25 de abril de 2024
Erika Bento

As vidas de Sophie:

capa livro 1Capítulo 21
Anne correu desesperadamente até o quarto, pegou o celular e ligou para Brandon em prantos, buscando uma força inexistente para falar com clareza.
— É a Sophi! Ela está… ela está.. — gritava, atropelando a voz de Brandon alterada do outro lado.
— O que foi Anne?
— Ela está desmaiada! Tem sangue! … Oh Brad! O que eu faço? — berrava enlouquecidamente.
— Mantenha a calma, Anne. — enfatizou Brandon, enquanto, chamava a ambulância de um outro telefone. — Pegue o pulso dela, Anne. Faça isso com calma!
Anne tentou levar a mão descontrolada e trêmula ao braço de Sopihe.
— Não consigo, Brad! — gritava em pânico. — Sophi, Sophi, acorde, por favor!
— Anne!!! — urrou ele — O pulso! — e Anne ouviu a voz abafada de Brandon que falava com alguém mais. Uma ambulância, urgente!
Anne firmou a mão e conseguiu segurar o pulso de Sophie. Suspendeu a própria respiração e parecia que aquilo sob seus dedos não passava de algo frio e sem vida. Fechou os olhos com força, rezou, implorou e, finalmente, sentiu um pulsar tímido contra os seus dedos.
— Ela está viva! Brad, ela está viva! — e chorou compulsivamente, ouvindo a voz de Brandon que passava o endereço dela a alguém. Deu-se uma confusão em sua mente e Anne caiu de joelhos ao lado da cama com a mão de Sophie entre a sua.
— Ótimo, Anne! Agora, acalme-se. Uma ambulância vai chegar em poucos minutos.
— Oh Brad, o que eu faço…..? — perguntou com a voz entrecortada de medo.
— Fique calma. Estou saindo agora e vou preparar tudo no hospital. Fique com ela, você foi ótima, Anne — falou Brad, com um fio de desesperança na voz.
Anne soluçava e repetia a mesma frase, desorientada, balançando seu próprio corpo agachado, ao lado da cama.
— Sophie, não morra. Por favor, não morra. Eu preciso de você…
— Anne, me ouça. Fique calma. Eu já estou a caminho do hospital…
— Brad, não deixe ela morrer, por favor… — Brad queria lhe dizer que não deixaria, mas não podia.
Anne abriu ligeiramente os olhos e fitou Sophie com o sangue seco no rosto. Queria levantar-se, pegar um pano úmido e limpá-la, mas não sabia se poderia, não sabia se conseguiria! Baixou os olhos novamente, olhando os dedos de Sophie tão frios entre os seus. Massageou-os e beijou-os umedecendo-os com suas lágrimas enquanto Brandon conversava com ela, acalmava-a com sua voz quente e suave. Anne choramingava lhe pedindo que a salvasse, custasse o que custasse, ele deveria trazê-la de volta e Brandon cerrava a mandíbula do outro lado.
A espera estava se tornando angustiante demais, até que − alguns minutos depois do último soluço e da última tentativa de fazer Anne se acalmar − a voz de Anne aumentou três tons.
— Estou ouvindo as sirenes, Brad. Eles estão chegando! — Brad ouviu-a ofegante, e depois, passos apressados que se misturavam a gemidos e preces. Ouviu o som do trânsito ao fundo e a sirene aguda bem dentro do seu ouvido. Respirou aliviado, dirigindo perigosamente pelas ruas da cidade.
— Eles estão chegando, Brad! Eles estão aqui! … Venham! Venham, por aqui, oh Deus, oh Deus! — ouviu vozes, passos e também um baque seco.
Os sons ficaram distantes e Brad acreditou que fosse apenas Anne que largara o celular em algum lugar. Ouviu pelo menos três vozes diferentes e Anne que chorava e repetia o nome de Sophie constantemente.
— Afaste-se, por favor, senhora. Diga-nos onde ela esta — falava uma voz feminina, educadamente.
— Lá em cima… — disse Anne em uma voz mais aguda que o normal.
Barulhos metálicos e Anne que soluçava. Fez-silêncio e Brandon imaginou que estivessem no quarto, controlando os sinais vitais de Sophie e implorou para que ela ainda estivesse viva. Os segundos passavam lentamente enquanto Brandon tentava desviar do trânsito à sua frente, então, voltou a ouvir os sons mais próximos do telefone.
— Vamos descer agora! — advertiu uma voz masculina jovem.
Brad ouviu as vozes cada vez mais próximas e suspeitou que descessem as escadas. O celular estava na mesa encostada à parede junto ao telefone fixo, imaginava. Passos acelerados passaram por seus ouvidos e a voz de Anne aguda suplicava.
— Por favor, eu preciso ir com ela. Deixem-me ir com ela, por favor, por favor! — Brad entrava no estacionamento do hospital no mesmo momento em que ouviu o barulho da porta se fechar em um estalo forte. E fez-se silêncio do outro lado. Anne o largara ali, na mesa. E Brad desligou.
Anne andava de um lado para o outro no hospital, na pequena sala de espera. O ponteiro do relógio saltava vagarosamente. Os minutos se arrastavam e Anne correu para abraçar Paul que exibia um par de olhos perdidos. Anne desmanchou-se em lágrimas em seus ombros e Paul a ajudou a se sentar.
— Ela vai ficar bem — sussurrou em seus ouvidos.
— Não vai… eu sei que não vai — murmurava de volta, com a cabeça afundada no peito de Paul.
— Não fale assim, Anne. Sophie é forte, você vai ver — falou com uma voz rouca e calma.
— Oh Paul, ela estava tão… — e desmanchou-se novamente.
— Calma, querida. Vai dar tudo certo, eu sei que vai — Paul afagava-lhe os cabelos com doçura enquanto sentia os próprios olhos umedecerem.
