25 de abril de 2024
Colunistas Joseph Agamol

51 anos do último show dos Beatles


Hoje completam-se 51 anos do último show dos Beatles. Esta é uma história sobre esse dia.
Guinevere ajeitou mais a gola felpuda do casaco e apertou o passo. Fazia FRIO, frio pacas e ela pensou que ia chegar atrasada na redação mais uma vez, que droga. Ia chegar na hora do almoço e só com muita sorte a chefe não ia estar lá.
A quinta-feira, 30 de janeiro, não parecia muito promissora: acordara tarde, mais uma vez com a mãe e o pai de todas as ressacas, e com um cara diferente na cama – mais uma vez. Mais uma vez sentiu o vazio que sempre sentia em ocasiões assim e mais uma vez teve raiva – e pena – de si mesma. Mais uma vez disse que tudo ia mudar. Mais uma vez sentiu falta dos pais no interior. Quase chorou. Mais uma vez. Quase pegou a garrafa. Quase.
Colocou o LP dos Beatles para rolar na vitrola enquanto tomava banho e se vestia:
“He’s a real nowhere man
Sitting in his nowhere land…”
Quase chorou – de novo! – sentindo – de novo, que droga! – que a letra tinha sido feita sob encomenda para ela.
Com um emprego que detestava e com uma chefe opressora, com uma solidão tão intensa e dolorosa que a lançava em uma busca predadora a cada noite, com a saudade da vida de moça simples do campo, o frio sempre cortante de Londres, sempre, e a necessidade cada vez maior de um gole a qualquer hora do dia, ela se sentia exatamente como o personagem da canção, indo para lugar nenhum.
A Savile Row estava à frente e de longe ela ouviu o burburinho e adivinhou a multidão. Quando viu, não acreditou: tinha gente na rua, claro, MUITA gente, mas tinha gente em todas as janelas e terraços e todos olhavam para um só ponto: o telhado da gravadora Apple.
A gravadora dos Beatles.
Ela empurrou e foi empurrada até chegar à frente do prédio. Pegou uma garota pelo braço. Berrou no seu ouvido para se fazer ouvir:
– Ei!!! O que está rolando?
– os Beatles! – a guria parecia em um frenesi de loucura, excitação, alegria, tudo isso junto. Talvez estivesse drogada. Pensando bem, é quase certo que estivesse. – Os Beatles! Ali! No telhado! Estão TOCANDO, porra!
– ah, qualé!!! – Guinevere berrou de volta, QUERENDO acreditar mas sem se permitir. Até que reconheceu os acordes de Don’t Let Me Down acima do urro contínuo da multidão.
Os Beatles. Estavam tocando no TELHADO da Apple. Qualé.
Ela sorriu. Sentiu lágrimas fazendo força para romper suas defesas. Segurou a onda. Era uma repórter, mas só conseguia ficar ali e ouvir, levada pelo fluxo das centenas de pessoas.
“Don’t let me down…
Don’t let me down…”
Eles só tocaram cinco músicas. Cinco. Mas ela sentia como se tivesse entrado em uma fenda temporal e o universo desacelerasse. As cinco músicas se tornaram dezenas e centenas e milhares.
Saiu do transe quando sentiu algo cair do alto e pousar delicadamente em seu cabelo loiro-trigo. Achou que era uma folha. Era uma palheta. Ela não tinha como saber, mas SABIA: era a palheta de John. Segurou-a com devoção quase religiosa e afastou-se. O show acabara. Tinha que voltar ao planeta. Mas estava com uma sensação BOA.
Trabalhou à tarde toda – a chefe não tinha ido, que SORTE – e as 17h desceu para um chá. Entrou no pub de sempre e decidiu que um whisky cairia melhor. Foi para o seu canto de sempre – “só uma dose, só UMA” – e viu que já havia um cara lá. O cara estava com óculos escuros – ainda que fosse negro como a noite mais densa ali dentro – de aros triangulares, como ela veria alguns anos depois no vídeo de Stand by Me.
O cara reparou na palheta que ela segurava entre os dedos e deve ter reconhecido o objeto. Viu também o crachá que identificava o jornal onde ela trabalhava. Sorriu. E disse:
– ei, garota, quer uma NOVIDADE? Algo que só vai sair nos jornais daqui a um tempo? Foi nosso último show.
Ela deixou a palheta cair no chão. Ele pegou. Ele contou coisas que nunca havia contado a ninguém. Ela ouviu. Ela não pediu nada, nada. Mas ele disse que ela podia fazer o que quisesse. Ela pegou a caneta. Largou. Ele fez que sim com a cabeça. Ela escreveu. E o mundo, o dela, o dele e dos outros três, e de todo mundo, nunca mais foi o mesmo.

Joseph Agamol

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

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