19 de abril de 2024
Erika Bento

As vidas de Sophie: Capítulo 22

capa livro 1
Fechou a porta atrás de si sem se virar, esquadrinhando o hall de entrada. As cores lhe eram familiares. Demasiadamente familiares. É este o quarto! Meu Deus vai ser aqui. Tudo vai acontecer neste lugar!
Sophie fechou os dedos em punhos para conter o tremor. As paredes verde-escuras com os padrões de largas listras pretas; as luminárias douradas fixadas à parede e o teto rebaixado davam uma sensação de um requinte intimidador como a própria dona. À sua frente, ao fundo do vestíbulo, havia duas poltronas cor manteiga com uma pequena mesa redonda entre elas. Na parede havia um nu impressionista iluminado por uma luz direta. A única luz acesa no ambiente de cerca de vinte metros quadrados.
Do lado esquerdo, uma grande porta dupla de correr − que provavelmente daria acesso ao quarto − estava entreaberta. Pela pequena fresta passava uma luz morna que invadia o hall como uma folha fosca de claridade.
Sophie deu apenas dois passos e sentiu uma respiração quente e ritmada atrás dela; o tempo pareceu parar. Ela se virou e encarou, com espanto, a pessoa atrás dela. O choque a impediu de notar o lenço embebido em éter que vinha ao seu encontro; sentiu apenas um empurrão forte que fez com que o corpo de Sophie fosse jogado para trás, chocando-se contra o beiral da porta do quarto. Sentiu os pulmões serem espremidos. Ficou sem ar por alguns segundos e em seguida, o lenço gelado e com cheiro forte foi enfiado em seu rosto cobrindo-lhe o nariz e a boca.
Os olhos de Sophie encaravam a sua agressora e eles viam apenas um par de olhos frios e sem vida encarando-a de volta. Não havia nada que ela pudesse fazer, já sentia os membros amolecerem. Os sapatos e a máscara se soltaram de sua mão. O cheiro forte e estéril rastejou para dentro do seu corpo, entorpecendo o cérebro fazendo-a, lentamente, perder a noção da realidade até não ver mais nada.
Quanto tempo Sophie ficara desacordada era algo que somente uma pessoa saberia dizer, mas ela pouco se importava. Estava ocupada demais armando uma grande cena que lhe tomara mais tempo do que havia pensado. Logo Sophie acordaria e ela precisava deixar tudo pronto. Por fim, arrastou o corpo de Sophie dormente até uma cadeira e amarrou os braços dela aos braços de madeira do móvel. Os pés também foram presos aos da cadeira com lenços fortemente amarrados, deixando Sophie com as pernas ligeiramente abertas.
Estranhamente, as mesmas mãos que prenderam os pés e braços de Sophie sem se preocupar com a pressão do tecido sobre eles, moveram-se com delicadeza ajustando o decote pronunciado do vestido de Sophie, cobrindo-lhe a parte do seio que ficara à mostra no agitar do seu corpo.
Alguns minutos se passaram antes que Sophie recuperasse, pouco a pouco, a consciência. Abriu os olhos piscando-os compulsivamente, como se o bater das pestanas fosse tirá-la mais rapidamente daquele transe. Mmmmm…
gemeu, sentindo dores nos braços e nas pernas. Tentou, inutilmente, se mexer e, não tendo êxito algum, abriu os olhos com mais intensidade. Observou, com horror, os braços atados com braçadeiras de plástico e, imediatamente, ergueu os olhos à sua frente.
Mas o que é isso? Pensou, tentando realinhar mente e corpo. O que vira, entretanto, a fez sentir como se estivesse dentro de sua própria visão, só que desta vez era real. Havia alguém amarrado à cama, alguém que seria torturado e, provavelmente, morto.
— Solte-a, por favor, solte-a! — gritou, em vão. Ouviu uma risada vinda do hall. Agora se lembrava de tudo. Lembrava-se, inclusive de quem a havia agredido.
— Por que? — Indagou, veementemente.
— Porque eu preciso de você — respondeu-lhe uma voz saindo da escuridão. — Preciso de alguém que assuma a culpa.
Sophie não disse mais nada nos trinta segundos seguintes. Ficou apenas observando aquela figura desfilar até ela. Era tão segura dos seus passos, dos seus atos e planos que Sophie teve certeza de que iria morrer. Uma pessoa como ela, capaz de fazer o que havia feito até agora, não hesitava. Havia planejado todos os detalhes para aquele desfecho. Tinha domínio sobre tudo e sobre todos, inclusive sobre Sophie.
— Por que ela? — indagou Sophie, tentando entender a motivação sobre a vítima que já nem se debatia mais. Talvez estivesse morta, pensou.
— Ela? — repetiu a pergunta, com desprezo, como se a pessoa em questão não merecesse nem ser nominada. — Você não sabe nada sobre ela — afirmou, acidamente.
Sophie esticou o pescoço posicionando a cabeça de modo que pudesse ver a pessoa deitada. Embora a poltrona estivesse virada de frente para a cama, ela não conseguia ver o rosto da vítima, coberto pelos cabelos cor de cobre.
— Vamos contar à Sophie a sua verdadeira história? O que você acha? — perguntou à vítima, virando rispidamente a cabeça da mulher pelo queixo, deixando o rosto à mostra.