Anne permaneceu envolta nos braços de Paul por longos minutos, inconsolável, enquanto ele, em silêncio, rogava para que Sophie fosse realmente forte. Cerrou os olhos. Vamos, garota. Nós estamos no meio de uma aventura, lembra-se? Temos tantas coisas para investigar e descobrir! Vamos Sophie, seja forte. Seja forte!
Passaram-se duas horas, três e Anne sentia-se vazia, como se tivessem sugado todas as suas energias. Não tinha mais lágrimas para chorar, nem orações a fazer, apenas um oco em sua mente. Pensou em Jesse e quis que ele estivesse ali com ela. Usou o celular de Paul e acordou Jesse, às três da manhã, com uma notícia que ele temera ouvir. Sophie estava no CTI. Jesse não perguntou como foi, nem quando, nem por que. Pediu somente o nome do hospital e desligou. Em menos de vinte minutos, estava parado diante de Anne, com os cabelos despenteados, uma calça jeans e uma camisa amassada, os olhos de um amarelo opaco e a boca em uma linha reta sem expressão.
— Oh, Jesse… — murmurou Anne abraçando-o pesadamente.
O ponteiro do relógio deu mais centenas de voltas até que Brandon surgiu ao fundo do corredor. Anne temeu correr até ele. Temeu pelo que ele lhe diria. Baixou os olhos para as próprias mãos cruzadas sobre os joelhos e implorou para que houvesse alguma esperança. Brandon caminhava lentamente. Isso não é um bom sinal, não pode ser. Oh, Deus, diga-me que ela está bem, por favor!
— Anne? — chamou Brandon, dobrando os joelhos à frente dela que mantinha os olhos ainda baixos vendo as próprias lágrimas pingando no chão entre os seus pés.
— Não… por favor, não… — suplicou Anne.
— Shhh… ela está bem. Ela está bem, Anne! — murmurou, erguendo suavemente o queixo de Anne e, quando ela o encarou, seus olhos começaram a recuperar o brilho. Jesse e Paul suspiraram aliviados ao seu lado.
— Você jura, Brad? Não está mentindo para mim, está? — perguntou em prantos.
— Não, Anne. Ela vai ficar bem — e abraçou-a com ternura, protegendo-a entre seus braços, beijando-lhe os cabelos.
— Foi duro, mas ela é forte. Vai precisar de muito repouso, agora.
— Foi outro derrame, não foi? — Brad assentiu com a cabeça. — Sequelas? — perguntou temendo novamente pela resposta.
— Talvez sim — disse ele, enrijecendo a mandíbula enquanto Jesse passava as mãos pelos cabelos fechando os olhos vazios.
— Oh, não… — Anne baixou os olhos novamente. — Que tipo de sequelas?
— Temos que esperar para ver, mas o importante é que está fora de perigo — Anne balançou a cabeça, engolindo uma grossa saliva.
— Posso vê-la? — perguntou, com os olhos brilhantes.
— Pode — sorriu, ajudando-a a se levantar e Anne passou por Paul e Jesse como se eles não existissem. Brandon fez um gesto para eles, pedindo que esperassem um minuto.
Anne cruzou a sala e caminhou por um corredor largo e frio. Passaram por uma porta dupla com duas pequenas janelas de vidro, viraram à direita e ela viu vários leitos separados por tecidos que pendiam de grossos varais de metal. Sophie estava diante dela, entre um homem idoso e um jovem muito magro. Não lhe interessou saber nada sobre eles.
Caminhou lentamente, contornando a cama, apertando as mãos contra o peito. Sophie tinha os olhos fechados num sono profundo. O som dos aparelhos era desconfortável e fez Anne lembrar-se de Elena. Expulsou veementemente os pensamentos da sua mente.
Sophie tinha os braços estendidos ao lado do corpo. Estava pálida e Anne passou os nós dos dedos em seu rosto, num sorriso molhado pelas lágrimas. Desceu a mão e pegou os dedos de Sophie, desmaiados. Por alguma razão, tinha receio de tocá-la de verdade, como se pudesse ferir a sua fragilidade. Afastou também este pensamento.
Sophie não era frágil, e estremeceu em pensar que ela poderia ter uma sequela grave e permanente.
— As sequelas são para sempre? — indagou Anne em sussurros, temendo que Sophie pudesse ouvi-la.
— Algumas vezes, não. Temos que esperar — Brandon ainda mantinha o braço ao redor da cintura de Anne, amparando-a.
Os olhos de Sophie se mexeram rapidamente sob as pálpebras e Anne inspirou assustada, virando-se para Brandon de sobressalto.
— Ela está… sonhando? — indagou aflita.
— Pode ser — respondeu vagamente.
Sophie estava sonhando. Sonhava com Thomas, sonhava com sua mãe, sonhava com Anne e se debatia para acordar, porque seus sonhos não eram reais e ela precisava agir. Precisava sair daquele sonho e entrar em contato com Thomas novamente. Sophie precisava salvar a sua mãe, tinha que encontrá-la e, afastando as falsas imagens que vinham à sua mente, evocava Thomas, o verdadeiro Thomas, mas sua mente era uma névoa densa e sentia-se entorpecida. Não, eu preciso sair daqui!
— Por que ela está dormindo? — questionou Anne, confusa.
— Demos um sedativo a ela. Sophie precisa descansar, só isso. Não se preocupe.
— Ela não está….
— Em coma? — perguntou Brandon relaxado e Anne não teve sequer coragem de confirmar. — Não, ela está bem, eu já disse. Você não acredita em mim? — perguntou, puxando-a ligeiramente mais perto do seu corpo e Anne não respondeu. Talvez não confiasse. Não como médico, mas isso não importava em nada, agora.
— Até quando ela vai dormir?
