19 de abril de 2024
Rodrigo Constantino

Direita, esquerda e canalhas ambidestros


Sou daqueles que costumam pensar que quem repete que “direita” e “esquerda” são conceitos ultrapassados normalmente é um “isentão” de esquerda. Não fujo da raia ao me assumir de direita, um liberal com viés conservador. Existem, afinal, certos princípios e valores de determinam a doutrina política, a visão de mundo de alguém. Há um grau não desprezível de flexibilidade, claro, mas ele não é infinito. Rótulos servem para simplificar, o que é sempre um perigo. Mas sem eles a compreensão fica ainda pior.
Se eu defendo o livre mercado, governo limitado, império das leis, pluralidade de ideias, globalização, valores morais mais tradicionais, a importância do legado cristão para a civilização ocidental etc, isso me coloca dentro de certo grupo com parâmetros razoavelmente delimitados, e que poderia ser chamado de liberalismo-conservador. E tais valores estão associados à direita, é fato.
Dito isso, não nego que muitos que usam tais rótulos de uma forma quase religiosa possam gerar mais confusão do que esclarecimento. Há quem pense, por exemplo, que basta se dizer de direita para se colocar ao lado de filósofos conservadores de boa estirpe, de estadistas como Reagan e Thatcher, ou liberais clássicos que sempre ajudaram no progresso da civilização. Não é bem assim.
Tem muito reacionário fanático, gente com perfil autoritário ou mesmo com inclinações fascistoides se proclamando de direita e misturando o joio com o trigo. Não faz sentido misturar nacionalistas autoritários que aplaudem linchamento de bandido em praça pública ou condenam qualquer imigração com os herdeiros intelectuais de Burke, por exemplo.
Por outro lado, o que tem de esquerdista que se sente moralmente superior só por “ser de esquerda”, e com isso acha que luta pela justiça social, pelas minorias e pelos oprimidos, é capaz de lotar um Maracanã. Por isso é preciso mais rigor ao falar de rótulos ideológicos, mais estudo, mais conhecimento e também mais humildade.
No podcast Ideias, uma das maiores divergências que tenho com meu mestre Guilherme Fiuza é justamente o fato de que ele prefere não usar o rótulo socialista ou esquerdista para definir crápulas oportunistas. Fiuza acha que seria bondade chamar Lula de socialista, por exemplo, já que o ex-presidente não passa de um bandido safado. Todos da “resistência de auditório” estariam no mesmo barco: querem uma boquinha, a imagem de bondosos sem a necessidade dos atos bondosos, são salafrários que vestem o manto “progressista” só por interesse.
Não chego a discordar tanto. Apenas acho que o socialismo, na prática, é isso mesmo: uma proteção estética para oportunistas, um instrumento de chegada ao poder dos ambiciosos sem caráter. Sim, existem os socialistas e comunistas convictos, como o cavalo Sansão da Revolução dos Bichos. Mas para cada idiota útil desses há uns dez “malandros” explorando com sensacionalismo bandeiras “progressistas”. Ou seja, em minha visão, o esquerdismo se confunde com o oportunismo amoral dessa turminha covarde. Daí eu ter escrito Esquerda Caviar.
Francisco Razzo, em texto publicado hoje na Gazeta, traz boas reflexões sobre esse debate, e aponta para a necessidade de adaptação para circunstâncias históricas na hora de definir o rótulo ideológico. Diz ele:
“A impressão que uma pessoa dogmática passa é de ser incapaz de lidar com o fragmentário, as imperfeições e a possibilidade de desordem. Trata-se de viver patologicamente preso ao mundo como ideia fixa e toda certinha, segura e frágil — para usar a expressão do filósofo Nassim Taleb.
Agora vamos aplicar isso à terminologia preguiçosa do ideário político. Os termos “esquerda” e “direita” funcionam como referências ao posicionamento ideológico de determinadas pessoas e grupos que pensam e, sobretudo, agem politicamente. Até aí, sem problemas — e se alguém discorda, esse é um bom momento. Quando uma pessoa diz “sou de direita”, é porque ela resume em um termo fixo uma ideia fixa de mundo, e quer que essa ideia forneça uma unidade inabalável de sentido. Contudo, há um contexto histórico, social e psicológico. Afinal, é alguém falando de uma sociedade historicamente determinada. E não só falando, mas se movendo dentro dela.
Os termos “direita” e “esquerda” são descritivos de um estado mental de crença sobre o mundo político. Termos que descrevem certo conteúdo de valor acerca das relações entre os indivíduos, a sociedade e o Estado. Quando eles são descontextualizados de uma história, de uma sociedade e de uma mente, não possuem qualquer significado. Para um francês do século 18, ser de direita é algo bem diferente que ser de direita para um alemão entusiasmado com as promessas do Terceiro Reich. Para um parlamentar inglês do século 18, ser de esquerda não se trata exatamente da mesma coisa que ser de esquerda dentro de um diretório acadêmico de um curso de humanas numa universidade federal brasileira do século 21. Resumindo: não existe valor absoluto de verdade nos termos “direita” e “esquerda”. Não há conteúdo na linguagem política sem relação com o mundo político, com os fatos políticos que o estruturam”.
Admito a complexidade maior que o autor traz para a discussão, lembrando da necessidade de contexto histórico para se compreender tais rótulos. Acho, porém, que existem certas estruturas que ligam um conservador britânico do século 19 ao de hoje, e o mesmo pode ser dito de um jacobino inspirado em Robespierre e Rousseau e um bolchevique soviético ou um “progressista” brasileiro da atualidade. Definir rótulos é difícil, ainda que útil, e o trabalho é justamente manter o essencial e descartar o periférico e circunstancial.
Dito isso, o caso brasileiro talvez seja sui generis mesmo. No Brasil fez menos sentido, talvez, falar em direita e esquerda, quando tantos se mostram apenas adeptos do “jeitinho”. Para reforçar o case do Fiuza contra o meu, bebo da fonte daquele que foi um dos ícones da “direita” nacional, mas que recusava tal rótulo, justamente por enxergar à sua volta um bando de oportunistas sedentos por poder, e nada mais. Falo de Carlos Lacerda, que escreveu em O poder das ideias:
“Não nos falem de “direita” ou de “esquerda”. Os donos do Brasil são ambidestros. Não há incompatibilidade maior entre “esquerda” e “direita”, como já foi demonstrado no mundo em geral e, em particular, no Brasil. O submundo tosco de ideias e refinadamente intuitivo dos caudilhos não conhece direita nem esquerda, senão como rótulos. O que lhes importa é o Poder, o uso pessoal dele, para enriquecer, para afogar suas inferioridade no ódio, na cobiça, na deslumbrada mediocridade do espanto de se verem tão alto – sem saber como nem para que.
[…]
O Brasil tornou-se propriedade de uma casta, que hoje se disfarça de socialisteira como ontem de fascista, mas na realidade é uma casta de incapazes e desonestos profissionais da demagogia, a patronal e a operária, a falar de reformas que não faz porque não quer e porque, se quisesse, não saberia fazer honestamente.
[…] o que sei é que o problema básico deste país me parece de uma extrema singeleza. Não é uma questão de ideologia, é uma questão de vergonha na cara”.
Essas palavras, escritas no começo da década de 1960, corroboram a análise de Fiuza. O que mais tem no Brasil é picareta que se veste de esquerdista ou direitista de olho apenas em “se dar bem”, e nada mais. Nesse ambiente, os rótulos perdem parte de seu valor…
Fonte: Gazeta do Povo

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