29 de março de 2024
Sergio Vaz

Trumbo – Lista Negra / Trumbo

De: Jay Roach, EUA, 2015
Nota: ★★★★
Trumbo é um filmaço, uma beleza, uma maravilha. É cinema da mais alta qualidade – e é também um documento importantíssimo sobre o período mais negro, mais pavoroso de Hollywood, do cinema e da cultura americana como um todo, um dos períodos mais negros, mais pavorosos da História recente: os anos do macarthismo, da caça às bruxas entre os profissionais do show business, a partir do final dos anos 40 e atravessando todos os anos 50.
E é fascinante ver que um filme tão bom e tão importante quanto este tem muito mais grandes nomes entre os personagens do que entre os atores e os realizadores. Além do roteirista Dalton Trumbo, são personagens do filme, entre tantos outros, Kirk Douglas, Otto Preminger, Edward G. Robinson, Louis B. Mayer. No elenco de Trumbo, os nomes mais conhecidos são os de Helen Mirren, Diane Lane, John Good e a jovem e promissora Elle Fanning, como a filha mais velha de Trumbo.
Tanto o roteirista John McNamara quanto o diretor Jay Roach não eram grandes nomes, de primeira grandeza. McNamara tinha quase duas dezenas de créditos de roteiros de séries para a TV. Jay Roach já havia dirigido uma dúzia de comédias, entre elas Entrando numa Fria e Entrando numa Fria Maior Ainda, de 2000 e 2004, e três daquelas bobagens com Mike Myers interpretando o agente Austin Powers. Antes deste Trumbo, havia feito apenas um drama, o ótimo Recontagem (2008), filme da HBO sobre as trapalhadas na contagem de votos na Flórida nas eleições presidenciais de 2000, aquelas em que George W. Bush derrotou por pouco Al Gore.
Bem, depois de Trumbo já não se pode dizer que John McNamara e Jay Roach não são grandes nomes do cinema americano.
Trumbo ganhou 7 prêmios e teve outras 43 indicações, inclusive uma ao Oscar, para Bryan Cranston, que faz o papel de Dalton Trumbo.

Belos filmes já falaram da caça às bruxas

Já foram feitos outros filmes sobre a caça às bruxas e a lista negra – e alguns são muito bons, como, só para dar dois exemplos, Testa de Ferro por Acaso/The Front (1976) e Culpado por Suspeita/Guilty by Suspicion (1991). Neste, dirigido por Irwin Winkler, Robert De Niro interpreta um diretor de cinema – um fictício David Merrill – que, nos anos 50, é chamado para prestar depoimento à HUAC, a sigla em inglês de Comitê da Casa de Representantes sobre Atividades Antiamericanas, por suspeita de ser simpatizante do comunismo.
Em Testa de Ferro por Acaso, dirigido por Martin Ritt, Woody Allen faz o papel de Howard Prince, um sujeito comum, que trabalha num restaurante, e é procurado por roteiristas que tinham sido colocados na lista negra e ficavam, portanto, impedidos de trabalhar. Eles propõem que Prince passe a assinar seu nome nos roteiros que eles escrevem, em troca de uma porcentagem do pagamento. E da noite para o dia Howard Prince desponta como um grande roteirista. O filme tem um final emocionante, belíssimo – e, antes dos créditos finais, vemos letreiros indicando o ano em que pessoas que trabalharam nele entraram na lista negra: “Martin Ritt, blacklisted in …; Zero Mostel, blacklisted in…”
Apesar de ter Woody Allen como ator principal, é um drama sério, denso – um belo filme.
Bem mais recentemente, os irmãos Coen, que não têm respeito incondicional por causa alguma, e, ao contrário, adoram brincar com coisas sérias, transformaram a simpatia pelo comunismo entre gente de Hollywood nos anos 40 e 50 e a brutal reação a isso, com a caça às bruxas, a lista negra, em motivo de riso, no ótimo Ave, César!/Hail, Caesar! (2016). Na trama maluca criada pela imaginação iconoclasta dos irmãos Coen, um grande astro de Hollywood (interpretado por George Clooney) é sequestrado por um grupo de roteiristas comunistas, que exige do estúdio uma fortuna em troca da libertação do ator. O dinheiro, é claro, seria usado para a propagação dos ideais do Partido.