— Só mais algumas horas. Eu já vou pedir para providenciarem um quarto para ela. Você pode esperar lá — e justificou-se. — Não posso deixar você ficar mais tempo aqui. Tudo bem? — perguntou, afastando-lhe os cabelos do rosto e beijando-lhe suavemente a têmpora direita. Anne ficou confusa com a demonstração de carinho, mas não quis pensar sobre isso.
— Tenha bons sonhos, Sophi — sussurrou Anne em seu ouvido enquanto se inclinava sobre Sophie e lhe dava um beijo doce na testa. — E volte logo para mim, por favor — concluiu, apertando os olhos.
Sophie continuava a sua luta interna contra o torpor e a demência que assaltavam sua mente. Acorde, Claire. Acorde! — Onde você está Thomas? — Aqui, bem do seu lado. Por favor, acorde! — Eu não consigo, não tenho forças! — Concentre-se. A força em sua mente é maior do que você imagina. — E Sophie concentrou-se, focalizou a sua mente, tentou evaporar a neblina à sua frente, mas sentiu-se esgotada. — Claire, não temos muito tempo, preciso levar você até ela! — Eu não consigo Thomas! — Você tem que conseguir! Droga, eles deram remédio demais pra você. Eu não consigo entrar, não consigo te mostrar. Merda, merda! — Thomas! — Claire, a mente dela está se fechando para mim. Está se fechando! Você precisa entrar, agora! — Eu não consigo! Thomas, me ajude!
Quanto mais Sophie se esforçava para se concentrar, quando mais se esforçava para contatar Thomas, mais suas artérias se dilatavam, tornando-se cada vez mais finas e perigosas. Sem que ela soubesse, enquanto tentava salvar a sua mãe, arriscava a própria vida. Enquanto tateava cegamente através da bruma que se apoderava de sua mente, Sophie se aproximava da borda entre o consciente e o inconsciente, que ela via como uma tênue parede, uma fina queda d’água; e ela soube que, se a tocasse, riscaria de emergir da sua mente e perder o contato com Thomas. Se ficasse, poderia perder tempo demais procurando-os.
Thomas, eu vou até vocês, fisicamente, você entende? Me diz onde ela está! Eu pego o primeiro avião — E Thomas lhe respondeu ao longe. — Ela está no hospital… — mas antes de concluir a mensagem, a névoa se desfez e Sophie sentiu como se caísse em um buraco profundo.
— Thomas…! — gritou com sua voz forte ecoando pelas paredes imaculadas de um quarto silencioso cheirando a eucalipto.
— Sophi! Está tudo bem! Eu estou aqui! — disse Anne com voz morna e aveludada.
— Não, não, não… — murmurava Sophie, agitando a cabeça e fechando novamente os olhos.
— Sshh… está tudo bem! — acalmou Anne, levando o dedo ao botão chamando a enfermeira.
— Não, eu tenho que voltar. Eu preciso falar com Thomas, preciso salvar a minha mãe… — Anne olhou chocada para Sophie sem saber o que fazer ou dizer, apenas chiou.
— Sshhh……. — acariciou os cabelos de Sophie que abriu os olhos fitando-a. Eram de uma profundidade assustadora e suas pupilas se dilataram quase engolindo Anne por inteiro.
Sophie pegou o braço de Anne com sua mão direita com tanta força que Anne fez uma careta de dor.
— Eu preciso voltar, Anne. Thomas ia me dizer onde minha mãe está! Se eu não conseguir falar com ele AGORA, ela vai morrer! Você entende? — falou Sophie com os dentes cerrados e sua mão ainda estraçalhando o braço de Anne.
— Sophi, você está me machucando, calma, por favor… — maldita enfermeira que não chega!
Sophie piscou repetidamente e suas pupilas recuaram ao mesmo tempo em que aliviava a pressão sobre o braço de Anne que voltava a respirar.
— Eu… desculpe, Anne, desculpe… — olhou em volta com o cenho franzido e perguntou. — Onde nós estamos? — e imediatamente se deu conta. — Oh, não. Hospital de novo! — fechou os olhos novamente, inspirando profundamente.
— Você passou mal, acho que enquanto dormia, não sei… eu entrei no quarto e… — e Sophie se lembrou. O copo de água, a dor, ela nos braços de Thomas… oh, não, Thomas, preciso sair daqui.
— Anne, me escute, por favor! — implorou. — Acredite em mim, ok?
Anne assentiu com a cabeça, embora seus olhos estivessem aterrorizados. Estava ao lado de Sophie, tão próxima que suas respirações se acoplavam. Sophie tentou ser mais sucinta possível.
— Eu dormi. Vi Thomas. Ele é meu irmão. Nossa mãe está morrendo. Ele disse que só eu posso salvá-la. Ele tentou me levar até ela, mentalmente, mas alguma coisa deu errado. A mente dela se fechou ou está se fechando, eu não sei — Sophie não queria parecer confusa, queria e precisava que Anne acreditasse nela e a ajudasse. — Eu tenho que encontrá-la. Você entende? — Anne balançou a cabeça. — Eu preciso me conectar com Thomas novamente. Ele vai me dizer onde ela está!
— Com licença? — interrompeu uma enfermeira magra e feia. Tinha os dentes muito grandes e salientes, a pela branca e os olhos negros, como os cabelos. Anne e Sophie continuavam imóveis em uma conversa pausada.
— Eu preciso que você me ajude a sair daqui! — rangeu entre os dentes.
Anne olhou-a com pavor. Não podia fazer isso. Não podia tirar Sophie do hospital, de jeito nenhum! Mas não podia lhe dizer isso. Estava realmente em um beco sem saída. Seus olhos a denunciaram e Sophie apertou novamente o seu braço num desespero incontrolado.
— Por favor, Anne, me ajude! — e a enfermeira desprovida de beleza continuou alheia a …. ao que fosse que estivesse acontecendo entre Anne e Sophie.