Sophie  sentiu  o  coração  em  saltos.  Como  eu  pude  ser  tão  idiota…
Lamentou-se silenciosamente, e lágrimas escorreram dos seus olhos para o interior da sua alma. Sentiu uma onda de revolta tomar conta de todos os seus pensamentos.
— Kristen, meu Deus…
— É, eu sei — interrompeu. — Eu te devo uma explicação — começou, enquanto caminhava à sua frente, muito lentamente. — Eu realmente não quero lhe fazer mal, mas não tem outro jeito. Será você ou eu. E, para ser bem honesta, prefiro que seja você a assassina de Alice Collins. — Frisou, como se fosse o título de uma peça teatral.
Alice estava deitada na cama com os braços e pernas presos por algemas de metal ao ferro forjado, como vira tantas vezes em suas visões. Ela ainda usava o mesmo vestido transparente. As aberturas laterais deixavam as pernas à mostra e uma fina cortina caía entre as pernas abertas. O peito subia e descia violentamente, numa respiração descompassada. A cabeça começou a se agitar de um lado ao outro e os olhos aterrorizados encararam os de Sophie, suplicante. A boca de Alice estava esticada forçosamente por uma grossa faixa de pano que a impedia de gritar.
Oh, céus. Era a Alice o tempo todo! Pensou Sophie sem conseguir evitar o sentimento de culpa… Como eu fui estúpida!
— Alice, me desculpe, eu… eu pensei que… — e Sophie virou-se para Kristen, atônita. — Kristen, o que você está fazendo?
Kristen olhou para Sophie. Seus olhos foram se suavizando e uma nuvem de tristeza passou por eles como uma intrusa na cena que Kristen, com algum esforço, conseguiu explusar. Ela respirou fundo com firmeza e respondeu.
— Você não sabe mesmo? Com todo o seu poder de visão, telepatia ou sei lá o que, você jura que não sabe o que essa cretina fez comigo? O que ela fez com a minha família inteira?
— Eu juro que não sei, Kristen… — murmurou Sophie, tentando encaixar todas as peças, sem nenhum êxito.
— Pense, Sophie — falou rapidamente, em tom gutural, caminhando lentamente ao lado da cama, zigzagueando com a ponta de um punhal sobre a perna de Alice que, subitamente, parou de se debater. Sophie sentiu o estômago se contrair. — Minha mãe, meu pai, mas principalmente… o meu bebê… — parou com o punhal no rosto de Alice e Sophie percebeu que as mãos de Kristen tremiam de raiva, de ansiedade e de desejo.
A voz! O lamento! Era ela…
— Você se lembra dele, Srta. Collins? — pronunciou o nome com ranço.
— Lembra-se do meu irmãozinho? — e o tom começou a subir, numa voz mais fina, ligeiramente histérica. — O nome dele era Robert, você se lembra, SUA BÊBADA! — gritou. — Era ROBERT e ele tinha só QUATRO ANOS, sua BÊBADA DE MERDA! — Sophie pensou ver lágrimas escorrendo no rosto de Kristen, mas eram os músculos da sua face que tremiam de ódio. — Você o deixou lá, caído no chão, e fugiu SUA VAGABUNDA! — A ponta do punhal subia e descia perigosamente diante dos olhos de Alice que agitava a cabeça de um lado para o outro, emitindo um som abafado sob o pano esticado entre os seus lábios.
— Você o deixou lá pra morrer nos braços da minha mãe… — Alice arregalava os olhos de pavor.
Sophie sentiu o coração bombear-lhe mais do que sangue nas veias. Enchia seu cérebro de imagens. Cenas de um garotinho muito loiro e gorduchinho, pedalando uma pequena bicicleta na calçada, a cerca de trinta metros à frente da mãe que lhe dirigia palavras de incentivo, num tom alegre e carregado de ternura. No sentido oposto, vinha um carro em alta velocidade e, imediatamente, a mãe o advertiu.
— Rob, querido, espere. — a mãe começou a correr e gritou com a força de seus pulmões. — Fique onde está! — Sophie pôde sentir o coração de Kristen se apertar, observando a cena de dentro da janela do seu quarto no segundo andar da casa. O carro, de repente, desviou a direção e subiu na calçada, como se a motorista tivesse dormido ou se abaixado para pegar alguma coisa e, simplesmente, não tivesse notado à rua à sua frente e muito menos que desviava o curso do carro e ia diretamente para a calçada, em alta velocidade. A mãe de Kristen soltou outro berro, a poucos metros do garotinho. — Rob, NÃO!!!!!!
O motorista desviou o percurso, mas não pôde evitar. Atingiu o rosto da criança com a quina do veículo e Rob voou para trás. Girou no ar e o pequeno corpo bateu contra a cerca de madeira da casa vizinha. A pequena cabeça moveu-se com força para frente e para trás e o corpo rodopiou novamente, caindo na calçada, inerte. O carro azul escuro já havia fugido quando a mãe de Kristen abaixou-se ao lado do pequeno Robert e Kristen descia correndo as escadas. Escadas acarpetadas…
— MEU BEBÊ! MEU BEBÊ! — gritou com tanta intensidade que o agudo da sua voz fugiu pelas janelas da casa e ecoou por toda a rua. Vizinhos saíram de suas casas e Kristen correu ao encontro da mãe. A bicicleta retorcida estava virada de lado no mesmo lugar do impacto, onde o carro passara por cima de uma das pequenas rodinhas laterais de apoio.
