28 de março de 2024
Colunistas Sergio Vaz

A Pele Que Habito / La Piel Que Habito

De: Pedro Almodóvar, Espanha-EUA, 2011

Nota: ★★★☆

Tudo, tudo, absolutamente tudo em A Pele Que Habito, o Almodóvar de 2011, é doentio. Doentio – enfermiço, insalubre, deletério, malsão. Não há um único personagem que tenha alguma proximidade com, não digo normalidade, porque, como bem alerta Caetano Veloso, de perto ninguém é normal – mas alguma proximidade com qualquer coisa mediana, comum, parecido com a maioria.

Todos os personagens são doentios, muito mais próximos da loucura, da demência, da ausência de sentido, de razão, do que de algo que chegue perto de algum tipo de sanidade.

Seria, então, um mau filme, um filme ruim?

Não, isso não, de forma alguma. Pedro Almodóvar é um realizador que tem talento de sobra, tanto talento que sai pelo ladrão. É um filme bem realizadíssimo, impressionante, impactante – talvez até demais. Merece respeito. Mas é um filme em que tudo é doentio, nojento, abjeto, horripilante.

Almodóvar tem disso. Todos os seus filmes são brilhantes, inteligentes, bem realizadíssimos, talento saindo pelo ladrão. Mas alguns são filmes que não deixam o espectador, ao final, com um gosto ruim, com a certeza de que a humanidade é uma porcaria de uma invenção do diabo que já provou faz tempo que não deu certo.

Hable con Ella (2002) é assim; Hable con Ella é um filme que chega mesmo a ser terno, enternecedor. Todo Sobre Mi Madre (1999), outra maravilha, também tem momentos assim, ternos, calorosos. O recente Julieta (2016) é um filme extraordinariamente belo, e após vê-lo o espectador não fica achando que tudo é um horror, que a vida é a absoluta porcaria.

Muitos outros, no entanto, são assim do tipo deste A Pele Que Habito. Abraços Partidos (2009) é um tanto assim. O propositadamente chocante Ata-me (1989) é exatamente deste jeito – doentio como seus personagens. Perverso. Pervertido.

Em A Pele Que Habito, que pertence a essa cepa de filmes doentios, Almodóvar roça Frankenstein. Roberto Ledgard, o protagonista da história, é assim uma espécie de doutor Victor Frankenstein – só que muito, muito, mais louco, alucinado, insano. E, diferentemente do outro, abarrotado de problemas sexuais.

Uma história apresentada em três atos

A grande maioria dos filmes de Almodóvar tem roteiros originais, ou seja, são histórias criadas pelo próprio realizador. A Pele Que Habito, no entanto, se baseia em um romance, Mygale, de autoria do escritor francês Thierry Jonquet (1954-2009), lançado em 1984. Na Inglaterra, o romance teve o título de Tarantula. Vejo na Wikipedia que uma resenha do livro no Washington Post descreveu-o, com ironia pesada, como “uma nada santa colaboração entre Sade e Sartre, com ocasionais intervenções cômicas do francês honorário Jerry Lewis”.

Não sei quanto da trama original foi mantida no roteiro escrito por Almodóvar, com a colaboração de seu irmão Agustin, mas creio que o cineasta mexeu bastante na história do escritor francês. E o IMDb confirma essa minha impressão: segundo o grande site enciclopédico, Almodóvar trabalhou no roteiro ao longo de dez anos. “O que era inicialmente uma adaptação terminou sendo mais uma história inspirada no romance de Thierry Jonquet.”

Para mim ficou nítido que há três partes, três atos, no filme. A primeira parte se passa – como avisa um grande e colorido letreiro – em Toledo, em 2012. A segunda parte começa quando o filme está com cerca de 45 ou 50 de seus 120 minutos, quando outro grande e colorido letreiro informa que veremos os acontecimentos de “seis anos antes”. E, na terceira, estamos de volta ao presente, à época presente da ação, 2012. Como o filme foi lançado em 2011, há aí uma indicação de Almodóvar de que os fatos se dão no futuro – um futuro próximo, é verdade, mas um futuro. Vai aí portanto – podemos imaginar que o realizador quis dizer isso – uma pitadinha de ficção, como nos filmes de ficção científica.

Os acontecimentos da primeira parte são apresentados sem muitas explicações para o espectador. É como se a narrativa estivesse nos lançando fatos um tanto soltos, desligados uns dos outros. Eles serão amarrados, e bem amarrados, na segunda parte: nela serão apresentadas as explicações de tudo que o espectador não compreendeu muito bem na primeira parte.

A primeira personagem que vemos é uma jovem mulher, Vera (o papel de Elena Anaya), que vive num amplo e confortável quarto, e dele não pode sair. A comida chega até ela por um pequeno elevador; há câmaras instaladas em alguns lugares do quarto, e lá do andar de baixo, Marília (o papel de Marisa Paredes), a aparentemente governanta da ampla mansão, vigia os movimentos de Vera em telas de TV.