— Com licença! Preciso examinar a paciente — anunciou, aproximando-se desajeitadamente da cama.
Anne piscou para Sophie e virou-se para a enfermeira.
— Claro, fique à vontade — Sophie olhou sobre os ombros da enfermeira para Anne que lhe fez um gesto para esperar.
Sophie se agitou na cama e a enfermeira a olhou com reprovação enquanto tentava medir-lhe a pressão. Sophie afundou a cabeça no travesseiro com raiva e fechou os olhos, rezando para que Anne tivesse um plano e que ele fosse rápido e eficiente. Mas Anne estava apenas ganhando tempo, pensando em como sair daquela situação.
Queria que Brandon estivesse ali. Mas não estava… somente Jesse, do lado de fora do quarto. Merda! Jesse! Ele não pode entrar aqui, Sophie vai ter um ataque! Tarde demais. Jesse entrava silenciosamente às suas costas e Anne perdeu a cor quando deu meia volta e quase trombou com ele já dentro do quarto. Virou-se imediatamente para Sophie e ela ainda mantinha os olhos fechados. Empurrou Jesse para fora, mas Jesse falou. Ele tinha que falar!
— Eu preciso vê-la, Anne! — embora sussurrasse, sua voz reverberou pelas paredes do quarto e Sophie virou-se lentamente para eles enquanto a enfermeira pouco formosa sorria para ninguém e dizia para si mesma.
— Está tudo bem. Se precisar me chame, está bem? — e saiu tão invisível quanto entrou.
— Sophie… — balbuciou Jesse, aproximando-se lentamente da cama temendo zangá-la ou feri-la. Jesse estava atordoado. — Como você está? — tentou pegar-lhe a mão, mas Sophie recusou respondendo em uma voz imperturbável.
— Estou bem Jesse — e praticamente ordenou. — Você poderia nos dar licença, por favor? Eu preciso falar com Anne — permaneceu impassível, olhando Anne atrás dele. Jesse se virou e fez mil perguntas a Anne com o olhar, mas ela só sorriu de volta. Um sorriso enigmático e suplicante. Jesse franziu a testa e saiu fechando a porta.
Do lado de fora, pediu para a enfermeira chamar Brandon, urgente!
— Então, você vai me ajudar? — perguntou Sophie perdendo ligeiramente o olhar ameaçador.
— Sophi, eu… — oh, céus, o que eu respondo agora? Engoliu e continuou. — O que você quer que eu faça? — e Sophie respondeu sem pestanejar.
— Me ajude a conectar-me com Thomas. Preciso que você tranque aquela maldita porta e não deixe mais ninguém entrar — Anne não podia fazer isso, mas não tinha como lhe dizer. — Você pode fazer isso por mim? Por favor, Anne! — os olhos de Sophie estavam de volta, suplicantes, dóceis, indefesos, mas determinados. — Ela vai morrer se eu não fizer nada, Anne. Estamos perdendo tempo, aqui!
Anne queria lhe perguntar tantas coisas, a começar, o que fazia ela confiar e acreditar em Thomas daquela maneira? Mas Sophie não lhe responderia e ficaria ainda mais furiosa, ela tinha certeza disso. E Anne arriscou.
— Eu faço o que você quiser, mas primeiro, vai me dizer por que você acredita no que Thomas mostrou a você — Sophie inspirou e lhe disse.
— Anne. O meu nome é Claire. EU sou a Claire… Thomas me contou e isso basta pra mim. — Sophie mantinha uma calma anormal, mas era só aparência. Ela precisava que a amiga confiasse nela. Precisava se controlar e relaxar para encontrar Thomas em sua mente. Ou através da sua mente.
O telefone de Anne tocou e ela, mais que depressa, atendeu, olhando fixamente para Sophie. Ela acreditava, sempre acreditou em tudo o que Sophie lhe dissera, só não estava preparada para colocar a vida da amiga em risco. A única pessoa que ela protegera em sua vida!
— Ah, bom dia, Paul…. sim, ela está bem… hã.. acho melhor não, ela está muito cansada — e Sophie lhe deu um sorriso cheio de cumplicidade. — Ah, jura? Que ótimo!
— Anne sorria tensa, caminhando em volta da cama com os olhos mirando o dia nublado pela janela à sua frente. — Ahã… ahã… — parou subitamente. Virou-se para Sophie com olhos fixos. Sem sorriso. — Você pode repetir, por favor? …. Tem certeza, Paul?
— Sophie olhava para Anne intrigada, ansiosa, agitada. — Eu digo a ela… obrigada, Paul — a voz era tênue e foi desaparecendo antes mesmo de terminar a frase. Desligou.
— O que foi, Anne? O que ele disse? — Sophie sentia a fisgada no estômago de novo.
— Ele disse que tem o nome da menina que desapareceu, na África.
— E…?
— Ela se chama Claire… Claire Mitchell — Anne não sentia as pernas. Sophie nem sequer esboçou espanto. — Ele achou que você gostaria de saber por causa da sua… você sabe, da sua visão… do nome…
— Você acredita em mim, agora? — perguntou magoada e esperançosa.
— Eu sempre acreditei em você, Sophi. Sempre! — Sophie sorriu complacente. Levou as mãos ao rosto… ou melhor, tentou levar. A sua mão esquerda não funcionava. Jazia morta ao lado do corpo. E os dedos… mal movia os dedos. Levou a outra mão à boca contendo o espanto, o choro, a náusea. Oh, não. O que aconteceu comigo? E entendeu que Anne não duvidava dela, tinha receio por ela. Fechou os olhos e suspirou.
— Oh Anne, você sempre tão… — desabou em lágrimas e Anne veio ao seu encontro mais rápido do que o pensamento.
— Calma, Sophi. Isso vai passar. Vai passar! — sussurrou Anne em seus ouvidos, envolvendo a cabeça de Sophie em seus braços, contendo o choro. — Vai passar… mas você precisa descansar, Sophi. Por favor, você precisa descansar. Eu não posso… eu não posso perder você — e apertou-a com mais força.
