Solenidades de formatura, de um modo geral, costumam ser tediosas, exceto para quem está ali como protagonista, feliz da vida, encerrando um ciclo fundamental de sua vida: os estudantes e seus pais. No entanto, como professora que me tornei já bem tarde na vida, como apaixonada que sou pelo que faço, esses eventos me emocionam muito. Pela relação próxima que estabeleço com meus alunos tão jovens, tão encantadores quanto literalmente desconcertadores das minhas certezas. E talvez por já ter vivido um tantinho, olho essas solenidades e sei, mesmo que panoramicamente, um pouco das muitas emoções que foram e estão investidas ali, naquele rito de passagem.
E aqui a morte de Belchior, um desses ídolos por quem toda devoção será pequena, e as solenidades de formatura se encontram. Com um pouquinho mais de uma década frequentando formaturas de alunos, não preciso me esforçar nem um pouquinho para lembrar daquela, entre todas, que mais me emocionou, ao ponto de acionar aquela usina de lágrimas que todos temos. É comum que cada formando escolha uma canção para ser a sua trilha sonora durante o curto percurso que faz no salão nobre da reitoria, entre aquelas cadeiras pomposas e a mesa vetusta onde recebe o canudo que marca seu ingresso numa outra fase da vida.
Fuga de si – Lembro dos meus olhos nadando, afogados, diante da imagem de um emocionado Samuel, um menino há 4 anos antes chegado de Jequié, o 1º na universidade de uma família sem letramento, tão tímido quanto doce e sabido, com sede de informação. No som do ambiente, a voz que ele escolheu: o canto inconfundível e visceral de Belchior. “eu sou apenas um rapaz latino-americano/sem dinheiro no banco/sem parentes importantes e vindo do interior/mas trago, de cabeça, uma canção do rádio/em que um antigo compositor baiano me dizia/tudo é divino, tudo é maravilhoso”. Nunca esquecerei Samuel, por ele mesmo, mas também porque Belchior o inscreveu em mim com tintas afetivas ainda mais fortes sob a forma de lirismo musical.
No instante em que este texto deixar de ser uma anotação pessoal e tornar-se uma escrita acessível e compartilhável por qualquer pessoa, não haverá um veículo informativo brasileiro minimamente levado a sério, nenhuma rede social, que não esteja estampando informações, fotos, vídeos, repercussões, epitáfios ou ensaios, dos mais clichês aos mais ensaísticos, sobre esse que foi um dos maiores ícones da música brasileira. Diante da nuvem gigantesca de notícias sobre Belchior desde ontem, nada mais paradoxal do que a escolha que marcou a sua última década de vida. Quando a nova ordem do mundo da fama passou a ser ampliar em escala absoluta a exposição da intimidade, com as redes sociais digitais, Belchior abandonou literalmente tudo. Fugiu de tudo, inclusive de si mesmo.
Apenas o cantor – Angustiado, visceral, intenso, talentoso, autoral, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes (26 out 1946 – 29 abr 2017) foi muito mais que um cantor popular. Foi um tradutor literário e filosófico de um capítulo longo da história do Brasil. Assim como Renato Russo foi um tradutor da geração que adolesceu durante a ditadura militar, Belchior o foi, assim como Gil, Chico, Caetano e tantos outros, da revolução que revolveu a subjetividade, a cultura e as mentalidades nos anos 60, enquanto nas casernas se tocava o terror.
Com sua morte, e justamente em um contexto no qual abrimos os olhos e nos deparamos com tempos sombrios, os versos de Belchior são um convite à tolerância, um apelo contra a indigência cognitiva que nos lambe: “por favor não saque a arma no saloon: eu sou apenas um cantor”. A ironia trágica da vida é que, em 2017, assim como aquela geração representada por Belchior na década de 70, estamos diante de uma geração inteira órfã de um projeto de Brasil, prostrada diante de um país derramado por fracassos políticos. Estamos, como ele cantava: como nossos pais. Embora não amemos o passado e nem tenhamos ideia de que novo será esse que sempre vem, que virá, já que velhos e loucos cachorros ideológicos ameaçam entrar em cena. Ninguém duvide de que há, mesmo, perigo na esquina e de que, a vida, ao vivo, é diferente e muito, muito pior.
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