Em seguida ficamos conhecendo o protagonista da história, Robert Ledgard (o papel de Antonio Banderas), um famoso, respeitado cirurgião plástico. A primeira vez que o vemos ele está dando aula em uma escola de Medicina. Diz aos alunos: – “Eu participei de três dos nove transplantes de rosto que já foram feito no mundo, e posso assegurar que foram as experiências mais emocionantes da minha vida”.

O dr. Robert está trabalhando num projeto ousado, inédito no mundo: está criando um tipo de pele sintética perfeita, que resiste a queimaduras, não aceita picadas de mosquitos ou outros tipos de perigos e ameaças. (Eis aí o toque de ficção científica: essa invenção da engenharia genética é do futuro; não é algo que já existisse hoje – considerando-se como hoje 2011, o ano de lançamento do filme.)

A mansão dirigida por Marília, em que está Vera, pertence ao dr. Robert.

Aos poucos, vamos percebendo que o médico está implantando em Vera a sua invenção, a pele sintética. Mais adiante, vamos vendo que quase tudo em Vera, praticamente tudo, é trabalho daquele cirurgião plástico superdotado.

Uma sequência louca, insana, horrorosa

Quando o filme está aí com uns 20 minutos, há uma sequência que é Pedro Almodóvar escrito, escancarado, típico: um sujeito com uma fantasia de tigre (a desculpa é que era carnaval) meio que invade a mansão do médico. Marília, a mulher que dirige a casa, conhece o homem, Zeca (Roberto Álamo, na foto abaixo), mas não quer que ele entre, tenta impedir. Mas Zeca consegue passar pelos portões.

Primeiro come a comida de Marília na cozinha. Aí vê as telas de TV que mostram o quarto amplo em que vive Vera. Reconhece as feições da mulher, e fica doido para descobrir em qual dos tantos aposentos da casa ela está. Marília tenta de todas as maneiras expulsá-lo da casa, mas Zeca é muitíssimo mais forte que ela; amarra a pobre mulher numa cadeira, e sai à cata de Vera.

Consegue achá-la, é claro – e a estupra.

Da cozinha, amarrada, amordaçada, Marília vê a cena.

Naquele momento, o dr. Robert chega em casa. Logo vê Marília amarrada, amordaçada – e, na tela da TV, vê que um homem vestido de tigre está estuprando Vera, a mulher que ele vem inventando faz tempo.

É Almodóvar puro. Louco, doido, insano, violento, horroroso, chocante – e bem realizadíssimo.

Não teria sentido algum prosseguir no relato – a partir daí, seria, a rigor, spoiler.

Mas faço um resumo: há, em A Pele Que Habito, dois estupros e três assassinatos.

O filme foi premiadíssimo

O filme ganhou 28 prêmios, fora outras 67 indicações. Foi um dos indicados ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, e levou o Bafta dessa categoria – chamada de melhor filme não em língua inglesa. Participou da mostra competitiva no Festival de Cannes, e, na Espanha, teve nada menos de 16 indicações ao Goya, o prêmio da Academia Espanhola; levou quatro dos prêmios, melhor atriz para Elena Anaya, melhor ator revelação para Jan Cornet, melhor música original para o grande Alberto Iglesias, eterno parceiro de Almodóvar, e melhor maquiagem.

Elena Anaya, que faz Vera, nasceu em 1975, mas já é uma veterana, com quase 50 títulos na filmografia, 10 prêmios e outras 17 indicações. Já havia trabalhado com Almodóvar antes em Fale com Ela, e, no interessante Lúcia e o Sexo (2001), de Julio Medem, faz uma sensualíssima babá.

Esse ator Jan Cornet, premiado com o Goya de revelação, é bem novo, nasceu em 1982. Tem 38 títulos na filmografia, mas vários deles são curta-metragens, e outros são séries de TV.

Ele interpreta um personagem fundamental na história, Vicente, que só aparece na segunda parte do filme, aquela que se passa seis anos antes da primeira. Vicente vai a uma grande festa de casamento e lá fica atraído por Norma (Blanca Suárez), a filha única do dr. Robert Ledgard, uma adolescente ainda. Robert também está presente nessa grande festa.

Vicente sofrerá atrocidades absolutamente inimagináveis.

Símbolos, símbolos, símbolos. E spoilers!

A Pele Que Habito, talvez mais até do que outros filmes de Almodóvar, é cheio de símbolos. Absolutamente cheio de pequenos detalhes que são simbólicos. O IMDb, na página de Trivia sobre o filme, fez um belíssimo trabalho de enumerar vários deles. Aí vai a lista, com, é claro, comentários meus.

Mas é necessário avisar: aqui vão algumas informações que são spoilers. O eventual leitor que ainda não viu o filme deveria parar de ler por aqui.