— E eu não posso perder a minha mãe, Anne. Ela nunca me abandonou. Ele me tirou dela. Me tirou da minha mãe e me levou para aquele inferno! Ela sofreu, Anne. Sofreu tanto a minha ausência, você não tem ideia! Eu vi, eu a vi, tantas e tantas vezes em minhas visões — Sophie começou a falar sem pausa, sem respirar ou dar tempo para
Anne interrompê-la. — Vi quando o seu coração foi arrancado, como ela se sentiu quando ele me tirou dela — Sophie ergueu os olhos para Anne. Tinha que fazê-la entender. — Vi quando ela tentou me proteger do meu pai… a visão da floresta, era ela, me protegendo dele, o tempo todo! Vi quando ela estava na cama do hospital lutando para sobreviver e ela ainda está lá! — seus olhos suplicavam para que Anne a ouvisse e a ajudasse. — Ouvi a sua voz me chamando, tantas e tantas vezes, mas eu não sabia! Eu era tão fechada em mim mesma, em meus rancores e pré-julgamentos que não percebi! — Anne não segurava mais as lágrimas. — Era a minha mãe, Anne… e o meu irmão! Ele sofreu tanto quando era pequeno, sofreu por minha causa, sofreu porque ela nunca pode dar a ele o que ele merecia, o amor de mãe, porque estava machucada demais sentindo a minha falta! Mas Thomas foi tão corajoso, tão forte! Ele conseguiu enxergar tudo isso e agora ele precisa de mim! — Anne enxugava as lágrimas. — Eu preciso ajudá-los, Anne. E eu preciso de você, por favor!
— Mas Sophi — murmurou Anne — você pode …
— Morrer? — completou Sophie e Anne assentiu com a cabeça. — Ah, Anne… se eu não ajudá-la, se eu não tentar alguma coisa, eu vou perdê-la e, depois disso, morrer vai ser o meu maior desejo.
— Oh Deus, por que? Por que? — se questionava Anne com o rosto afundado entre as mãos.
— Anne, estamos perdendo tempo — disse Sophie enxugando as lágrimas, tentando ignorar que o seu braço esquerdo não se movia, e não lhe interessava.
A porta do quarto se abriu abruptamente com Brandon entrando a passos largos, mas parou poucos passos depois. Anne e Sophie estavam envoltas em algo que ele não soube definir. Amor? Resignação? Dor? Atrás dele, Jesse as encarava, consternado. Anne sabia que tinha que agir, não desapontaria Sophie. Mesmo que fosse a última coisa que faria por ela! E arrancou as palavras de algum lugar desconhecido.
— Brad, Jesse…. — olhou para Sophie com compaixão e coragem. — Sophie precisa descansar, agora — inclinou-se, beijou-a demoradamente na testa e sussurrou-lhe. — Boa viagem, minha irmã. Boa sorte e volte logo — cerrou os olhos e repetiu. — Volte logo, por favor! — Sophie sorriu de volta e disse — Eu sempre volto.
Anne levou um tempo para se destacar de Sophie. Caminhou e levou Jesse e Brad para fora do quarto com ela, fechando a porta. Deixou para trás a sua melhor amiga e companheira para um perigoso mergulho que poderia levá-la à morte e, estranhamente, sentiu-se em paz. Uma calma quente e aconchegante abraçava-a por dentro.
— O que foi aquilo lá dentro? — perguntou Jesse confuso. Anne evitou os olhos dele abraçando-se nervosamente e disse com toda a sinceridade.
— Apenas emoção, Jesse — respondeu Anne de costas para a porta como um guarda costas. — Ela está muito emotiva, mas está bem — virou-se para Brandon e continuou com sua encenação quase perfeita. — A enfermeira já esteve aqui e nos disse que está tudo normal com ela — tinha que ser mais convincente, pensou. — Sophie me pediu apenas para não ver ninguém. Ela acabou de descobrir que perdeu os movimentos do braço, Jesse! Dê um tempo a ela… — achou que tinha sido suficiente. Se forçasse um pouco mais da sua capacidade, desabaria ali mesmo.
— Anne tem razão, Jesse. Deixe-a descansar, está bem? — falou Brandon dando tapinhas nas costas de Jesse que encarava Anne com olhos desconfiados.
— Ok, mas eu fico aqui com você — Anne franziu os lábios, olhando para o lado, e resmungou.
— Não, Jesse. Sophie não quer ver você — mentiu, nem tanto, mas não deixou de sentir pena dele.
Jesse baixou os olhos, irritado, e saiu caminhando perdido pelo corredor. Anne deu uma olhada a Brandon sugerindo que ele fosse falar com Jesse e ele foi. Anne voltou a respirar com o coração que palpitava na garganta. Virou-se e abriu a porta do quarto lentamente rezando para que Sophie estivesse bem.
Caminhou tão silenciosamente quanto pôde, olhando fixamente para a amiga deitada na cama. Parecia tão serena, se não fossem pelos olhos agitados sob as pálpebras.
Anne sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo e temeu ter feito a coisa errada. Temeu que nunca mais visse Sophie viva, novamente. Uma náusea desconcertante virou seu estômago do avesso. Sentou-se na poltrona ao lado da cama e ficou observando Sophie sem ao menos piscar. Ela parecia dormir profundamente.
Dormia?
Sophie caminhava na escuridão de sua mente chamando por Thomas. O negro vazio já não a assustava mais. Os olhos estavam já habituados a enxergar no escuro, ver as ondulações e as cores que lentamente iam se formando. Viu baús abertos, fotografias e diversas paisagens como se estivesse em um set de filmagens. A diferença é que os seus cenários lhe pareciam reais e palpáveis em todas as suas nuances.