— Não… não… não!!! — gritou Kristen, e Sophie sentiu a dor rasgar-lhe por dentro, destruindo sua alma, seus sonhos, sua alegria e toda a sua inocência.
Kristen tinha dezessete anos e Rob era a sua maior paixão, a sua luz, a sua joia. Com lágrimas nos olhos, Sophie não conseguia dizer nada. Sentia o que Kristen sentia. Via o que Kristen vira e morria mil vezes, como Kristen morrera.
— Se você tivesse ficado e socorrido o meu irmão, ele não teria morrido, sabia disso?
A voz de Kristen era carregada de um ódio tão intenso que a fazia crescer assustadoramente, com força dobrada, determinação e coragem descontroladas. Não era mais a garota de cabelos dourados escuros que Sophie deveria proteger, mas a fonte de uma ira descomunal e extremamente letal.
— Mas você não ficou. Foi correndo para o seu papaizinho… — o desprezo escorria pelo canto da boca, enquanto inclinava o corpo sobre Alice, que tentava, em vão, afundar-se no colchão, como se pudesse fugir por um buraco mágico no chão embaixo da cama. — E o seu papaizinho mexeu os pauzinhos para que a querida filhinha se safasse de tudo.
Kristen estava incrivelmente perto do rosto de Alice, segurando o punhal contra a barriga dela com tanta firmeza que Sophie pôde jurar que ela o enfiaria no abdômen de Alice naquele exato momento, mas, ao invés disso, ergueu-se como um boneco de pau e se recompôs como num passe de mágica.
O caso do garotinho… A mãe que se suicidara… Pensou Sophie. Brandon! Esta é a conexão! Gritou para si. Oh meu Deus… Kristen, eu sinto tanto!
— Quase um mês, Alice. Minha mãe ficou ao lado dele por quase trinta dias, esperando que ele abrisse os olhos, que ele sorrisse para ela de novo, que ela pudesse ouvir a sua voz ao menos mais uma vez. Uma única vez! — exclamou com fúria, e gotículas de saliva espirraram para fora da sua boca. E ela ergueu o punhal para o alto. — Mas ele não voltou! E sabe do que mais? — voltou-se para Alice novamente. — NÓS tivemos que dar-lhe o golpe de misericórdia. Tivemos que deixá-lo partir, tivemos que mandar desligar as malditas máquinas que nos davam a ilusão de que ele estava vivo — resmungou entre os dentes, controlando-se para não arrancar as entranhas de Alice naquele exato momento.
Sophie sentia as convulsões subirem em ondas pelo seu corpo. Sentia o que Kristen sentia e era insuportável. Kristen respirou profundamente fechando os olhos e caminhando em volta da cama. Percorria do outro lado, cumprindo o mesmo ritual com a ponta do punhal na outra perna de Alice. Sophie estava em choque de medo, de surpresa e de profunda dor.
— E pra onde você foi depois disso, Srta Collins? — de novo, o mesmo desprezo. — Ah, sim… Você saiu de férias. Havaí, não foi? — Inclinou-se sobre o rosto de Alice novamente. — A maldita puta, bêbada de merda, que havia MATADO o MEU IRMÃO, FOI TIRAR FÉRIAS NO HAWAI…! — afundou o punhal no colchão, tão colado ao corpo de Alice que Sophie fechou os olhos, achando que a havia perfurado. Ela pôde jurar, quando viu a lâmina subir e descer afiada e certeira, de que ambas iriam morrer naquela noite.
— Kristen, por favor, me escute… — implorou Sophie.
— Cala a boca! Você sabe de nada! NADA! — Sophie ainda não pensava em qual seria o plano de Kristen, pensava apenas em fazê-la parar e pensar, mas não sabia como. — Ela matou o meu irmão, destruiu a minha família e depois, colocou fotos dela no Facebook no Havaí! — exclamou Kristen, mergulhada em toda a sua indignação. — Mas eu fiquei observando você, sua puta assassina desgraçada. Observei e acompanhei os seus passos…
Thomas, THOMAS! — gritou Sophie em sua mente, chamando a única pessoa que poderia lhe ajudar naquele momento. — THOMAS, PELO AMOR DE DEUS! — A voz de Sophie ecoava em sua própria mente, mas nada de ele responder.
— Kristen, você tem toda razão — disse Sophie. — Você está certa, a Alice tem que pagar pelo que fez — exclamou, sem surtir efeito.
— Ah, mas é claro que vai pagar, não vai, docinho? — falou, voltando a caminhar em volta da cama e parou diante de Sophie. — E VOCÊ vai matá-la! — Sophie sentiu como se o punhal lhe tivesse atravessado o peito. — Bem, não vai matá-la de verdade — explicou balançando a cabeça. — Vai parecer que foi você, porque a marca das suas lindas mãos já estão no pescoço dela, assim como a pele dela, embaixo da sua unha, a saliva dela no meio das suas pernas. Agora… — deixou a frase em suspenso, seguindo novamente em direção ao rosto de Alice. Deixou o punhal na mesa e envolveu o pescoço de Alice em suas mãos sem tocá-lo — quem vai mesmo ter o gostinho de sentir o pulsar das veias pararem entre os dedos, sou eu…
As mãos de Kristen tremiam, contendo o desejo de apertar-lhe a garganta e Sophie reviu, nitidamente, as suas visões em sua mente. O pulsar sob os dedos e a sensação prazerosa do poder da vida sob suas mãos. Era o desejo de Kristen que ela vira e sentira tantas vezes, e sentiu pena daquela jovem à sua rente, destruída por um ódio que a deixava cega para o resto à sua volta. Kristen enfiou as mãos sob o colchão, pegou um par de luxas de látex e as vestiu. Preparava-se para a sua doce vingança.