Há no filme apenas um personagem que não existiu

Serão sempre bem-vindos novos filmes sobre o macarthismo, a lista negra, assim como serão sempre bem-vindos mais filmes sobre o nazismo, o holocausto: é preciso lembrar sempre dessas imensas tragédias para que a sociedade fique alerta, para evitar que elas possam se repetir.
Mas a verdade é que, assim como A Lista de Schindler (1993) de Steven Spielberg foi o filme definitivo sobre o holocausto, Trumbo é também o filme definitivo sobre a caça às bruxas do macarthismo, a época da lista negra.
Em primeiro lugar, porque, ao contrário daqueles outros que citei, Trumbo não é uma história fictícia. É a reconstituição – e, ao que tudo indica, bastante fiel – de fatos reais, de eventos históricos. Todos os personagens são pessoas reais – e houve uma óbvia preocupação em encontrar atores parecidos fisicamente com as figuras ali representadas. Uma preocupação óbvia, e uma grande vitória: os atores são de fato bastante parecidos com as pessoas que interpretam.
O caso de Bryan Cranston, o ator principal, é absolutamente impressionante: ele está idêntico ao Dalton Trumbo da vida real. É incrível, é uma maravilha. Há uma sequência em que vemos um trecho de cine-jornal da época, o verdadeiro Dalton Trumbo falando, em preto e branco, claro – e aí corta e vemos Bryan Cranston prosseguindo o que Dalton Trumbo estava dizendo. É chocante, é impressionante a semelhança.
Há apenas uma única exceção: Arlen Hird (o papel de Louis C.K.), que tem muita importância no filme, aparece ao longo de toda a narrativa, nunca existiu. Ele foi uma liberdade poética do roteirista do filme, John McNamara (que se baseou numa biografia de Dalton Trumbo escrita por Bruce Cook). McNamara colocou em Arlen Hird características de diversos roteiristas que foram postos na lista negra. Arlen Hird é um amálgama, um compósito.
Todos as demais pessoas que aparecem na tela são pessoas reais, em situações que de fato existiram.
Em segundo lugar, Trumbo me pareceu o filme definitivo sobre o tema porque o próprio escritor cuja história é retratada é uma das vítimas mais importantes, mais significativas do período da caça às bruxas, da lista negra. Dalton Trumbo era um dos roteiristas mais importantes de Hollywood em 1947, o ano em que a narrativa começa, se não o mais importante de todos. Era, como o filme mostra muito bem, o roteirista mais bem pago da indústria do cinema americano. Foi um dos nomes mais visados pelos membros do HUAC, o comitê da Câmara de Representantes. Foi um dos que foram condenados à prisão – sob a alegação de desacato ao comitê.
E acabaria sendo, como o filme mostra maravilhosamente bem, uma das peças principais para que, no começo dos anos 60, a lista negra fosse jogada no lugar certo, a lata de lixo.
Eu acrescentaria ainda um terceiro motivo pelo qual Trumbo é o filme definitivo sobre a lista negra: é o fato de que, sem possibilidade de dúvida alguma, Dalton Trumbo era, sim, membro do Partido Comunista dos Estados Unidos. Com carteirinha e tudo. Carteirinha de número 47187. Filiou-se em 1943, quando Estados Unidos e União Soviética eram aliados na guerra contra o nazismo.
Seguramente seria mais palatável para boa parte da população americana que o herói de um filme sobre a lista negra não fosse na verdade um comunista. Fosse apenas um simpatizante distante, injustamente perseguido, colocado na lista negra e portanto impedido de trabalhar, de ganhar dinheiro, de sustentar a família.
Mas não: Dalton Trumbo era comunista mesmo. Havia, sim, muitos comunistas em Hollywood – assim como no show business em Nova York e outras grandes cidades americanas.

Com a extrema direita, parte-se para a histeria, a loucura.