Passou pela úmida floresta e avistou a pequena casa abaixo na colina onde, outrora, morara um lenhador com a esposa e a filha. A casa estava estranhamente abandonada com musgos rastejando pelas paredes. A tensão não existia mais, mas a lembrança continuava viva, como uma impressão permanente.
Seguiu entrando pela rua empoeirada e vazia. Não havia mais a mulher na outra calçada nem os carros que se acotovelavam uns aos outros ou a criatura ameaçadora de dedos longos sob um longo manto negro.
Sophie ultrapassava um a um dos antigos cenários que povoaram a sua mente, e nada de Thomas. Thomas! Onde você está! Não o encontrou nem mesmo na rua de chão batido nem dentro dos livros de biologia. Thomas tinha desaparecido de sua mente e Sophie sentiu uma ligeira fisgada em algum lugar muito profundo. Imediatamente teve uma intuição. Forçou a sua mente o quanto pôde. Se ele não estava com ela, ela iria até ele. Entraria na mente de Thomas. A sua única ligação com ele era a mãe.
Concentrou-se no hospital onde a viu deitada, entre a vida e a morte. Começou a sentir os rumores das macas que eram empurradas apressadas de um lado para o outro. O cheiro de sangue e poeira misturado ao éter e álcool. Concentrou-se mais e mais até que a fisgada em sua mente apagou tudo novamente em uma dor aguda e profunda.
Sentiu-se fraca e a sua mente foi tomada novamente por uma névoa avermelhada. Não, outro derrame, não por favor! Concentrou-se novamente e, desta vez, voltou ao hospital quando conheceu Paul e foi como se alguém apertasse a tecla fast-foward do seu controle remoto mental. Paul chegou rápido, abaixou-se, sentou ao lado de uma pequena Sophie que caiu e sentou-se novamente e tudo parou. Sophie virou a boneca Lucy no seu colo muito lentamente, em câmera lenta. Abriu o buraco nas costas de pano e tirou uma pequena foto. Apertou-a nas mãos e a fitou com olhos tenros. O pequeno pedaço de papel saltou em sua mente ampliando-se duas, três, quatro vezes até se tornar um quadro gigante à sua frente. O rosto de sua mãe sorridente, com cabelos escuros e olhos verdes e divertidos, como os de Thomas, sorria para ela. A mesma foto que, imprudentemente, havia jogado na privada. Sentiu um gosto amargo do remorso em sua boca, mas não queria se culpar, não agora. Tinha errado em seu julgamento, mas não podia se culpar!
Mãe… a palavra lhe soou estranho, mas tentou novamente. Mãe…. e novamente… mãe…. — e de novo, com mais intensidade.
— MÃE!!!!
Gritou com todo o ar de seus pulmões, esgotando uma vida de aflição, desejo, sofrimento, esperança e mágoa. A palavra, que poucas vezes pronunciara, chicoteava como uma esfera metálica em todos os cantos e angulações da sua mente numa trajetória incerta enquanto Sophie fazia um esforço enorme para acompanhá-la com o olhar e com seus passos rastejantes.
Sua perna esquerda mal se movia, seu braço pendia lateralmente e Sophie sabia que estava perdendo o controle do seu corpo físico. Algo havia acontecido com ela fora da sua mente, estava pior, estava limitada, estava fraca e morrendo.
Pensou em Anne e temia que não cumprisse com a sua promessa. Talvez, realmente, não pudesse voltar, mas não importava mais, tinha que manter a concentração ou perderia as duas para sempre e gritou novamente, com o pouco de força que lhe restava:
— MÃÃÃEEEE….!
Mas, desta vez, a sua voz não ecoou. Estava em um ambiente tão fechado e protegido que o som não se propagou. Cheirava a água de colônia e shampoo como banho fresco e era de um morno acolhedor. Sentiu vontade de deitar-se encolhida e abraçar a si mesma naquela sensação uterina deliciosa.
Mãe… apenas sussurrava. Mãe, por favor, não morra.
Ouviu passos delicados se aproximando e todas as suas terminações nervosas se encheram de luz, quando uma voz macia lhe chamou:
Claire? É você?
Sophie sentiu as palavras lhe beijarem os ouvidos e levantou-se agilmente sobre os pés olhando em volta ansiosamente. O cansaço e a fraqueza tinham ido embora. Sentia-se plena de alguma coisa. Plena de felicidade.
— Claire… oh, meu bebê… é você mesmo?
— M-mãe? O-onde você está? — gaguejava em sua emoção.
— Bem aqui, meu bem. Bem aqui…. — o sussurro criou uma brisa em sua nuca e Sophie parou, sentindo todos os pelos do seu corpo se eriçar. Tentou dar meia volta, mas seus pés pareciam fincados no chão e cerrou os olhos.
A brisa lhe acariciou novamente a nuca vindo para frente, tocando-lhe o queixo e envolvendo todo o seu maxilar. Quando Sophie abriu os olhos viu, bem diante dela, o que mais parecia um anjo. Não foi capaz de dizer nada nem de se mover. Lágrimas quentes riscavam sua face em linhas trêmulas morrendo no canto de sua boca.
— Não chore, meu amor. Não chore… — Sophie engolia uma saliva salgada e seus lábios se abriram vagarosamente em um sorriso sofrido enquanto suas pálpebras tremiam sem piscar. — Você é tão linda! Tão linda e perfeita! — disse o anjo à sua frente com olhos verdes esmeralda brilhantes e lábios em uma meia lua bem desenhada. Tinha os cabelos escuros e ondulados como os seus. A pela clara e os traços igualmente delicados. Parecia sua imagem projetada no futuro, mas muito mais bonita.
— M-mãe…? — balbuciou Sophie ainda com os braços largados ao lado do corpo. Um grande sorriso se abriu iluminando ainda mais aquele rosto perfeito à sua frente.
