20 de abril de 2024
Erika Bento

As vidas de Sophie: Capítulo 20

capa livro 1Capítulo 20
O vazio aconchegante da noite foi se dilatando dentro da mente atordoada de Sophie, expulsando as lembranças do dia. A sessão de hipnose, a África do Sul, Jesse, Adrian e Paul iam se dissolvendo em uma névoa cinza e densa em sua mente, ao mesmo tempo que uma música de realejo soava baixinho de algum lugar. Sophie apenas deixou-se levar por aquelas notas metálicas enquanto sentia uma grama macia e fresca em seu corpo.
Estava deitada com os braços dobrados acima da cabeça absorvendo o calor morno do sol do outono. Uma brisa suave tocava o seu rosto e as pernas nuas. Os olhos fechados criavam imagens de caixinhas de música e números circenses embalados pelo som de um único instrumento. Tinha um sorriso maroto nos lábios. Era apenas uma menina, com um vestido azul celeste e um laço de fitas no cabelo, que esperava, sem anseios, a vida passar.
A luminosidade do sol desapareceu dos seus olhos ainda fechados e Sophie esperou a nuvem se dissipar. Esperou e esperou. Contrariada, abriu os olhos para ver quantas delas ainda atrapalhariam o seu cochilo matinal e viu, debruçado sobre a sua cabeça, o que parecia ser um grande coelho branco que a encarava com olhos divertidos. Franziu a testa e o coelho lhe sorriu erguendo-se feliz. O sol entrou com intensidade em seus olhos e Sophie fechou-os rapidamente. Sentou-se e olhou para trás. E o coelho ainda estava lá, olhando-a com zombaria.
Saltou no mesmo lugar duas vezes e Sopie pôs-se de pé. O focinho agitou-se e seus bigodes dançaram para cima e para baixo, fazendo Sophie rir uma risadinha infantil. O coelho saltou novamente, pulando para trás e depois para o lado. Virou-se para ela e mexeu os bigodes novamente. Sophie saltou imitando-o e o coelho lhe sorriu expondo os grandes dentes frontais para depois sair, pulando freneticamente. Sophie correu atrás dele, seguindo-o floresta adentro. A mata foi-se fechando ao seu redor e a luz do sol penetrava com dificuldade. Sophie corria despreocupada, mirando o coelho à sua frente que saltava de um lado para o outro, desviando das pedras no caminho.
O som do realejo ficou ao longe assim como o dia ensolarado, mas Sophie parecia não se preocupar, desde que estivesse com o seu amigo coelho. E bastou pensar nisso que ele desapareceu diante dos seus olhos ainda no ar e Sophie sentiu-se só. Procurou-o em todos os lugares, mas ele tinha sumido e quando ela tentou voltar pelo caminho que viera, a mata se fechou para ela. Estava encurralada. Engoliu a seco evitando as sensações de frio e medo que subiam pelas pernas. Fechou os olhos e pediu que surgisse algo que a tirasse dali. E assim se deu.
Abriu primeiro um olho e depois o outro. Olhou em volta e viu ao fundo uma caixa de madeira e, das fissuras de sua madeira, saíam raios de luz amarelo que cintilavam em tons de violeta. Correu destemida até ela e viu que era um baú com uma grande fechadura que pendia para frente. Tentou abri-la, mas estava trancada e o sorriso divertido curvou-se para baixo.
Afastou as folhas em volta, procurou e procurou. Cruzou os braços em objeção. Torceu os lábios para um lado e para o outro; pensou e pensou. Estava envolta no mais absoluto silêncio, no meio de uma mata fechada. Foi como se algo brilhasse em sua mente e ela soube o que fazer. Aproximou os lábios da fechadura e assoprou. O ar dos seus pulmões fez o baú erguer-se e levitar por alguns segundos. Sophie bateu palmas de excitação e ele despencou, abrindo a tampa arredondada sobre ele, liberando raios que lançavam cores para todos os lados. Assim que a dança luminosa terminou, Sophie abaixou-se e olhou para dentro dele. Uma energia muito forte a sugou para dentro de um poço profundo. Sophie mergulhava rodopiando, rodopiando e rodopiando até cair, desajeitadamente, em um leito de folhas secas fazendo erguer um monte delas no ar.
Sophie apoiou-se nas mãos e ficou sentada olhando em volta. Era como uma grande câmara de revelação com fotos penduradas em varais gigantes. Sentiu a cabeça girar e achou que a tivesse batido contra alguma coisa. Levantou-se e caminhou, contemplando rapidamente a fileira de fotografias num emaranhado de fios, cores, rostos e paisagens. Mas os varais eram altos demais e ela não podia vê-las nitidamente. Pensou ouvir um choramingo. Olhou em volta e percebeu, ao fundo, alguém sentado de costas para ela, com várias fotografias espalhadas ao redor. Foi-se aproximando lentamente e ouvindo aquele lamento repleto de angustia. Quis chamá-lo, mas teve receio. Sentia a adrenalina acelerar os seus batimentos cardíacos e a respiração tornou-se ligeiramente mais difícil.