Trumbo diz isso com todas as letras, em letreiros que aparecem na tela logo após os logotipos das empresas produtoras – empresas menores, independentes. O filme sobre as entranhas de Hollywood não foi produzido por um dos grandes estúdios que dominavam a indústria naqueles anos 40 e 50 e continuam dominando até hoje.
Dizem os letreiros, com uma capacidade de síntese prodigiosa, extraordinária:
“Durante os anos 1930, em resposta à Grande Depressão e à ascensão do fascismo, milhares de americanos se filiaram ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Depois que os EUA se aliaram à União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, muitos mais se juntariam ao C.P.U.S.A. O roteirista Dalton Trumbo, um veterano defensor dos direitos dos trabalhadores, tornou-se membro do Partido em 1943. Mas a Guerra Fria lançou uma nova luz de suspeita sobre os comunistas americanos.”
A História caminha muitas vezes como um pêndulo – ora pende para um lado, ora pende o lado contrário, e há momentos em que dá para perceber isso a olhos nus. A História dos Estados Unidos no século XX é um desses momentos. O país conseguiu sair da Grande Depressão na segunda metade dos anos 30, com Franklin D. Roosevelt, um presidente progressista, preocupado com políticas sociais, com as massas desfavorecidas. Como, ao contrário de todos os principais países desenvolvidos, não sofreu diretamente em seu solo os efeitos da Segunda Guerra (com exceção da base de Pearl Harbour, no Havaí, atacada de surpresa em dezembro de 1941 pelos japoneses), o país saiu do conflito, em 1945, como a maior economia do planeta.
Como o final da guerra na Europa marcou o início de uma outra, a Fria, a que opunha os até então aliados Estados Unidos e União Soviética, os ânimos foram se acirrando cada vez mais contra os partidários do regime agora inimigo.
E, sim, havia de fato comunistas no show business. Roteiristas, atores, diretores, compositores, cantores, gente de rádio, que logo estaria também na nascente televisão. Comunistas, socialistas, esquerdistas de diversos matizes – pessoas que defendiam justiça social, melhor distribuição de riqueza.
Hollywood, especifica e especialmente, sempre havia sido um lugar que acolheu bem gente de pensamento mais à esquerda em termos políticos e econômicos, mais liberais em termos comportamentais. Meca da indústria de cinema, Hollywood atraiu gente do mundo inteiro – e boa parte deles eram simpáticos ao socialismo da mesma forma como comportamentalmente progressistas, avançados. A rigor, a comunidade do cinema mundial reunida em Hollywood sempre esteve à frente (ou à esquerda, ou à margem, de acordo com o pensamento de cada um) do resto da sociedade americana.
Quando os políticos de direita passaram a ter voz mais alta no Congresso, e iniciaram a campanha que resultaria na caça às bruxas em todo o show business americano, era apenas natural que boa parte de sua atenção se concentrasse na comunidade do cinema.
E quando a direita, em especial a extrema direita, começa a ter voz ativa, rapidamente parte da sociedade perde a calma, os bons modos, a inteligência, a racionalidade. Parte-se para a gritaria, a histeria, a loucura.
O macarthismo levou os Estados Unidos a um estado de absoluta paranoia. Enxergavam-se comunistas em absolutamente todos os lugares – até embaixo das camas dos funcionários da Casa Branca.
Dá perfeitamente para qualquer brasileiro saber do que se está falando. Instalou-se fenômeno semelhante aqui a partir da posse de Jair e seus Bolsonaretes.

