comemorar o casamento do meu filho —, volto à Inglaterra com a certeza de que fiz a coisa certa ao sair do Brasil, oito anos atrás. Um país onde se perde as contas do montante de dinheiro público desviado para o enriquecimento ilícito de seus governantes, não merece o pesar da minha filha que, aos onze anos, traduziu com um olhar o desgosto e a desaprovação das atitudes dos que rodeiam a família que ela tanto ama.

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