28 de março de 2024
Colunistas Ricardo Noblat

O que a imprensa ainda faz no picadeiro do Palácio da Alvorada

“O que vocês estão fazendo aqui?” – pergunta Bolsonaro

Escola de samba ironiza o presidente palhaço
Reprodução/Reprodução

Se a mídia dá conta de tudo o que diz e faz o presidente Jair Bolsonaro, por que não aproveitar sua mais recente provocação e refletir um pouco a respeito? A provocação está quentinha.
Foi feita ontem depois de Bolsonaro ter-se apresentado 24 horas antes no picadeiro montado à saída do Palácio da Alvorada na companhia de um palhaço à sua imagem e semelhança.
Acostumado a insultar, debochar, ameaçar e dar banana para os jornalistas, Bolsonaro desta vez preferiu zombar deles, irritado com o que fora publicado sobre sua performance da véspera:
“Parabéns à imprensa. Fiz piada com o PIB. Parabéns aí! Se vocês sofrem ataque todo dia, o que vocês estão fazendo aqui? O espaço é público, mas o que vocês estão fazendo aqui?”
Deu as costas e foi embora. Mal cumprimentou o grupo de devotos que costuma reunir-se ali, chova ou faça sol, para aclamá-lo com gritos de “Mito” e referendar tudo o que ele faça ou diga.
Originalmente, aquele foi o lugar escolhido por Bolsonaro para tomar seu banho diário de povo antes de ir trabalhar no Palácio da Alvorada, a poucos quilômetros de distância.
Mas logo ele descobriu que como a mídia segue todos os seus passos, aquele poderia ser também o lugar para falar o que quisesse e pautar o noticiário do dia via redes sociais. Espertinho…
Entrevistas formais são um inconveniente para ele. Não só porque o obriga a pensar como a oferecer respostas inteligentes às perguntas, o que não é lá muito o seu forte, convenhamos.
Durou pouco a moda dos cafés da manhã com grupos de jornalistas. Pela mesma razão. E também porque no ambiente formal de um palácio, ele sentia-se inibido em se exibir como é.
O espaço do cercadinho próximo ao portão do Palácio da Alvorada seria o ideal para que ele soltasse seus demônios sem receio. E a depender dele, continuará sendo. A não ser…
A não ser que a mídia, de tão desqualificada por ele como já foi, tome vergonha, encha-se de brios e se recuse a servir de saco de pancada e a jogar um jogo que só Bolsonaro ganha.
Menos pancadaria sem revide. Menos espetáculos circenses. Menos Voz do Brasil em edição exclusiva, reservada unicamente ao Poder Executivo. Menos promiscuidade.
Se na ausência da mídia, Bolsonaro anunciar aos devotos algo que preste, seus assessores se apressarão em divulgar nas redes. E todos serão informados em tempo real. Não faltarão imagens.
Dá-se por certo entre nós que tudo o que o presidente diz ou faz é notícia. E, portanto, de interesse público. Não é assim. Interesse público é coisa bem distinta de interesse do público.
Uma coisa é jornalismo. Outra, diversão. Vai longe o tempo em que se dizia que o jornalismo não foi inventado para divertir, mas para informar e fazer pensar. Não precisava ser mal humorado.
As redes sociais misturam tudo – e o jornalismo, atropelado por crises de toda ordem, a mais grave delas a de confiança, segue a reboque na tentativa de sobreviver.
É preciso privatizar o noticiário, cada vez mais dependente de fontes oficiais. Em nome de “ouvir o outro lado”, muitas vezes apenas transferimos nossas dúvidas para o leitor.
O outro lado deve ser ouvido, não só porque tem esse direito como porque ajuda a firmar convicções, mas isso não nos dispensa de dizer o que aconteceu, e por quê, da maneira mais clara possível.
Presidente da República não pode agredir a mídia impunemente como faz “o mal militar” que Bolsonaro foi um dia, segundo o testemunho do general-presidente Ernesto Geisel.
Mídia que não seja de República de bananas não pode deixar-se agredir para reclamar depois por meio de editoriais indignados. Pode até parecer heroico. No mais das vezes é inútil.
Quando candidato a presidente, Trump mereceu uma atenção especial da mídia americana por que o que ele dizia era polêmico, ajudava a aumentar a audiência dos veículos.
Ela permitiu-se ser usada por ele, e ele por ela. Uma vez, quando Trump mandou um jornalista calar a boca na Casa Branca, o jornalista não calou. Seus colegas foram solidários a ele.
Parte dos jornalistas abandonou a entrevista. Trump pelo menos aprendeu a não insultar jornalistas ao vivo. Continua insultando-os, e às suas empresas, nas redes sociais. E processando-as.
Trump não é o melhor exemplo, a não ser para Bolsonaro. Melhor exemplo para a mídia brasileira é o que ela mesma produziu no passado quando então só se chamava imprensa.
Em 1984, os fotógrafos credenciados no Palácio do Planalto, diante da proibição de fotografarem o general-presidente João Figueiredo em seu gabinete, reagiram sem meio termo.
Depuseram suas máquinas e recusaram-se a fotografá-lo na cerimônia de descida da rampa do Palácio do Planalto. Um deles registrou o protesto. A proibição foi revogada no dia seguinte.
Confrontados, anteontem, com a aparição do palhaço-presidente, os jornalistas escalados para a cobertura do picadeiro do Alvorada não lhe dirigiram um só pergunta. Não teria cabimento.
Instigados pelo presidente-palhaço a perguntar sobre o PIB ao seu novo companheiro de espetáculos, os jornalistas calaram e parte deles foi embora. É um bom começo, embora com atraso.
Fonte: Blog do Noblat

Ricardo Noblat

Jornalista, atualmente colunista de O Globo e do Estadão.

Jornalista, atualmente colunista de O Globo e do Estadão.

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