— Sim, querida, sou eu! … E você está aqui! — Sophie sentiu dois braços envolvendo-a com força, num abraço diferente de tudo o que já havia sentido em toda a sua vida. Envolvia o seu pescoço, mas sentia o calor emanar por todos os seus poros aquecendo-a como uma gigante capa protetora. E Sophie abraçou-a com ânsia e lágrimas.
— Não chore, meu bebê… — e a voz angelical emitiu um som trêmulo. Sophie sentiu pequenas gotas quentes caírem em seus ombros. — Eu sinto muito, meu anjo. Sinto tanto, tanto! — esforçava-se para controlar o pranto que emergia desenfreado. — Foi tudo culpa minha — Sophie ainda tinha os olhos apertados. Não queria ouvir, não precisava de explicações, só queria senti-la por inteiro e ficar assim para o resto de sua vida. — Ele era bom, sabia? Mas depois, eu não sei o que aconteceu… — sufocou o choro afundando a cabeça entre os cabelos de Sophie.
— Não, mãe. Não precisa me dizer nada… — sussurrou Sophie afastando-se ligeiramente. Queria olhá-la nos olhos, queria tantas coisas! — O que passou, passou.
— Não Claire, eu preciso que você saiba. Eu preciso do seu perdão! — disse ela recuperando um pouco da firmeza na voz, afastando-se completamente, segurando as mãos de Sophie nas suas. — Eu preciso, você entende? — Sophie sentiu que era importante para ela e assentiu, fazendo sua mãe suspirar profundamente, pronta para lhe contar uma história antiga, sofrida e verdadeira. — Seu pai e eu… eu o amava. Ele era bom, gentil e carinhoso — sua voz era macia, mas cheia de angustia. — Mas logo que você nasceu ele ficou obcecado, não sei por que, mas ele ficou inseguro, irritado, estava sempre nervoso e bebia. Bebia muito — Sophie sabia bem o que era isso. — Eu fazia de tudo para que ele não se zangasse, mas nada do que eu fazia era bom o bastante para ele. Ele começou a ficar violento comigo — seu olhar se perdeu no passado e voltou triste. — Mas não com você. Ele te amava tanto! — baixou os olhos novamente — Eu me sentia sozinha dentro de casa. Vocês dois eram tão ligados! Você o adorava e ele era louco por você e eu… foi quando eu errei… eu me apaixonei por outro homem — disse envergonhada. — Peter era meu colega de trabalho na faculdade. Dávamos aulas praticamente nos mesmos dias e ele me viu várias vezes chorando, me consolava e me ouvia… — ergueu os olhos e sentiu-se encorajada, porque Sophie não mudara a sua expressão. Ainda estava ali, olhando-a com ternura, e continuou. — E eu engravidei de Thomas — seus olhos ficaram tímidos e assustados.
— Eu queria pedir o divórcio, mas tinha tanto medo! Medo por mim, medo por você, medo pelo bebê que crescia dentro de mim. Mas ele descobriu e me expulsou de casa com muita violência — os olhos se inundaram de dor, mas ela continuou com o relato, como se lutasse contra o tempo. Tinha pressa e acelerou a voz. — Eu tentei falar com ele, tentei fazê-lo se acalmar, mas ele estava intransigente. Pedi para que me deixasse ver você e ele disse que deixaria, mas que precisava de um tempo para aceitar a situação. Foi quando… quando… — seus olhos se encheram de terror. As sobrancelhas se uniram formado rugas profundas na testa e os lábios se contorceram. — Foi quando ele levou você de mim, pouco depois do seu aniversário. Você tinha três anos, era um bebê, o meu bebê, mas ele quis me punir — soluços subiam em ondas dentro do seu corpo se misturando com as palavras em sua boca. — Eu procurei por você, Claire! Procurei tanto! Fui à polícia, mas não me ajudaram. Ele era um policial! Preferiram protegê-lo! E, naquela época, isso era muito fácil — seu tom era revoltoso e Sophie só podia sentir pena, remorso e medo de perdê-la, de não poder compensá-la por todo aquele sofrimento, por tê-la julgado tão erroneamente. O relato continuava, carregado de intensos sentimentos que Sophie sequer poderia imaginar. — Fui aos jornais, televisão, rádio; espalhei fotografias suas por todos os cantos! Mas não encontrei você, meu bebê. Me desculpe, me desculpe!!! — caiu em prantos e Sophie precisou pegá-la para que ela não caísse. Queria lhe dizer para esquecer, para se perdoar, mas não sentia força suficiente para interrompê-la. — Peter cuidou de mim. Cuidou o tempo todo. De mim e de Thomas. Eu preferia morrer a viver naquela dor. Sem você, sem o meu bebê… — passou as mãos pelo rosto de Sophie banhado de lágrimas e suas mãos eram quentes e macias. — Não chore, meu anjo — sorriu para Sophie enquanto seus olhos entristecidos piscaram compulsivamente. — Ah, pobre Thomas, ele queria tanto o meu amor! E eu o amei, desde o primeiro dia em que ele surgiu dentro de mim, eu o amei tanto! Mas a minha dor era maior e eu não pude … não consegui com que ele se sentisse amado — disse em tom carregado de remorso. — Até que um dia, a cidade estava caótica com infindáveis conflitos e eu estava deprimida, distante e distraída. Tive um… problema… e sofri o acidente com o carro — baixou o tom da voz nostálgica. — Ah… se eu pudesse voltar atrás, se eu pudesse mudar as coisas… Eu estou cansada, Claire — suspirou — Estou tão cansada…
Então, uma voz suave surgiu ao longe e ambas se viraram.
— Eu sei que você me ama, mãe — era Thomas com seu sorriso doce.