THO-MAAASSSS….! — berrou Sophie em sua mente e suas veias se latejaram no cérebro, fazendo-a sentir uma dor de cabeça aguda.
— Eu quero ver os seus olhos saltarem para fora — continuava Kristen, com as mãos fechadas em torno ao pescoço de Alice, ainda sem apertá-lo, dando a impressão de que o faria a qualquer instante.
Alice chorava baixinho, as lágrimas lhe escorriam dos olhos enquanto gritos abafados já não se faziam mais ouvir, apenas gemidos de medo e remorso. Fechou os olhos, pronta para a sua sentença, mas Kristen não a deixaria ir tão fácil e nem tão rápido.
THOMAS, ACORDA!!!!!!
— Quero ver mais lágrimas rolarem do seu rosto, como rolaram do rosto da minha mãe quando ela se jogou na frente do trem — falava entre os dentes, com o maxilar teso e os braços tremendo de desejo. — Quero ver você sofrer como o meu pai sofreu, não aguentando a falta do filho e da mulher, se afogando em litros de bebida. Quero que você sofra como fez a todos nós! Talvez, espremer o seu pescoço não lhe faça juz. Talvez retalhar você, começando por este lindo rosto, possa ser melhor, mais doloroso, mais justo… — Alice urrava por baixo da faixa em sua boca.
— Kristen, espera! — exclamou Sophie, com o coração que se agitava no pescoço. — Você vai acabar com a sua vida, desse jeito. E se alguém entrar agora?
— Kristen rolou os olhos com displicência.
— Ninguém ousa entrar nos aposentos da deusa, lembra?
— E se tiver câmeras? — Kristen soltou uma gargalhada.
— E têm! Mas estão desligadas. Eu as desliguei, é claro — disse com orgulho. — Eu sei tudo sobre você — afirmou, ainda encarando Alice, que tentava se desfazer das algemas, ferindo sempre mais a pele em torno dos calcanhares e dos pulsos, que já estavam começando a sangrar. — Tive que fazer muitos favores para conseguir todas as informações que eu precisava, mas o que é abrir as pernas para conseguir o que se quer, não é mesmo? — provocou, sorrindo com descaso.
— Ótimo, Kristen, então, não tem provas de que estivemos aqui, certo?
— continuou Sophie, urrando em sua mente o nome de Thomas. — Ainda dá tempo, tire a mordaça dela, faça-a confessar, eu serei sua testemunha e…
Kristen começou a rir, primeiro baixinho, depois, crescendo alucinadamente.
— Você ainda não entendeu, não é? Devia dar mais ouvido à sua amiga Anne. Aposto que ela matou a charada há muito tempo e você com toda a sua paranormalidade — falou, fazendo aspas com os dedos no ar — não sacou nada? Putz… se eu dependesse de você para salvar a minha vida, estaria mesmo morta, hein? Ops… pensando bem… era a Alice quem dependia de você e, sabe de uma coisa? Ela vai morrer! Hoje. Aliás, daqui a pouco… — desviou o olhar rapidamete para a cortina que cobria a porta de vidro que dava para a varanda. — É que estou esperando companhia, sabe… — finalizou e sua voz era irreconhecível. Sophie sentiu pena dela. Toda aquela loucura fora alimentada por uma dor inimaginável.
— É, você tem razão. Eu sou péssima em tudo isso. Me explique — pediu Sophie, calmamente. Tinha que dar um jeito naquela situação. Tinha que dar um jeito de fazer todas saírem dali com vida. Tinha que ganhar tempo.
Claire, Claire! — gritou Thomas, apavorado com o chamado da irmã. —
Oh,  graças a Deus, Thomas! Liga pra polícia! AGORA!
Sophie concentrou-se no quarto, em Alice, no punhal nas mãos de Kristen e jogou as imagens para dentro da sua mente o mais forte que pôde. Ele tinha que ver aquilo, ele tinha que entender a situação… ele tinha que fazer alguma coisa! E Thomas gritou.
Claire!  Por  Deus!  —  exclamou,  vendo  as  imagens  que  Sophie  lhe
enviara.
— Eu pensei nisso durante dois anos. Estava ficando louca. Não sabia o que fazer… meu pai, minha mãe, meu irmão.. — a voz de Kristen começou a falhar. — Eu tinha que fazer alguma coisa. Tinha! Foi quando eu descobri que essa vadia aqui tinha se mudado de vez para o exterior. Putinha de merda — rosrnou.
— Calma, Kristen, concentre-se em mim. Me conte tudo e eu prometo que vou te ajudar com isso.
— E quem disse que eu preciso de você, Sophie? — riu — Eu estou bem, agora. Já tenho a ajuda de alguém que, aliás, você conhece muito bem, não? — Sophie olhou para Kristen com dúvida e, depois, terror. — Muito bem. Agora eu sinto que você está começando a chegar a algum lugar. Puxa… até que enfim… — Sophie se recusava a acreditar.
Claire, me diz onde você está! Mas Sophie estava em choque, não conseguiria dizer nada, naquele momento. Nem mesmo por telepatia.