Poucos conseguiram reconstruir suas carreiras

A Wikipedia tem uma boa explanação sobre aqueles tempos absolutamente sombrios, apavorantes, no verbete “Hollywood blacklist”.
“A lista negra envolvia a prática de negar emprego a profissionais da indústria de entretenimento que se acreditava serem ou terem sido comunistas ou simpatizantes. Não apenas atores, mas roteiristas, diretores, músicos e outros profissionais americanos do entretenimento foram impedidos de trabalhar pelos estúdios. Isso era feito em geral com base no fato de terem sido membros, ou alegadamente terem sido membros, ou até mesmo terem tido simpatia pelo Partido Comunista dos Estados Unidos, ou com base em sua recusa de ajudar as investigações do Congresso sobre as atividades do partido. Mesmo durante o período de sua aplicação mais estrita, do final dos anos 1940 até o final dos anos 1950, a lista negra raramente se fazia explícita ou verificável, mas ela rápida e diretamente prejudicou ou encerrou as carreiras e o sustente de um grande número de indivíduos que trabalhavam na indústria de cinema.”
Insisto no bom texto da enciclopédia colaborativa sobre a “Hollywood blacklist”. Acho que é importante registrar aqui mais um parágrafo do texto – tem tudo a ver com o que o filme retrata:
“Em 1947, o comitê (o HUAC já citado, o House of Un-American Activities Committee) realizou nove dias de audiências sobre a alegada propaganda e influência comunista na indústria cinematográfica de Hollywood. Depois de condenação por desacato ao Congresso por recusa de responder a algumas perguntas feitas por membros do comitê, ‘Os Dez de Hollywood’ foram colocados na lista negra pela indústria. Eventualmente, mais de 300 artistas – incluindo diretores, comentaristas de rádio, atores e especialmente roteiristas – foram boicotados pelos estúdios. Alguns, como Charlie Chaplin, Orson Welles, Alan Lomax, Paul Robeson e Yip Harburg deixaram os Estados Unidos ou se refugiaram nas sombras para achar trabalho. Outros, como Dalton Trumbo, escreveram sob pseudônimos ou usando o nome de colegas. Apenas cerca de 10 por cento conseguiram reconstruir suas carreiras dentro da indústria de entretenimento.”

Trumbo para o Duke: “Nós dois temos o direito de errar”

A primeira cena que vemos em Trumbo, logo depois daquele introito que coloca o contexto para o espectador, é de uma paisagem idílica, uma bela fazenda verdejante. Um letreiro informa que estamos ao Norte de Los Angeles, em 1947. Dalton Trumbo, comunista de carteirinha e ao mesmo tempo o roteirista mais bem pago de Hollywood e portanto do mundo, vive com a família em uma esplêndida pequena fazenda, com a bela mulher Cleo (o papel de uma Diane Lane mais simpática do que em todos os filmes anteriores que vi dela) e seus três filhos, Nikola, Chris e Mitzi.
O filme nos apresenta um Dalton Trumbo comunista de carteirinha, bom marido e bom pai de três pequenas crianças. Não tem nada, absolutamente nada de sujeito que come criancinhas – ao contrário do que sempre disseram e continuam dizendo até hoje, depois que o comunismo virou passado, os radicais, os paranoicos xiitas de direita.
Rapidamente, com talento e habilidade, o roteiro nos mostra que Trumbo é um líder entre o grupo de roteiristas comunistas ou simpatizantes do comunismo. E nos apresenta a outra face da moeda, as pessoas ligadas à Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Americanos.
John Wayne foi um dos criadores da Aliança e, em 1949, foi eleito seu presidente. Bem no início ainda, o filme mostra um diálogo entre John Wayne (interpretado por David James Elliott) e Dalton Trumbo; este último tinha ido, com companheiros roteiristas, ver uma reunião dos membros da Aliança e, ao fim, tentam distribuir alguns panfletos.
Wayne: – “Você não vai encontrar gente querendo esses papéis. Não aqui, pelo menos.”
Trumbo: – “Por que isso? Tudo o que ele diz que é que o Congresso não tem tem direito de investigar como nós votamos ou onde nós rezamos, o que nós pensamos, dizemos ou fazemos filmes. Olá, eu seu Dalton Trumbo.”
E, ao se apresentar, estende a mão para o Duke. O grandalhão se recusa a pegar na mão do comunista.
Wayne: – “O Congresso tem o direito de ir atrás de qualquer coisa que eles achem que é uma ameaça.”
Trumbo: – “Bem, é aqui que discordamos, e esse é o ponto. Nós dois temos o direito de estarmos errados.”