— Oh, Thomas! — exclamou Emilie rendendo-se ao olhar meigo e gentil do filho. — Eu sinto tanto por você. Por vocês dois! — olhava pra ambos com a mesma doçura. — Eu queria ter sido uma mãe melhor… me perdoem! — as lágrimas voltaram a cair e Sophie saiu da sua mudez complacente.
— Mãe. Por favor, não se torture mais. Eu estou bem! Thomas está bem! — queria lhe dizer mais do que isso, mas Thomas interrompeu-as novamente, já ao lado delas.
— Mãe, olhe à sua volta. Sabe onde estamos? Sabe por que estamos aqui? — perguntou ele com a costumeira voz calma e quente. Emilie olhou à sua volta com olhos infantis. — Estamos aqui, juntos, por sua causa! Você nos ensinou isso. Você nos uniu mãe. Você e o seu infinito amor por Claire e por mim! — falou enfaticamente. — Você me fez te encontrar, me fez enxergar o que nem você via. E Claire… — virou-se para Sophie — você esteve com ela, o tempo todo! Aqui… — pousou delicadamente a sua mão no peito de Emilie — e aqui… — levou a mão suavemente sobre a testa de Emilie.
Sophie estava comovida, entorpecida de tanto sentimento, de tanta doçura, diferente de tanta dor e horror que vivera antes em sua mente e sabia que tinha que dizê-lo. Sabia que ela precisava ouvir, precisava saber.
— Eu perdoo você, mamãe — em sua voz havia algo além da ternura. Além de qualquer sentimento conhecido. Sua voz irradiava um calor envolvente e verdadeiro e Emilie sorriu. Passou os olhos de Thomas para Sophie e toda a sua angustia foi se dissolvendo. Emilie se sentia pronta, finalmente. Depois de dois anos da constante tortura silenciosa em seu coma, Emilie sentiu que podia seguir em frente. Foi se afastando lentamente com passos suaves para trás com um brilho intenso no olhar e sorrindo… em paz.
— Meus filhos… meus lindos e amados filhos. Eu amo vocês, com todo o meu coração
— olhou para Thomas, e sua voz angelical lhe fez um último pedido. — Diz ao seu pai que eu o amo muito! Diz a ele que sou grata por tudo… — Thomas sorriu com tristeza.
— Obrigada, Claire. Obrigada, Thomas. Obrigada por seu perdão… — sua figura foi se dissipando ao mesmo tempo que sua voz foi se tornando menos nítida. — Eu estarei sempre com vocês — e Emilie se foi, deixando Thomas e Sophie em pé, lado a lado, de mãos dadas, olhando o vazio à sua frente.
A atmosfera quente se desfazia e Sophie chorava baixinho sentindo que o vazio dentro dela jamais seria preenchido novamente. Por alguns minutos, sentiu-se plena e amada. Lutou para não se revoltar contra a imensa solidão que se instalava dentro dela. Thomas se voltou para Sophie e seus olhares se cruzaram num sentimento mútuo de compaixão e solidão. Sophie vacilou. Voltava, pouco a pouco, a sentir os nervos sob a pele arderem em chamas. A névoa avermelhada estava voltando assim como as dores de cabeça e o peso no lado esquerdo do seu corpo. Thomas a amparou em seus braços e disse suavemente.
— Agora, vamos cuidar de você, minha irmã — pegou-a em seus braços e levou-a a uma cama, pousando-a delicadamente sobre os lençóis brancos e frios. — Você vai acordar agora, Claire. E vai se cuidar muito bem! — deu-lhe um beijo quente no rosto e sussurrou em seu ouvido, apertando os olhos, deixando cair uma lágrima luminosa. — Mamãe está em paz, agora e tudo graças a você. Obrigado! — cerrou os olhos, liberando mais uma lágrima quente e cintilante. — Nos veremos em breve — sua voz sumiu nas últimas palavras. — Sophie fechou os olhos, exausta e dolorida. Sentia o ar frio em seu rosto e sons conhecidos invadiram sua mente.
Beep, beep, beep…
— Doutor, ela está acordando — falou baixinho uma voz feminina jovem, enquanto passos apressados chiavam pelo pavimento.
— Sophie? Sophie? — Sophie ergueu as pesadas pálpebras e viu apenas vultos em uma luz branca muito forte. — Ah… Anne vai gostar de saber disso… — murmurou Brandon sorridente.
Sophie fechou os olhos novamente engolindo as últimas lágrimas não choradas. Tinha acabado de se despedir da sua mãe. Não sabia há quanto tempo estivera desacordada e não ligava a mínima. Imaginava que tivesse tido outro derrame e não se importava. Estava em um luto profundo em sua alma.
Em seus vinte e sete anos, jamais tinha tido um contato com sua mãe. Passou quase toda a sua vida pensando nela como uma coisa não nominada que a abandonara com um pai violento e desumano. E isso tinha que mudar em sua mente. Seria difícil perdoá-lo e não sabia nem se queria. Nada pode justificar os maus tratos que sofrera, nem mesmo uma desilusão amorosa, nem mesmo a perda da esposa que amava. Mas não queria continuar carregando este rancor para o resto de sua vida. Tinha que pensar que tivera pais imperfeitos, e basta. Agora, podia deixar o passado para trás; parar de se punir e plantar um futuro diferente. Dependia somente dela e ela conseguiria. Não tinha dúvidas do quanto era capaz.
Deixou o ar frio e estéril entrar pelas suas narinas limpando as nuances cinzas da sua mente. Repetiu silenciosamente as palavras de sua mãe. Todas elas. Alimentava-se da sua coragem e determinação para seguir em frente. Sophie era o que era graças a ela, à sua mãe, a Emilie! E era grata por isso. Obrigada, mamãe! Exclamou em algum lugar em sua mente e sabia que ela ouviria. Sabia que ela sempre a ouviria.
E caiu num sono profundo, novamente. Um sono pesado e vazio. Apenas um descanso merecido.

bruno

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