— … me desculpe… me desculpe! — murmurava a voz. — … eu nunca quis… — as palavras saíam intercaladas por soluços. — Eu não tinha ideia… — sussurrava uma voz masculina.
— Quem é você? — perguntou Sophie feliz em reconhecer-se na própria voz. Não era mais a menininha fantasiada de Alice. Era ela, dentro da sua própria mente, conversando com alguém que estava para descobrir quem era.
Ele não se virou e continuou a tecer as infindáveis desculpas como se esperasse por ela.
— Nunca foi a minha intenção… Eu nunca quis fazer você sofrer de verdade. Eu sentia raiva… me senti abandonado… eu nunca estaria à sua altura — fez um chiado estranho puxando com força o muco que lhe escorria do nariz. — Me perdoe, por favor! — Sophie aproximou-se mais e olhou as fotos no chão. Sentiu uma náusea rodopiar no estômago e a cabeça girar. — Eu não entendia! Eu sabia que você era importante, mas eu não entendia de verdade, até que… eu vi. E é tão sofrido, tão doloroso! Eu não suportaria! — a voz ainda falava de costas para Sophie, mas ela já sabia quem era e sentiu apenas pena enquanto ele se arrastava em suas lamúrias. — E quando eu passei a entender, passei a sentir e a sofrer com a mesma intensidade, eu só pensei em ajudar. O tempo todo eu só queria ajudar. Por favor, por favor, me perdoe — e Sophie falou com uma calma desconcertante, sem tirar os olhos das fotos que ela havia reconhecido, as fotos do garotinho perdido.
— Eu perdoo você, Thomas. De verdade — disse ela já tão próxima que poderia tocá-lo. Levou a mão trêmula até os seus ombros e recuou. — Você era só um garotinho assustado e sozinho. Eu vi. Eu não sabia que era você, até hoje — encolheu os ombros. — Acho que eu demoro um pouco para entender as coisas, não é? — simulou um sorriso mudo.
Thomas puxou o choro pelo nariz novamente e foi-se acalmando.
— Então você entende, agora?
— Sim. Sei que você teve uma infância difícil, como eu. Sei que se sentiu excluído, sei que sofreu a sua solidão. Sei, porque vi em minha mente. Eu só não sei por que eu vi tudo isso. Por que temos essa ligação? — chegou mais perto e fez a pergunta que mais desejava e temia saber. — Quem é você, Thomas? — mas ele ficou indiferente às dúvidas de Sophie, concentrando-se apenas no que ele queria lhe dizer.
— Estas perguntas não importam agora, Claire — falou Thomas recompondo-se e mantendo o tom morno em sua voz. — Eu não entendia. Mas agora eu entendo e você precisa entender também! Se você não entender, não poderá ajudar!
— Thomas, por que você me chama de Claire? — a pergunta lhe pareceu óbvia, mas precisava ouvir.
— Porque você é Claire, Sophie — ouvir Thomas pronunciar seus dois nomes foi como forçar os olhos contra a luz intensa do sol e Sophie fechou-os por instinto. — Porque é assim que você se chama! — Thomas balançou a cabeça. — Claire, abra a sua mente! Este é o seu nome porque foi a assim que a sua mãe quis que você se chamasse. A NOSSA mãe!!! — Sophie sentiu a náusea subir-lhe à velocidade da luz até a boca e segurou para não vomitar.
— Nossa… mãe? — as palavras saíram aos tropeços. — Não, não…
Thomas se levantou e virou-se de frente para ela com os olhos brilhantes e puros. Sophie o via, realmente, pela primeira vez. Via a sua dor real, a sua sinceridade, a sua devoção e a sua ansiedade! Via Thomas despido de todas as defesas que alguém pode criar em torno a si mesmo, e ela sabia como era viver enclausurada. Ela mesma havia se aprisionado em várias delas. Mas ele, não. Ele era transparente. Podia-se ver através dele, dentro dele, através de seus olhos iluminados, e Sophie quis aprender com ele. Aprender a não temer e a aceitar. Esperava apenas que não fosse tarde demais para ele; que ela não estivesse falando com um fantasma.
— Claire, concentre-se! Não em mim, eu estou bem! — exclamou ele, lendo claramente em sua mente. — Concentre-se nela, por favor! Ela está morrendo e só você pode ajudá-la! — Thomas agarrou os ombros de Sophie como se quisesse chacoalhá-la, fazendo com que sua mente entrasse no trilho certo, mas não o fez. — Você precisa salvá-la, Claire. Eu te imploro!