A colunista ameaça o chefão da Metro

Como é um filme sobre a vida de um escritor, um homem das palavras, Trumbo é cheio de maravilhosos diálogos. Há um diálogo impressionante entre o produtor Louis B. Mayer, o chefão da Metro Goldwyn Mayer (interpretado por Richard Portnow), e Hedda Hopper, uma das duas mais famosas colunistas de Hollywood naqueles anos 40. (A outra, que não aparece nem é citada no filme, é Louella Parsons.) Hedda Hopper, que aparece bastante ao longo da narrativa, é interpretada por Helen Mirren de uma tal forma que o espectador tem imediatamente uma imensa antipatia por ela. É mostrada como uma mulher tremendamente vaidosa, egoísta, egocêntrica, soberba – e uma direitista radical, virulenta. Louis B. Mayer, como outros chefões e diretores dos grandes estúdios de Hollywood, era judeu – e, no diálogo, Hedda mostrará um nojento antissemitismo.
Ela visita Mayer em sua sala nos estúdios da MGM. Primeiro o agrada, faz elogios, puxa o saco. Depois exige que ele demita Dalton Trumbo, que ele acabara de contratar pelo mais alto salário já pago a um roteirista.
Hedda: – “Quarenta anos atrás você estava passando fome em algum shtetl. (Shtetl é a palavra para denominar cidade pequena de judeus na Europa Oriental; Mayer nasceu na Ucrânia, em 1884.) O maior país do mundo abrigou você, deu a você riqueza, poder, mas no momento em que nós precisamos de você, você não faz nada. E é exatamente isso que meus leitores esperam de um negócio dirigido por kikes.” (Kikes é uma gíria americana – ofensiva – para judeus.)
Mayer: – “Saia daqui!”
Hedda: – “Sabe, L.B., eu gosto de você. Alguns dos meus anos mais alegres passei aqui neste estúdio. Não em seu escritório, é claro. Você estava sempre tentando me foder no sofá. E eu tentando manter a minha virtude. Quase. Mas os tempos mudam. Agora eu foderia você alegremente.”

Não podia assinar os roteiros – mas eles ganhavam Oscars

Não demora muito, no entanto, para Dalton Trumbo perder o emprego na Metro, e em seguida ser preso, por desacato ao comitê da Câmara dos Representantes.
Foi depois de cumprir a pena que ele escreveu o roteiro de Roman Holiday, que no Brasil se chamaria A Princesa e o Plebeu, e pediu ao amigo Ian McLellan Hunter (Alan Tudyk) que o apresentasse aos estúdios como obra dele. Se o roteiro fosse aceito, Hunter – que ainda não estava na lista negra – daria uma parte do salário a Trumbo.
A Paramount comprou o roteiro, que William Wyler transformou naquela maravilha de filme, um absoluto clássico, com Gregory Peck e Audrey Hepburn, lançado em 1953.
Mas, mesmo recorrendo a esse esquema de trabalhar usando fronts, testas de ferro, para assinar os roteiros, naturalmente as coisas foram ficando mais e mais difíceis para a família. E os Trumbo, casal e três filhos, vendem a bela fazenda e se muda para uma casa em Los Angeles.
Entra na história Frank King, uma figura absolutamente fascinante da qual eu jamais tinha ouvido falar. Com seu irmão Hymie King, ele criou a King Brothers Productions, uma produtora de filmes baratos, tipo B, sem preocupação alguma a não ser dar muito dinheiro nas bilheterias. Frank King é interpretado pelo ótimo John Goodman, cada vez mais gordo, e seu irmão Hymie, por Stephen Root. O irmão é menos arrojado, mais tenso, mas Frank demonstra não dar a mínima importância para política, lista negra, coisa alguma. Quando Dalton Trumbo vai procurar os dois, e se oferecer para escrever roteiros usando pseudônimo, Frank responde: – “Eu faço filmes de merda. Você é bom demais e caro demais para escrever para mim.”
Mas Trumbo insiste, diz que topa trabalhar pelo salário que os irmãos King pagam a seus roteiristas. E a partir daí não apenas passa a produzir roteiros em escala industrial para a King Brothers Productions como leva vários de seus amigos que estavam também na lista negra para trabalhar lá também.
Lá pelas tantas, entre a reescrita de um roteiro ruim e de um outro pior para os irmãos King, Trumbo teve a ideia de fazer um filme sobre um garotinho mexicano que luta para que seu touro de estimação não seja morto nas touradas. Quando entrega para os King o roteiro datilografado, diz: – “Há um problema, no entanto.” Hymie King pergunta: – “Caro?” E Trumbo, com um sorriso maroto: – “Pior. É bom.”
O filme, Arenas Sangrentas/The Brave One, foi lançado em 1956, com o roteiro atribuído a um nome totalmente desconhecido pela comunidade de Hollywood, um tal Robert Rich.
Tanto A Princesa e o Plebeu quanto Arenas Sangrentas ganharam os Oscars de melhor roteiro. Enquanto era proibido de trabalhar – ou, no mínimo, de assinar seu trabalho –, Dalton Trumbo ganhou dois Oscars. Anos e anos após o fim do macarthismo, da caça às bruxas, da lista negra, a Academia reconheceria oficialmente que ele foi o autor dos dois roteiros premiados.