— Eu era muito imatura, quase coloquei os pés pelas mãos quando comecei a seguir aquele médico. — Kristen balançou a cabeça — Como se ele pudesse fazer alguma coisa. Outro merda… — Brandon, pensou Sophie. — Foi quando eu conheci a sua amiga. Eu estava em um pub e começamos a conversar. Eu não sei bem porque, mas acabei contando a ela toda a minha vida. — É porque ela é uma víbora, manipuladora, filha da puta. Pensou Sophie. — E ela me fez ver outras possibilidades. Disse que conhecia o tal médico e que ele não resolveria o meu problema e começou a me ajudar. Naquele mesmo dia me levou para a casa dela e, no dia seguinte, ela já tinha todo o plano. — Os olhos de Kristen brilhavam de admiração. — Você acredita que ela levantou toda a vida dessa coisa aqui — apontando o punhal para Alice, que ainda chorava amarrada à cama. — durante uma única noite? Pois é… No dia seguinte, ela já sabia onde a Alice estava e como fazer para me aproximar dela.
Sophie sentia uma tristeza mortal por Kristen, por ver o quanto a vida dela fora destruída por ter encontrado a pessoa errada.
— A única condição para que tudo desse certo era que eu deveria retribuir o favor, um dia — a voz de Kristen parecia alternar entre uma mente perturbada e perigosa e outra ferida e dócil. — E esse dia chegou — falou a segunda voz — quando você veio para cá. Ela já tinha me avisado que você viria e que eu deveria me preparar para me aproximar de você. — Kristen sorriu com tristeza, quase sentindo pena por Sophie. — Ela sabia até o dia e onde vocês iriam ficar, Sophie. Como você pôde não ter percebido nada? Você, tão inteligente, tão sensível, não percebeu o óbvio!
Kristen suspirou e Sophie sentia ondas geladas varrerem os seus ossos. Ela sentia a morte chegar e, naquele instante, conseguiu pensar em uma única coisa: Villa Venturini, Thomas. Rápido. Falou, com aquela calma de quem sabe que chegara ao fim.
Kristen se aproximou de Sophie e os seus olhos eram ternos, como os que Sophie conheceia. Uma lágrima brotou no canto de um dos ohos azuis de Kristen e foi sugada para dentro, novamente.
— Eu gosto de você, Sophie — falou baixinho. — Mas se não for como ela quer, não será de outro jeito, você entende? Ela me disse que você seria atraída pela minha dor, que eu deveria mostrar-me a você como eu era, com toda a minha tristeza e fragilidade e que todo o resto daria certo. — Kristen suspirou, com uma tristeza aparente. — E você veio… Eu cheguei a vacilar, mas ela me ajudou a me manter na linha, com a mente focada no meu objetivo e…
— Kristen… — tentou intervir, mesmo sabendo que era inútil. Sophie havia presenciado a conversa entre Ashley e Kristen, em sua visão, quando Ashley lhe dizia que o passado não se muda, mas se vinga. Eram elas o tempo todo.
— Shhh… — chiou Kristen. E aquela lágrima voltou, descendo solitária pela pele alva de Kristen. — É tarde demais — sussurrou. — Ela já está aqui. Ela estava aqui o tempo todo, me ajudando. Com quem você acha que eu estava falando quando chegamos aqui? Claro que você iria descobrir que eu não fui ao banheiro, mas à cozinha, onde ela estava lá, me esperando, misturada aos outros funcionários. — Kristen suspirou e se ergueu. — Ela é ótima, não acha? Ela bolou tudo e tudo será perfeito. — Ergueu as mãos enluvadas com o punhal em uma delas. A visão fez o coração de Sophie gelar. — E, depois, foi só dar corda a essa viborazinha aqui — falou, caminhando de volta à Alice. — Eu sabia que ela não iria resistir a você. Acho que ninguém resiste, não é? À sua beleza, seu mistério, seus olhos… E, quando eu fui falar com ela na festa, e ela me disse que era pra eu trazer você ao quarto dela, fingi uma cena de ciúmes, na certeza de que você estaria me observando e, claro, você estava. E, claro, você me seguiu. — Kristen olhou para a cortina novamente e o pano verde cintilante balançou.
Sophie sentiu como se socassem o seu estômago com força. Ashley estava na varanda, ela sabia disso. Oh, não… Anne… eu sinto muito, minha amiga… sinto muito por nunca ouvir você, minha irmã. Sophie queria poder se despedir, de verdade, de Anne. Queria lhe dizer o quanto a amava e o quanto ela estava certa, sempre.
— Agora, vamos aos atos finais. Eu estrangulo a Alice, ou retalho, ainda não sei… — Kristen retomou o discurso insano, voltando à posição normal do seu corpo — Sufoco você com o éter — falou para Sophie — e, depois, deito o seu corpo ao lado do dela, com o seu rosto afundado no lenço. Ou então, talvez, ela tenha outros planos para você — deu de ombros — Eu não me importo.
Kristen já não olhava mais para Sophie e Sophie teve que raciocinar muito rápido e a única alternativa que vira era, como sempre absurda, mas ela não pensara, apenas confiou nos seus instintos.
— Kristen… eu não estou bem… — falou com a voz mais embargada e trêmula possível — Eu… — e começou a se tremer na cadeira, lentamente — Kristen, eu preciso… me deitar… — jogou a cabeça para trás, como se estivesse procurando ar no teto — por favor… você viu o que acontece… — e parou de falar. Apenas inspirou profundamente e fitou-a, com os olhos arregalados, com o corpo começando a tremer com mais intensidade.