Thomas se desfazia em lágrimas que escorriam silenciosamente, uma após a outra, em pequenos córregos que lhe cortavam a face, despencando da margem do maxilar até a sua camisa, mas ele não se importava. Estava ali, diante dela, sem máscaras, sem metáforas, sem mensagens, apenas ele e a sua dor. Ele e o seu pedido. E Sophie esqueceu-se do quanto odiava a sua mãe e do quanto ela tinha sido responsável por todo o seu futuro odioso. Sentia apenas que tinha que ajudá-la, por Thomas, pelo seu garoto perdido.
— Mas, eu não sei o que fazer! — gritou, colocando para fora o desespero aterrador que espremia o seu peito. Queria ajudá-lo, queria fazer alguma coisa, mas era completamente ao escuro, precisava da luz de Thomas para enxergar. Precisava passar pela resignação que ele passara. Precisava perdoar.
— Oh Claire… — lamentou Thomas, balançando a cabeça, mergulhado em compaixão. E ele a fez enxergar.
Levou a mão aos olhos de Sophie e fechou-os lentamente. A sua mão era como uma almofada macia e quente sobre seus olhos. Abaixou-a e pegou as duas mãos dela segurando-as entre as suas. Sophie sentiu uma onda de calor passar das mãos dele para os seus braços, contornar os ombros, descer pelo peito e atingir direto o seu coração. Sentiu-se incrivelmente aquecida e relaxada. O calor em seu peito foi ficando intenso e viu, mesmo com os olhos fechados, a luz alaranjada que vira no garoto perdido, agora, iluminando o seu próprio peito, de dentro para fora. Temeu que ela também entrasse em combustão, mas confiava em Thomas. Sabia que ele não queria lhe fazer nenhum mal e, instintivamente, sabia que tinha que controlar aquela nova força dentro dela.
Inspirou, sentiu a benevolência que Thomas derramava em seu corpo e ela viu. Entrou em transe dentro de um transe. Teve uma visão dentro da própria visão.
Viu o rosto da mulher deitada na cama do hospital. Viu a mulher cujo coração fora arrancado da criatura fantasmagórica, viu a mulher que impedia a filha de morrer junto com o seu pai na floresta. Viu a sua mãe em dezenas de outras visões e entendeu porque elas haviam se acentuado nos últimos meses. Ela estava partindo. Sentiu o corpo dividir-se em dois, abrindo-se ao meio como uma grande rachadura provocada por aquela luz intensa alaranjada, que a abria em uma linha vertical imperfeita. Era como se uma imensa casca estivesse se despregando da sua pele, arrancando com ela a sua carne, e a dor era insuportável.
— Ela precisa de você, Claire. Ela está te chamando, você não vê? — o desespero tomou conta novamente das palavras de Thomas e todo o calor, a luz e a paz se dissiparam. Ficou apenas a dor aguda e úmida. E Sophie não suportou.
A avalanche de imagens, de sentimentos e revelações começou a recuar causando um efeito negativo sobre o seu corpo já cansado e desprotegido. Sophie sentia a cabeça latejar e um zumbido ao fundo foi se tornando mais intenso.
— Claire, por favor, fique comigo. Eu preciso de você! — Thomas a agitava pelos ombros, mas Sophie era como um boneco em seus braços. — Preciso te dizer onde ela está. Você tem que vir até ela! Eu vou te mostrar! — as lágrimas de Thomas caíram solitárias sobre uma Sophie que sumia em suas mãos.
Sophie convulsionava em sua cama e seu último pensamento foi em Anne. Levou pesadamente o braço até o criado mudo e esbarrou com força contra o copo cheio de água que voou até a parede espatifando-se no chão, ecoando dentro do seu quarto um som agudo que Sophie esperava, atraísse a atenção de Anne.
O quarto ficou em silêncio novamente e Sophie lutava contra algo que se explodia em sua mente. Lutava contra a dor e a confusão. Lutava para não morrer, mergulhada em uma nuvem turva tingida de sangue.
— Sophi? Tudo bem aí? — falou, finalmente, a voz de Anne por trás da porta fechada.
— Sophi? — e Anne entrou no quarto cuidadosamente. — Tudo bem? — perguntou de novo e o modo estranho como Sophie estava virada na cama, sob a luz fraca do corredor, fez Anne levar o dedo ao interruptor.
O lustre sobre a cama projetava uma luz quente e amarelada sobre o corpo inerte de Sophie. Anne sentiu o peito se retrair. Correu até ela e, com horror nos olhos, viu dois olhos nublados semicerrados, a boca entreaberta e sangue escorrendo pelo nariz, tingindo de vermelho uma pele pálida e sem vida.
— SOPHI!!!!! NÃO!!!!!!

bruno

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