A comunidade de Hollywood se dividiu ao meio

Trumbo mostra poucas personalidades de Hollywood como sendo líderes da direita, do anticomunismo. Além de John Wayne e Hedda Hopper, creio que o filme realça apenas o diretor Sam Wood (interpretado por John Getz), de Uma Noite na Ópera (1935), Em Cada Coração um Pecado (1942), Por Quem os Sinos Dobram (1943).
Duas personalidades são mostradas no filme como sendo corajosas, independentes, dispostas a remar contra a maré, a desafiar o status quo e a romper com a lista negra, quando os anos 50 vão chegando ao fim: o diretor e produtor Otto Preminger e o ator e produtor Kirk Douglas. (Os dois são interpretados, respectivamente, por Christian Berkel e Dean O’Gorman.)
Preminger – um sujeito que sempre desafiou os padrões, a caretice e os limites impostos pelo Código Hays, como no extraordinário Anatomia de um Crime – foi à casa de Trumbo pedindo que ele transformasse Exodus, o best-seller de Leon Uris sobre a fundação do Estado de Israel, imenso, de umas 600 páginas, num bom roteiro. E prometeu que, caso ele conseguisse fazer um roteiro de fato bom, ele, Otto Preminger (o ator que o interpreta fala com um sotaque carregado de quem tem o alemão como língua mãe), botaria o nome do autor no filme.
E Kirk Douglas, belo, poderoso, cheio de si, no auge da carreira, aparece também na casa de Trumbo, na mesma época de Preminger, pedindo para que ele desse um jeito no roteiro da superprodução que ele estava estrelando e produzindo, Spartacus.
Ao ouvir os boatos de que o roteiro da grande produção dirigida por Stanley Kubrick estava sendo reescrito por Trumbo, Hedda Hopper procura Kirk Douglas. Há um ótimo diálogo entre os dois que termina assim:
Hedda: – “Somos amigos há tanto tempo. Quando foi que você virou esse bastardo?”
Dougas: – “Sempre fui um bastardo. Você é que não tinha notado.”
O ator Edward G. Robinson (interpretado por Michael Stuhlbarg) é mostrado inicialmente como um grande simpatizante do comunismo; é amigo de Dalton Trumbo e de outros roteiristas comunistas ou de esquerda. Mas, depois de algum tempo, aceita comparecer ao Comitê sobre Atividades Antiamericanas para oferecer seu testemunho e dar os nomes de quem ele sabia que pertencia ao Partido Comunista.
Dar nomes. Entregar nomes. Dedurar.
Naqueles anos de profundo negror, a comunidade de Hollywood se dividiu ao meio – e cada uma das metades tinha absoluto ódio da outra. De um lado, os que davam nomes, os dedos-duros. Do outro lado, os que não cederam à baixeza, à vileza do Comitê. De um lado, os que foram contra os sagrados direitos da liberdade de pensamento. Do outro, os que defenderam a democracia.