Kristen veio ao seu encontro e apenas reagiu, dando vazão àquela parte dela cheia de inocência, arrebentando a braçadeira com a ponta do punhal afiado soltando uma das mãos de Sophie dos braços da cadeir. Sophie continuou com a simulação, respirando ofegantemente, piscando repetidamente, procurando nos olhos de Kristen aquele brilho de lucidez.
— Eu sinto muito, Sophie… — falava Kristen — Eu não quero machucar você… não quero mesmo… — Sophie tinha que agarrar aquela chance, mas não pôde. Uma voz cortante alterou tudo, como uma pausa brusca no tempo.
—  Sai  daí,  Kristen  —  falou  uma  voz  fria,  entrando  no  quarto  pela
varanda.
Sophie sentiu o sangue endurecer nas suas veias. Manteve os olhos fechados. Não queria vê-la. Não queria ter certeza de que Ashley estava, realmente, ali, no mesmo quarto que ela, com o seu plano quase finalizado. Não…
Thomas, eu vou morrer, meu irmão… Eu só quero que você saiba que eu te amo. Diz à Anne que eu a amo mais do que tudo na minha vida e… Jesse…
— Olá, Sophie. Como vai? — perguntou Ashley e Sophie não respondeu, não conseguindo nem mesmo pensar. — Você não me parece bem — disse, sarcasticamente. —, mas vejo que a Kristen te deu um voto de misericórdia — pontunou, olhando para o braço de Sophie livre da algema de plástico.
— Eu… — começou Kristen, tentando se justificar, como uma criança que quebrara a louça de porcelana da mãe.
— Está tudo bem, querida — disse Ashley com uma voz tão calma que beirava à frieza. — Não faz mal. Vocês se tornaram amigas, não foi? Eu entendo…
Hmmm… Vejamos o que podemos pode fazer com isso.
Ashley caminhou em volta da cama, olhando Alice deitada lá, com os olhos ainda mais arregalados de pavor. Sophie mantinha a cabeça baixa, como se ainda estivesse em uma visão. Os olhos semiabertos viam os pés de Ashley caminhando, silenciosamente, pelo quarto. Ela usava sapatilhas pretas e provavelmente uma calça de ginástica também preta. Sophie não conseguia ver muita coisa. Não queria ver nada, apenas sumir dali. Chamava Thomas em sua mente, chorava com ele, mantendo-o em sintonia com tudo o que acontecia no quarto.
— Você matou uma criança de quatro anos — começou Ashley, aproximando-se de Alice. — Fez a mãe dessa menina se jogar na frente de um trem, bem diante dos olhos dela. O pai se perdeu em tanta dor e foi esquecer tudo na garrafa de uísque… Você fez isso, Alice. E sequer se preocupou. Viveu a sua vida como se nada fosse… — Sophie sabia que Ashley estava tentando trazer Kristen de volta para o lado dela, o lado negro da dor e da vingança, e ela tinha que fazer alguma coisa, e rápido. — Você tem ideia do quanto sofrimento você causou a esta menina? — Kristen voltava a chorar e seus olhos foram se tornando duros, novamente. — Quatro anos… Um pequeno anjo que você reduziu a um mero pedaço de carne jogado na rua — Kristen soluçou.
— Kristen, olhe pra mim — murmurou Sophie, inutilmente. — Kristen, olhe pra mim! — exclamou, sem se importar com que Ashley faria, queria apenas salvar Kristen.
— Alice, Alice… tsc, tsc,… — continuou Ashley, inabalável. — Uma criança, uma mãe, um pai e uma adolescente. Eles tinham planos, sabia? — Sophie podia ver a mão de Kristen apertando o cabo do punhal.
— Kristen! — gritou Sophie e Kristen virou-se para ela. Os olhos estavam duros e sofridos, cheios de rancor. — Não escute o que ela diz. Eu vou te ajudar a colocar a Alice atrás das grades. Acredite em mim! — Kristen deixou cair uma lágrima e sorriu com tristeza para Sophie.
— Não, você não vai. Ela vai matar você e eu não posso impedir. Este era o nosso acordo. — Sophie emudeceu.
— O pai dela… — continuou Ashley, apontando Kristen, e Sophie notou que Ashley usava luvas pretas. Ela viera preparada para cumprir a sua promessa.
— Ele estava se preparando para um emprego dos sonhos em uma plataforma de petróleo. Kristen queria ser artista plástica e o pequeno Robert… — Ashley olhou para Kristen, que agora estava do outro lado da cama, olhando fixamente para Alice. — Você quer dizer a ela, Kristen, como era o seu irmão, o seu bebê? — Kristen emitiu um urro interno, apenas. Ashley insistiu. — Ele adorava brincar com cubos de madeira. Não é, Kristen?
— Kristen, por favor, não faça nada. Não confie nela, eu conheço a Ashley melhor do que você. — Ashley, que até o momento não tinha olhado para Sophie, encarou-a por um segundo e foi suficiente para Sophie ver a escuridão em seu olhar. Aquilo não era humano. A sua crueldade não tinha precedentes. Ashley sorriu perversamente, enquanto falava.