* O dr. Robert Ledgad tem como hobby mexer com uma arvorezinha de bonsai. Essa é uma planta cujo crescimento – como se sabe – o ser humano pode conduzir, manipular, dirigir. É exatamente o que ele faz também com o corpo de Vera.

* O médico chama o novo tipo de pele sintética que está criando, na verdade já criou, de Gal. É dito que é uma homenagem à sua primeira mulher, que sofreu um acidente de carro e teve quase toda pele queimada quando o carro pegou fogo. Gal lembra Galatea, que, na mitologia romana, era o nome da estátua criada pelo escultor Pigmalião. A estátua era tão absolutamente perfeita que Pigmalião se apaixonou perdidamente por ela. Da mesma forma com que Robert se apaixona por Vera, sua criatura.

* O nome do personagem é Vera Cruz. Vera, de verdade, verdadeira. Cruz, o símbolo da religião cristã, o grande trauma da vida de Pedro Almodóvar, que conta ter sido molestado sexualmente por padres quando criança em escola católica. A verdadeira cruz. Todo tipo de símbolo pode ser imaginado, lembrado a partir daí.

* Vários livros aparecem, ainda que rapidamente, em algumas cenas do filme. Os nomes dos livros e dos autores são citados nos créditos finais. Nada ali é gratuito – tudo tem alguma explicação:

The Selfish Gene, de autoria de Richard Dawkins, aparece na cama do médico. O livro fala de biologia e defende a tese de que cada ser humano é o resultado do trabalho de células que produzem cópias de si mesmas. Tem a ver, é claro, com o trabalho do cirurgião plástico que manipula as células, todo o corpo de Vera.

Angel at My Table, por Jane Frame. O livro é um relato autobiográfico de como a autora se transformou de alguém “assexuado como um pedço de pau” em uma pessoa consciente de sua sexualidade.

* Há ainda um livro que aparece no filme – Marilia é vista com ele – e não tem propriamente uma simbologia, mas se refere a uma obra de Almodóvar. É Runaway, da escritora canadense Alice Munro. Julieta, o belo filme de Almodóvar de 2016, se baseia em elementos de três dos contos desse livro.

Doido varrido – mas contido, comedido

Uma informação interessante, fascinante mesmo: este é o primeiro filme em que Almodóvar dirige Antonio Banderas desde Ata-me, de 1989. Há um hiato aí de 22 anos – um imenso espaço de tempo, em que Banderas teve uma carreira internacional de grande sucesso e Almodóvar se consolidou com um dos realizadores mais importantes do cinema mundial.

No início de suas carreiras, Almodóvar e Banderas eram uma dupla frequente. Fizeram juntos Labirinto de Paixões (1982), Matador (1986), A Lei do Desejo (1987), Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e Ata-me (1989). Cinco filmes juntos, no espaço de sete anos. E, depois, 22 anos sem trabalharem juntos – tempo em que cada um se consagrou internacionalmente.

Achei Banderas – um ator em geral chegado a um excesso, um over – extremamente controlado, no papel desse médico tão competente quanto louco. Sério, sisudo. Nada de exagerado, neca, nadinha de over.

Diz o IMDb que, depois dos primeiros dias de filmagens, Almodóvar teve uma conversa com o ator. Disse que, para interpretar aquele personagem, ele precisaria deixar de lado todos os seus tiques de ator. O cineasta queria um personagem contido, comedido.

Conseguiu. Antonio Banderas interpreta o dr. Robert Ledgard exatamente assim: contido, comedido.

Um personagem doido de pedra, doente, repulsivamente doente – mas contido, comedido.

Anotação em julho de 2019

A Pele Que Habito/La Piel Que Habito

De Pedro Almodóvar, Espanha-EUA, 2011

Com Antonio Banderas (Robert Ledgard), Elena Anaya (Vera Cruz)

e Marisa Paredes (Marilia, a governanta de Robert), Jan Cornet (Vicente), Roberto Álamo (Zeca, o tigre), Eduard Fernández (Fulgencio, o assistente de Robert), José Luis Gómez (o presidente do Instituto de Biotecnología), Blanca Suárez (Norma Ledgard, a filha de Robert), Susi Sánchez (a mãe de Vicente), Bárbara Lennie (Cristina, a assistente da mãe de Vicente), Fernando Cayo (médico), Chema Ruiz (policial), Buika (a cantora, como ela mesma), Ana Mena (Norma jovem), Teresa Manresa (Casilda Efraiz, a noiva na grande festa)

Roteiro Pedro Almodóvar, com a colaboração de Agustin Almodóvar

Baseado no romance de Thierry Jonquet

Fotografia José Luiz Alcaine

Música Alberto Iglesias

Montagem José Salcedo

Casting Luis San Narciso

Produção Agustin Almodóvar, Esther García, El Deseo, Blue Haze Entertainment, Canal+ España, FilmNation Entertainment, Instituto de Crédito Oficial (ICO), Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales (ICAA), Televisión Española (TVE).

Cor, 120 min (2h)

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