“Não havia heróis nem vilões – só vítimas”

O passar dos anos, das décadas, não fez desaparecer esse apartheid entre os dois grupos. Em 1999, mais de 40 anos depois do fim do macarthismo, da caça às bruxas, da lista negra, a Academia premiou Elia Kazan com um Oscar honorário “em apreciação por uma carreira longa, diferenciada e sem paralelo, durante a qual influenciou a própria natureza da produção de filmes através da criação de obras-primas cinematográficas”. Elia Kazan havia colaborado com o Comitê, e, por isso, houve protestos diante do teatro, antes do início da cerimônia – e, lá dentro, diversos artistas não aplaudiram nem ficaram de pé quando Martin Scorsese e Robert De Niro entregaram a honraria para o grande realizador, um dos maiores que já houve na História.
Dalton Trumbo não viveu para testemunhar aquele espetáculo triste – artistas, diretores, roteiristas, gente do cinema não aplaudindo Elia Kazan porque nos anos 50 ele foi contra os antigos companheiros de ideologia. Trumbo morreria em 1976, unanimememnte reconhecido como um dos melhores roteiristas da História do cinema americano.
Foi já nos anos 70, ao receber uma honraria do Screen Writers Guild, o sindicado dos roteiristas, que Trumbo fez o discurso que encerra o filme. Uma lição de coragem, de humanismo, de vida:
– “A lista negra foi um tempo da maldade. Ninguém que sobreviveu a ela saiu sem ter sido tocado pela maldade. Fomos pegos numa situação que passava além do controle de meros indivíduos. Cada pessoa reagiu conforme sua natureza, suas necessidades, suas convicções e suas circunstâncias particulares o levaram a reagir.
– “Era um tempo de medo. E ninguém era dispensado. Centenas de pessoas perderam seus lares. Suas famílias se desintegraram. Alguns chegaram a perder suas vidas. Mas, quando você olha para aquele tempo negro, como eu acho que você deveria volta e meia olhar, não fará nenhum bem se procurar por heróis ou vilões. Eles não estavam lá. Só havia vítimas. Vítimas, porque cada um de nós se sentia compelido a dizer ou fazer coisas que em outras circunstâncias não faríamos. (…) Vejo minha família ali, e compreendo que a fiz passar por tanta coisa ruim. Não é justo.”
Não houve, naqueles tempos sombrios, heróis ou vilões – só houve vítimas.
Será que algum dia um estadista conseguirá mostrar aos brasileiros que era isso que acontecia quando sucessivos desgovernos nos dividiram entre nós x eles?
Anotação em junho de 2019
Trumbo – Lista Negra/Trumbo
De Jay Roach, EUA, 2015
Com Bryan Cranston (Dalton Trumbo)
e (na família) Diane Lane (Cleo Trumbo), Elle Fanning (Nikola Trumbo dos 8 aos 11 anos), Madison Wolfe (Nikola Trumbo criança), Tobias McDowell Nichols (Chris Trumbo dos 6 aos 10 anos), Mitchell Zakocs (Chris Trumbo dos 10 aos 12 anos), Mattie Liptak (Chris Trumbo dos 13 aos 17 anos), John Mark Skinner (Chris Trumbo aos 29), Meghan Wolfe (Mitzi Trumbo dos 6 aos 8 anos), Becca Nicole Preston (Mitzi Trumbo dos 9 aos 12 anos)
e Helen Mirren (Hedda Hopper, colunista), Louis C.K. (Arlen Hird, roteirista, personagem fictício), John Goodman (Frank King, produtor), Alan Tudyk (Ian McLellan Hunter, roteirista), Michael Stuhlbarg (Edward G. Robinson), Richard Portnow (Louis B. Mayer), John Getz (Sam Wood, diretor), Christian Berkel (Otto Preminger, diretor), David James Elliott (John Wayne), Roger Bart (Buddy Ross, produtor), Dean O’Gorman (Kirk Douglas), Stephen Root (Hymie King, produtor), Mark Harelik (Ed Muhl), Dan Bakkedahl (Roy Brewer), Adewale Akinnuoye-Agbaje (Virgil Brooks, o presidiário), Dave Maldonado (Rocco), James Dumont (J. Parnell Thomas), Johnny Sneed (Robert Stripling), Peter Mackenzie (Robert Kenny), Sean Bridgers (Jeff Krandall), Garrett Hines (Andrew Hird), Rick Kelly (president John F. Kennedy), Griff Furst (mestre de cerimônias)
Roteiro John McNamara
Baseado no livro de Bruce Cook
Fotografia Jim Denault
Música Theodore Shapiro
Montagem Alan Baumgarten
Casting David Rubin
Produção Bleecker Street Films, ShivHans Pictures, Groundswell Productions.
Cor, 124 min (2h04)

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