— Talvez o pequeno Robert se tornasse um engenheiro um dia. Um construtor… Quem sabe, um inventor! — Kristen grunhiu novamente e Alice gritava sob o pano esticado em sua boca. As lágrimas escorriam formando córregos negros da maquiagem em sua pele clara e jovem. — Mas ninguém vai saber o que ele seria. Sabe por que? Porque ele está MORTO, Alice. — exclamou, subitamente, fazendo as moléculas do corpo de Sophie se agitarem, nervosas. — Ele está morto, graças a você! Morto, Kristen, graças a ela!
Sophie viu, com clareza, o que sua mente quis lhe dizer aquele dia sobre a gangorra. Ashley dominava a mente de Kristen dando-lhe o incentivo necessário para ir às alturas, descer e subir novamente. Passar pela dor e dar-lhe munição para aliviá-la. Alimentar o desejo que, agora, fervia em suas veias.
Kristen ergueu o punhal. Sophie viu a lâmina subir e descer com fúria. Gritou. Era só o começo. Ela sabia que outros golpes viriam. Muito sangue seria derramado nos lençóis brancos daquela cama dossel.
— Nãããooo…! — gritou Sophie, chorando. — Kristen, não… ! — exclamou mais uma vez, vendo a lâmina descer novamente.
— Vai pro inferno! — gritou Kristen para Alice que se agitava na cama, e o punhal desceu com força, desaparecendo dentro do abdômen de Alice, que arregalou os olhos afundando o corpo no colchão, urrando com a garganta. O punhal subiu novamente e Kristen rangeu os dentes, segurando-o com ambas as mãos envoltas pela luva branca manchada de sangue. — Esta é pelo meu irmão!
— gritou, enterrando-o novamente em Alice. — E pela minha mãe! — O punhal se movia agora para todos os lados, atingindo o rosto de Alice, o pescoço, os braços, deixando sulcos que se abriam vermelhos por onde passava.
— PARA!!!! — berrou Sophie em prantos, mas Kristen não parou. Ergueu o objeto metálico banhado de sangue, enfiando-o no peito de Alice, que ainda gritava e soluçava, chorando e lutando pela sua vida.
— PELO MEU PAI! — enterrou novamente. — POR-TODA-A-MINHA-FAMÍLIA!!!!! — enfiou de novo e de novo e de novo, apenas gritando, se desfazendo em lágrimas e gritos, em êxtase, em uma fúria alimentada pelo tempo, pela dor e pela revolta. Era a face do terror, do mal inflamado dentro de Kristen.
Alice ainda estava viva; agonizando, mas viva. Sophie chorava e gritava, tentando tirar a braçadeira do outro punho, ferindo a pele. Mas os seus berros e súplicas eram abafados pela histeria de Kristen sobre o corpo de Alice que parara de se mexer quando as forças de Kristen começaram a se exaurir. O último golpe perfurou o pulmão de Alice.
— Kristen… — soluçava Sophie, aterrorizada. — Pare, por favor… — implorou.
Claire, concentre-se — ordenou a voz de Thomas — Você pode entrar na mente dela, faça-a parar… — sussurrou ele, em prantos, em seu ouvido, e Sophie tentou desassociar-se de tudo, tentou isolar a sua mente do que via, mas era difícil. Kristen estava em pé ao lado da cama, com grossos respingos de sangue pela túnica branca, com o olhar vazio, chorando, ofegante.
Sophie tentou fazer ressurgir algum sentimento bom em Kristen, algo que a fizesse se abrir para ela, mas a mente de Kristen estava fechada demais. Sophie se lembrou das macas em sua visão e da terceira maca que se aproximava dos dois corpos. Kristen queria se juntar a eles. Ela queria morrer.
Não, Kristen, você tem que viver. Tem que viver por todos eles. Disse Sophie respondendo ao seu próprio pensamento. Sophie chorou com a alma, sussurou no ouvido de Kristen com a força de algo que nem ela mesma conhecia e então, algo aconteceu. Kristen parou. Virou-se para Sophie, como um boneco à espera de um novo comando. Sophie soluçava e apenas pensava.
Kristen, eu sinto muito mesmo.
Kristen ainda estava ofegante e exaurida, mas a expressão do olhar começava a mudar. Sentia-se vazia de toda a sua ira. Farta, saciada e esgotada. A dor, entretanto, continuava no mesmo lugar. Ela não entendia por que a dor ainda estava lá. Os seus olhos estavam cheios de angustia.
Ashley, que se afastara da cama, assistia a tudo com um sorriso discreto no rosto. Pela primeira vez Sophie sustentou o olhar nela. Ashley não era mais uma pessoa comum. Seus olhos tinham um brilho intenso e frio. Ela vestia uma malha preta colada ao corpo, enaltecendo o que antes ela não tinha. Músculos torneados por todo o corpo. Braços, ombros, coxas, pernas e abdomen. Ela era uma arma letal ambulante. Continuava esguia, mas atlética. Os cabelos estavam escondidos sob uma touca igualmente preta e igualmente apertada na cabeça. Aquela figura em pé, no canto do quarto, parecia-se com um soldado ninja, pronto para matar e desaparecer em um suspiro. Sophie tremeu, não mais de medo, mas de raiva.
Você não pode confiar nela, Kristen. Olhe bem — e Kristen virou-se para Ashley, que ainda sorria. Sophie pôde ver uma ligeira ruga se formando na testa de Kristen. Sophie imaginou, com todas as forças, Kristen vindo em sua direção e desamarrando-a. Pensou nisso tão intensamente que a cabeça começou a doer. E Kristen veio em sua direção
— Agora saia de perto dela — ordenou Ashley com uma voz dura como gelo — Parece que vamos ter que mudar os planos, velha amiga — falou, dirigindo-se a Sophie. — Aparentemente, você matou Allice Collins com vários golpes de punhal, eu acho — provocou Ashley, mas Sophie tinha olhos somente para Kristen, agora, que vinha ao seu encontro com uma expressão comovente.
— Ainda dói… — sussurrou chorando com tristeza e, talvez, arrependimento. Sophie viu lampejos azuis em seus olhos. Pobre menina… O seu irmão, a sua mãe, a sua família, nada voltaria como era antes e Kristen sabia, agora. Percebeu que nada faria passar a falta das pessoas que amava. Vamos consertar isso. Me desamarre, por favor.
Kristen olhou o punhal em sua mão e largou-o no chão, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Limpou as mãos encharcadas de sangue no tecido branco, deixando um rastro vermelho como um grosso pincel. Deu a Sophie um sorriso triste e solitário e piscou, lentamente.
— Kristen, temos que limpar essa bagunça, agora. Resta pouco e você poderá ir embora daqui — falou Ashley —. E, depois, você vai poder, finalmente, viver a sua vida.
Kristen hesitou e depois olhou para Ashley e para Sophie.
— Me desculpe, Sophie. Você é uma garota legal, mas tem que ser assim.
— Ela se abaixou e pegou o punhal novamente.
— O éter, Kristen. Use o éter — mandou Ashley, mas Kristen não reagiu. Continuava a encarar Sophie com tristeza. Sophie balançou a cabeça, discretamente para Kristen e esta se aproximou com o punhal na mão.
Corte o bracelete e me desamarre, agora, Kristen. Eu vou ajudar você.
— Kristen, o éter, agora! — gritou Ashley.
Kristen piscou, como se acordasse de um sonho e olhou para Ashley. Sophie sabia que estava perdendo a batalha.
— Covarde… — Sophie rangeu os dentes, virando-se para Ashley. — Covarde! — repetiu, com raiva, sentindo que, se não estivesse amarrada, daria um fim àquele demônio. — Você é doente, maluca! — Ashley riu debochadamente.
— Como você ficou desse jeito?… Meu Deus… — Sophie começou a chorar de ódio e sua mão começou a tatear o lenço que lhe amarrava os pés à cadeira. — Kristen, me tire daqui. Eu vou ajudar você. — Kristen parecia perdida, vazia e inerte. Não sabia a quem atender
— Ajudar? — Ashley riu, novamente. — Você não vê a situação aqui, garota? — perguntou sarcasticamente, enquanto Sophie ainda tentava desamarrar os nós nos pés com apenas uma das mãos. — Ou dança você ou dança ela — afirmou, sinalizando Kristen com a cabeça. — Pelos meus planos, Kristen vai embora daqui comigo — afirmou, caminhando até Kristen, incentivando-a a concluir o plano.
— Eu vou acabar com você, Ashley. Você foi longe demais. Adrian, Alice e agora Kristen? Pelo amor de Deus! Quantas vidas você vai destruir? Quantas pessoas você vai matar? — Sophie, finalmente, conseguiu desatar um dos nós e começou a soltar o pé da cadeira.
— Adrian? Pelo que eu saiba, ela cortou os pulsos na banheira, a pobrezinha, não foi? — e soltou uma gargalhada que fez Kristen dar dois passos para trás.
— Polícia! — exclamou uma voz masculina no corredor, fazendo a tensão do quarto se tornar ainda mais real. — Abram a porta! — gritou, novamente, em inglês.
Sophie olhou para a porta do quarto, fechada. Kristen procurou ajuda nos olhos de Ashley que, pela primeira vez, pareceu ter sido pega de surpresa.
— Abram a porta! — gritou, novamente.
— Conte a eles, Sophie — sussurrou Kristen, aproximando-se dela. — Conte porque eu fiz isso — e Sophie viu a menina doce e inocente que Kristen fora um dia, antes que Alice e Ashley lhe tirassem tudo. — Conte o que ela fez, por favor. Pelo meu irmãozinho, pelo meu bebê, está bem? — lágrimas escorriam no rosto de Kristen e então, tudo aconteceu muito rápido.
Kristen foi agarrada pelas mãos ágeis de Ashley que a ergeu no ar como se fosse uma boneca de pano. O punhal caiu no chão e ambas desapareceram pela varanda. Sophie ouviu um grito fino e depois, um barulho abafado no jardim. Um estrondo invadiu o aposento e em seguida, a porta de correr se abria. Sophie olhou assustada, chorando, e viu Jesse acompanhado de um dos brutamontes da festa. Sophie sentiu uma emoção tomar conta do seu coração e deixou-se explodir em prantos. Não pensou em como ele havia chegado até ela, nem por que, apenas sentiu-se agradecida e frágil.
Sim, ela poderia sentir-se frágil, agora. Ela estava salva. Mas não poderia dizer o mesmo de Alice, que ainda agonizava nos lençóis, e nem de Kristen que fora encontrada minutos depois, caída no jardim com o pescoço quebrado. Disseram que fora da queda, mas Sophie sabia que não. O balcão não era tão alto assim e a queda seria amortecida pelos arbustos. Tinha sido Ashley, não havia dúvidas disso.

bruno

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